Revista Velhas nº 15: Não adianta lutar contra as águas

01/04/2022 - 18:23

 As fortes chuvas que caíram em Minas Gerais deixaram quase metade dos municípios do estado em situação de emergência e, mais uma vez, demonstraram a urgência de mudarmos a forma como lidamos com as águas

De dentro de casa, Edna Rodrigues Coutinho, 40 anos, escutava a chuva que caía em Jequitibá apreensiva. Ela, o esposo e seus três filhos já haviam presenciado alagamentos no município em outras ocasiões, pois Jequitibá é uma cidade marcada por um histórico de enchentes e inundações. Mas, em janeiro de 2022, a situação foi diferente para a família de Edna. O nível do Rio das Velhas não parava de subir e a ameaça de rompimento do dique de contenção das águas da chuva era iminente. Ela e sua família abandonaram, então, o imóvel onde moravam e partiram para um abrigo. Ao todo, em Jequitibá, 10 famílias ficaram desabrigadas e 11 desalojadas, que foram para a casa de familiares.

“No domingo [09/01], a Defesa Civil passou pela minha casa avisando sobre a ameaça de alagamento. Não deu tempo de tirar nada. Saímos na mesma hora, pois o risco de rompimento do dique nos deixou assustados. Caso rompesse era morte na certa! Na madrugada de segunda nossa casa foi alagada pela cheia no Rio das Velhas. Perdemos tudo!”, conta Edna, que morava próximo ao dique de contenção de águas das chuvas, construído para evitar a reincidência de inundações em Jequitibá.

A família de Edna não poderá voltar ao imóvel e hoje procura uma casa para alugar. “É muito triste ver tudo o que construímos ser destruído. A nossa casa teve a estrutura comprometida, o chão da cozinha afundou. Mas o que importa é que estamos com vida!”, comentou.

 

Presidenta do CBH Rio das Velhas, Poliana Valgas é também secretária de Meio Ambiente e Saneamento de Jequitibá e representante da Defesa Civil municipal./

Jequitibá foi alagada no dia 10 de janeiro. Apesar da existência do dique de contenção, as chuvas intensas em toda a bacia do Rio das Velhas provocaram um ápice na elevação no nível da água a montante da estrutura, no Rio das Velhas e, consequentemente, no Ribeirão Jequitibá. Isso causou transposição de água em alguns locais do dique e a incidência de fraturas na estrutura e, com isso, alagamentos em vários pontos da cidade.

A porta-voz da Defesa Civil de Jequitibá e presidenta do CBH Rio das Velhas, Poliana Valgas, explica que as inundações não foram causadas por um transbordamento do Rio das Velhas, mas sim pela grande quantidade de chuva. “A cidade é muito baixa, próxima do nível do Rio das Velhas, por isso tem um dique de contenção, para evitar que as cheias entrem na cidade. Não foi a água do rio que alagou a cidade, mas sim a grande quantidade de chuvas”, explica.

Municípios historicamente afetados pelas inundações, Jequitibá, no Médio-Alto, e Santo Hipólito, no Baixo Rio das Velhas, viram o filme se repetir neste último período chuvoso.

 

Balanço das cheias

O cenário de alagamentos também se repetiu em outros municípios da bacia do Rio das Velhas. A cheia atingiu a capital Belo Horizonte, além de Itabirito, Rio Acima, Raposos, Nova Lima, Sabará, Santa Luzia e Santo Hipólito. O número de cidades em situação de emergência por causa da chuva ultrapassou 400 em Minas Gerais. Desde o início do período chuvoso, 25 pessoas perderam a vida no estado.

No dia 09 de janeiro, no ponto de captação da Copasa, em Nova Lima, o Rio das Velhas atingiu uma vazão de 530 m³/s. Em comparação, no período mais crítico da estiagem, em setembro de 2021, o manancial registrava aproximadamente 10 m³/s. Segundo a Copasa, choveu no sistema produtor do Rio das Velhas, apenas nos 15 primeiros dias de janeiro de 2022, quase que o dobro da média histórica para todo o mês. Em relação a janeiro do ano passado, a primeira quinzena de 2022 teve cinco vezes mais chuva.

Em Itabirito foi declarado, também no dia 09 de janeiro, estado de calamidade pública pelo cenário de destruição provocado pelo histórico volume de chuvas. No município vizinho, em Rio Acima, no mesmo dia o Rio das Velhas atingiu grande parte da cidade. Pessoas tiveram que ser resgatadas de barco e mais de mil cidadãos ficaram desalojados.

Já em Raposos, cidade com aproximadamente 16,5 mil habitantes, quase 66% dos moradores precisaram deixar suas casas devido às inundações provocadas pelos temporais de janeiro. Aproximadamente duas mil pessoas ficaram desabrigadas e outras nove mil desalojadas.

Durante a cheia, Rio das Velhas ocupou suas planícies de inundação em Raposos, hoje apropriadas pelo adensamento urbano.

No distrito de Honório Bicalho, em Nova Lima, a situação mais crítica foi no dia 10 de janeiro. A água do Rio das Velhas subiu aproximadamente 2,5 metros, alagando grande parte da localidade.

O secretário do CBH Rio das Velhas, Marcus Vinícius Polignano, destaca que os transtornos causados nas cidades não são culpa das águas. “Sofremos três anos seguidos com volumes de vazões do rio extremamente baixos. Há pouco estávamos discutindo a escassez e, agora, estamos falando sobre a abundância que chegou de repente. Não dá para brigar com as chuvas, que são um fenômeno natural que ocorre há anos e que continuará a acontecer. Também não dá para brigar com a cheia do rio, que é absolutamente natural, pois não temos como dimensionar o volume de água que vai cair. Mas podemos afirmar que eventos extremos como o de escassez e de chuvas abundantes serão cada vez mais frequentes, devido às mudanças climáticas, o que nos mostra a urgência em mudar a forma como lidamos com as águas”, acrescentou.

De acordo com Polignano respeitar a natureza é o primeiro passo. “Quando vemos inundações em cidades dentro da bacia do Rio das Velhas, diversas dessas casas estavam praticamente às margens do rio. Margem de rio é uma área de inundação que deve ser preservada e não ocupada. Se ficarmos brigando por esse modelo de ocupação, vamos perder em todas as chuvas. De imediato, as prefeituras precisam pensar em um plano de realocação das comunidades mais carentes, que todos os anos sofrem com as inundações e são vítimas do mesmo processo. É cada vez mais essencial ter políticas públicas para dar segurança a essas pessoas e um Plano Diretor que seja respeitado”, completou Polignano.

Neste sentido, o CBH Rio das Velhas planeja o desenvolvimento de estudos sobre as planícies de inundação de cada município e um plano para atender contingências climáticas na bacia. O objetivo é embasar as políticas públicas a serem adotadas para evitar a ocupação das áreas de inundação e, gradativamente, promover o processo de realocação das famílias que vivem em áreas de risco.

 


Impactos da cheia na bacia do Rio das Velhas em 2022


 

Uma estranha lama

Além da intensidade das chuvas, outra coisa atraiu a preocupação das cidades atingidas: a lama que cobriu casas, quintas, ruas, pontes e até telhados. “Muito estranha, espessa, viscosa, homogênea, que parece processada”, notou Glauco Gonçalves Dias, da ONG Casa de Gentil, morador de Raposos e integrante do Subcomitê Águas do Gandarela, vinculado ao CBH Rio das Velhas.

Quase um mês depois do pico das cheias, a lama continuava nos bairros Vila Bela e Matadouro. Já em Itabirito, após os dias de sol forte e limpeza, adquiriu a forma de “poeira com particulado muito fino, característica de minério”, conta Heloísa França, do Subcomitê Rio Itabirito e gerente técnica do Serviço Autônomo de Saneamento Básico (SAAE) da cidade – que também sofreu com a lama densa de até “um metro de altura” e gastou máquinas, caminhões e retroescavadeiras para limpar a sujeira, tal a consistência do material acumulado.

Pelo levantamento inicial, estima Heloísa, “os prejuízos, só do SAAE, incluem sistemas de esgotamento avariados, parte da rede de interceptação rompida, danos em elevatórias e vários sistemas de drenagem obstruídos pelo enorme volume de lama”.

Glauco Gonçalves Dias (à esquerda) pede que lama que ficou em Raposos após o recuo das águas seja investigada.

Após o auge da cheia, foi constituída uma força-tarefa de coletores voluntários, inicialmente em Raposos, Nova Lima, Rio Acima, Itabirito e Ouro Preto, para recolher amostras de águas, sedimentos, solos e lama que atingiram o Quadrilátero Ferrífero e seu entorno.

Na outra ponta, uma rede de instituições e pesquisadores se pôs em movimento para coordenar a coleta e prosseguir com a investigação. O Grupo de Pesquisa em Educação, Mineração e Território, os laboratórios de Educação Ambiental e Pesquisas da UFOP e de Solos e Meio Ambiente da UFMG, o Movimento pelas Serras e Águas de Minas (MovSAM) e o Projeto Manuelzão se uniram e já tinham cadastradas, até o final de janeiro, 55 amostras, sendo 16 de água e 39 de lama.

O passo seguinte, segundo Paulo Rodrigues, geólogo do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear (CDTN) e ativista do MovSAM, é “contactar organizações idôneas, independentes e tecnicamente capacitadas para analisar a lama da enchente, nosso foco principal neste momento”.

Glauco Gonçalves Dias afirma que a Polícia Civil esteve em Raposos para investigar e questiona: “Queremos saber se essa lama tem dona”. A prefeitura confirma: “Realmente estamos solicitando uma investigação da lama encontrada no município. Na última enchente [em 2020] a quantidade de lama foi bem menor. Já nesta última enchente, a lama atingiu de forma intensa ruas e moradias. Assim o município entende ser necessária uma análise mais criteriosa do ocorrido”.

Quase um mês depois do pico da cheia, lama ainda continuava nos bairros Vila Bela e Matadouro, em Raposos.

O modelo de cidade esponja

Os anos passam e o roteiro das chuvas de verão é o mesmo há décadas. Até quando a população conviverá com o caos? O arquiteto e urbanista Sérgio Myssior afirma que medidas poderiam amenizar e até prevenir cenas comuns em período de chuva.

“Primeiro é preciso mudar o curso da política ambiental, de saneamento e de drenagem do município. Essas obras estruturantes de macrodrenagens [em construção em Belo Horizonte] são importantes, apesar de já chegarem atrasadas. Mas é essencial que a cidade adote uma política distribuída em todo seu território: uma política de microdrenagem que se traduz em política de particulares, tanto empresas, quanto poder público, através de políticas que viabilizem implantar jardins drenantes, caixas de retenção e de reuso de água, aumento de áreas verdes e áreas permeáveis, assim como a recuperação de áreas degradadas”, definiu.

Com soluções baseadas na natureza e o investimento em infraestrutura verde é possível transformar o ambiente construído e melhorar a qualidade de vida nas cidades. “E se a água de chuva, a mesma que causa inundações e prejuízos, pudesse se transformar em um ativo urbano de grande valor? Esta é a ideia central da cidade esponja, uma nova orientação no planejamento e na gestão urbana que vem sendo introduzida em grandes cidades, especialmente na China, onde mais de 65% da população encontra-se em áreas com potencial de inundações e alagamentos”, explicou o urbanista.

A cidade esponja busca absorver, reter, infiltrar em terreno natural e reduzir o escoamento superficial, especialmente retardando a contribuição naquele momento de pico das chuvas. E são Soluções Baseadas na Natureza (SbN), ou seja, recursos naturalísticos e relacionados à infraestrutura verde.

Mas é possível adaptar uma cidade existente para essa orientação de Cidade Esponja? Sergio Myssior explica que sim. “Com certeza, este é o objetivo, explorar a incrível capacidade de transformação das cidades! A primeira regra é não repetir as receitas do passado e esperar resultados diferentes. Os municípios devem buscar o planejamento e a gestão integrada das políticas de desenvolvimento e sustentabilidade urbana, inclusive ampliando para uma abordagem regional e intermunicipal, de forma que a bacia hidrográfica seja adotada como referência territorial”, acrescentou.

Jardins de chuva, parques lineares, pisos drenantes, passeios e ruas permeáveis, telhados verdes, caixas de retenção e valas de infiltração forçada, renaturalização de cursos d´água, recuperação de Áreas de Preservação Permanente (APP) e uma infinidade de dispositivos de micro e macrodrenagem constituem os elementos da cidade esponja. O recurso hídrico absorvido nesse modelo é fundamental para garantir a recarga do aquífero. A água armazenada poderá ser reutilizada, valorizada e usada de maneira racional e integrada à paisagem urbana.

“Mas a cidade esponja não é uma solução mágica e instantânea. Dificilmente atenderá aos gestores que prometem soluções milagrosas ou que não estejam dispostos a ‘ousar’ na gestão urbana”, finalizou Sergio Myssior.


Veja mais fotos das inundações de 2022


 

Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Luiza Baggio e Paulo Barcala
Fotos: Léo boi, Marcos Neves, Ohana Padilha e Robson Oliveira