A Área de Proteção Ambiental (APA) Carste de Lagoa Santa destaca-se entre as Unidades de Conservação (UCs) federais por sua importância em relação à história das ciências naturais no país. Já foram encontrados na região fósseis de indivíduos pré-históricos, além de grafismos nas paredes calcárias com datação de aproximadamente 7.000 anos. Além disso, é frequente na região a descoberta de vestígios de ocupação pré-histórica, como instrumentos de pedra, pontas de flecha, entre outros.
Lagoa Santa está entre as regiões mais ricas em restos de culturas pré-históricas do Brasil. Ali, dezenas de sítios arqueológicos vêm sendo escavados e pesquisados desde 1843, quando o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880), considerado o pai da paleontologia brasileira, realizou pesquisa na região e descobriu um grande número de fósseis de animais extintos da megafauna e também restos e fósseis humanos pré-históricos que estabeleceram o padrão morfológico conhecido hoje como “Homem de Lagoa Santa”.
Um dos mais importantes fósseis encontrados na região é o crânio da mulher mais antiga das Américas de que se tem conhecimento: um fóssil de mais de 11 mil anos conhecido como Luzia.
O crânio de Luzia, dentro outros importantes fósseis pré-históricos descobertos na região de Lagoa Santa, encontravam-se no Museu Nacional, na Zona Norte do Rio de Janeiro, o maior museu de história natural do Brasil. No entanto, um incêndio de grandes proporções destruiu o museu, na noite do dia 02 de setembro de 2018.
O local tinha um acervo de 20 milhões de itens, como fósseis, múmias, peças indígenas e livros raros – o que representa o quinto maior acervo do mundo. As causas da tragédia ainda são desconhecidas e a Polícia Federal vai investigar. No entanto, o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, falou sobre possíveis hipóteses, como curto-circuito e queda de balão.
À esquerda, ossadas de Luzia e a reconstituição do que seria o seu rosto. À direita, a região da Lapa Vermelha, onde o fóssil foi encontrado. Créditos: Gregg Newton (Reuters) e Bianca Aun.
Entre os mais de 20 milhões de peças e documentos que pertenciam ao Museu Nacional e que foram destruídos estava o crânio de Luzia que foi encontrado na década de 1970, no sítio Lapa Vermelha, em Pedro Leopoldo (MG), por uma missão francesa liderada pela arqueóloga Annette Laming-Emperaire. Luzia foi encontrada a 11 metros de profundidade e apresentou uma datação relativa entre 11 mil e 11,5 mil anos, o que faz do crânio um dos mais antigos do Brasil e também de todo o continente americano. A missão franco-brasileira não imaginava, mas aquele achado seria considerado como a primeira ocupação humana no Brasil, reacendendo questionamentos acerca das teorias da origem do homem americano.
O esqueleto de Luzia ficou guardado por duas décadas no acervo do Museu Nacional sem que houvessem estudos ou publicações relevantes. Em 1995, o antropólogo e arqueólogo Walter Alves Neto, começou a analisar a morfologia craniana de Luzia. “Encontramos mais de 40 esqueletos datados de 8.000 e 10.000 anos, que são raríssimos. O de Luzia, com mais de 11.000 anos era singular. É uma perda irreparável”, lamentou Walter Neto.
O antropólogo completou ainda falando sobre os impactos da perda do crânio de Luzia para a ciência. “O incêndio no Museu Nacional representa um crime contra a humanidade. Além da Luzia, o museu tinha a maior coleção de esqueletos dos primeiros americanos oriundos da região de Lagoa Santa, com fósseis de aproximadamente 200 indivíduos. O estudos sobre esses povos precisam passar, necessariamente, por este material e a maior parte estava no local incendiado. Isso vai afetar negativamente o trabalho de gerações de cientistas que queiram entender a evolução humana na América.
A arqueóloga, historiadora e pesquisadora colaboradora do setor de Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais, Alenice Maria Motta Bahia, falou sobre a importância do Museu Nacional. “O incêndio no Museu Nacional pode ser considerado a segunda maior tragédia que ocorreu no Brasil, atrás apenas do rompimento da barragem em Mariana, em 2015. Não me lembro de algo tão abrupto, absurdo e devastador para a nossa história, memória e patrimônio arqueológico, etnográfico, antropológico e paleontológico. O Museu possuía coleções lindíssimas, pré-históricas de vários lugares do mundo. Vários grupos pré-coloniais e materiais como cerâmicas que só existiam ali. Foi uma grade perda que só de pensar me deixa desolada. Não tem como mensurar a perda que essa tragédia representa.”
Para o membro dos Subcomitês Ribeirão da Mata e Carste, Procópio de Castro, a perda é irrecuperável. “O Museu Nacional concentrava um acervo gigantesco, principalmente de fósseis encontrados na região de Lagoa Santa, na bacia do Rio das Velhas. Resta um vazio provocado no coração de todas as nossas ciências, história, cultura e patrimônio. Dói no coração saber que no Brasil cultiva-se um lazer sem cultura, o que é um erro de gestão dos nossos governantes”, disse.
Veja mais fotos da região da Lapa Vermelha e Quinta do Sumidouro:
O Museu Nacional
O Museu Nacional é a mais antiga instituição científica brasileira e o museu mais antigo do país. O prédio foi criado por Dom João VI e completou 200 anos em 2018. O edifício, que é tombado pelo patrimônio histórico, foi residência da família Real e tinha uma ampla estrutura feita de madeira, o que facilitou com que as chamas se espalhassem.
A instituição, ligada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vinha em acelerado processo de deterioração nos últimos anos, com sucessivos relatos de avarias e falta de manutenção no imóvel imperial situado na Quinta da Boa Vista, na zona norte carioca. O problema tornou-se ainda mais flagrante devido a seguidos cortes orçamentários. A instituição não recebe integralmente, desde 2014, os repasses anuais na ordem de R$ 520 mil.
A verba deveria ser liberada para a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), responsável pela gestão do museu, em três parcelas. No entanto, apenas R$ 300 mil eram destinados à sobrevivência da instituição. O diretor, Alex Kellner, estima que, nos últimos quatro anos, houve uma “queda brutal de orçamento” da UFRJ: R$ 140 milhões apenas com despesas de custeio.
Letícia Julião é coordenadora dos museus da UFMG e disse que os cortes de verbas são muito comuns nos museus universitários. “A precariedade em razão da falta de recursos se agravou e deixa esses acervos e coleções muito vulneráveis. No ano em que o Museu Nacional completou 200 anos, infelizmente, não temos muito o que comemorar”, disse.
Cerca de 1,5 milhão de peças, das coleções botânicas, de mamíferos e répteis, além de livros, estavam em outros prédios e não foram consumidos pelas chamas.
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