
No início de fevereiro, a Prefeitura de Lagoa Santa realizou uma poda de árvores na orla da Lagoa Central. A ação dizimou dezenas de garças e afetou mais de uma centena dessas aves que costumam construir seus ninhos em árvores do local. O evento gerou comoção na cidade, e os servidores responsáveis por determinar a poda foram afastados de suas atividades.
A Garça-Vaqueira
A garça mais afetada pela poda, a garça-vaqueira, não é nativa do Brasil. Estima-se que tenha vindo para o Brasil no século passado, e seu primeiro registro foi feito na Ilha de Marajó, no Pará, na década de 1960. Ela tem esse nome porque seus hábitos alimentares estão relacionados a manadas de grandes herbívoros como, no caso do Brasil, vacas, cavalos e animais semelhantes, e provavelmente atravessou o Atlântico vindas do norte da África atrás de búfalos. Essas garças acompanham o gado para se alimentar de insetos como moscas e carrapatos que estão à volta desses animais.
Reprodução
A população dessa espécie de garça tem crescido ao longo do tempo, sendo hoje encontrada em quase todo o território brasileiro, especialmente em áreas de pasto. É o que explica o biólogo Marcos Rodrigues, mestre em ecologia e doutor em zoologia. “A garça-vaqueira ocorria na África, principalmente na savana. Ela se alimenta de insetos espantados pelos grandes mamíferos daquele continente, como elefantes, gnus, zebras, etc. Desde que elas apareceram no Brasil, houve uma grande expansão de pasto e gado na América do Sul, e as áreas de pasto são o local ideal para ela. Então, ela se multiplicou junto com a expansão da pecuária em toda a América do Sul, não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos”, conta.
No período reprodutivo, as garças-vaqueiras se reúnem em colônias e posicionam seus ninhos nas copas das árvores, muitas vezes em torno de áreas alagadas, junto com outras aves, como os biguás. “Mais ou menos de dezembro até março elas se reúnem em colônias reprodutivas, escolhem uma árvore e fazem seus ninhos ali. Isso é comum nessa espécie. Então, elas passam ali uns 3, 4 meses por ano se reproduzindo e depois elas saem do local” explica Marcos. Junto a essas áreas com presença de água superficial, elas podem se alimentar também de moluscos, crustáceos, anfíbios, pequenos répteis, pequenos pássaros e roedores.
Questão sanitária
O fato de as garças e outras aves se reunirem nas copas das árvores, especialmente em cidades como Lagoa Santa, despertam a preocupação de algumas pessoas com a questão sanitária. Embaixo das árvores, as fezes se avolumam no chão, deixando um odor desagradável. A doutora em veterinária Maria Lia Guedes, também conselheira do Subcomitê Carste, defende que haja uma discussão sobre o controle dessa espécie pelo fato de ser exótica no Brasil e pelos riscos sanitários. “Fezes de aves são altamente contaminantes para várias bactérias, para vários protozoários, e a quantidade de amônia que tem nas fezes é muito grande. Caso inalada, a amônia pode lesionar o pulmão”, alerta. Entre as doenças, ela destaca a salmonelose, a histoplasmose e a gripe aviária.
Poda de árvores na orla da Lagoa Central do município afetou centenas de aves
Manejo
Ela prossegue: “no meu entender, é preciso haver uma discussão a respeito dessa população da garça-vaqueira. Se fosse uma espécie autóctone [isto é, nativa do Brasil], era só remanejar a população. Agora tem de haver uma discussão, porque elas não são autóctones. O efeito disso no meio ambiente tem de ser discutido, como fazer o remanejamento sem carnificina. Antes de qualquer atitude, o diálogo com órgãos ambientais capacitados e a população deve ser estabelecido”, reflete Maria Lia.
Em Fernando de Noronha, por exemplo, a garça-vaqueira se tornou um problema ambiental. Por lá, quando a população dessa espécie aumenta muito, a administração do distrito realiza o controle com gaviões e canhões de rede – isso, claro, com planejamento e seguindo protocolos do Conselho Federal de Medicina Veterinária. Esse controle ocorre porque as garças-vaqueiras competem por recursos e às vezes predam outras espécies presentes somente no arquipélago.
Marcos, porém, pensa que deve haver um manejo adequado dessas aves, embora entenda que ela se adaptou naturalmente ao ambiente brasileiro. “A gente tem de pensar bem no que é exótico. A chegada dessa espécie ao Brasil foi um movimento natural. Ninguém trouxe para cá. Ela apareceu naturalmente, cruzou o Atlântico, não se sabe como, se foi de uma vez, se foi uma população pegou carona em algum navio”, destaca. E dá ideias de como lidar com a situação: “Eu acho que poderia ter um manejo mais adequado, e não, de repente, querer exterminar. Poderia, por exemplo, lavar a praça. Inclusive essas fezes são ricas em nitrogênio, fósforo… Elas entrando no ciclo da água da lagoa, promovem crescimento de planta e de plâncton, de peixes… Você até poderia podar as árvores numa época em que as garças não estivessem lá, porque aí elas escolhem um outro local. Mas no durante o período reprodutivo, aí não faz sentido”, pontua.
Aves do Carste
Professor do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), José Eugênio Figueira é um dos colaboradores do projeto “Rede Asas do Carste” iniciativa concebida pelos Subcomitês Carste e Ribeirão da Mata, pertencentes ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), com coordenação acadêmica do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. O projeto propõe desenvolver, com professores e alunos, atividades de campo para monitoramento e observação de aves no ambiente cárstico nos municípios de Lagoa Santa, Confins, Pedro Leopoldo, Matozinhos, Funilândia e Prudente Morais.
José Eugênio explica, por exemplo, como é a interação de aves como a garça e o biguá com as áreas alagadas da região cárstica. “Os biguás, que são comedores de peixe, mergulham. Então, eles precisam de lagoa cheia. Por outro lado, as garças não mergulham, mas têm pernas extremamente longas, então elas caminham em volta da lagoa para fisgar os peixes com seus bicos pontiagudos”, explica.
Para ele, o Carste é um ecossistema fonte de inestimável biodiversidade, com centenas de espécies de aves que prestam diversos serviços ecossistêmicos. “A movimentação dessas aves aumenta a biodiversidade local. Se, por acaso, uma lagoa seca e a sua vida é esterilizada, ela pode ser reposta, porque vão chegar aves com invertebrados, com sementes, em suas penas, em seu trato gastrointestinal. Então, quando elas evacuarem, vai haver sementes liberadas para começar a recompor a fauna e flora dessa lagoa. São serviços ecossistêmicos que são inimagináveis”, celebra.
Por essas razões, José Eugênio entende que a poda realizada pela Prefeitura de Lagoa Santa deveria ter sido feita com mais cuidado. “No mínimo, deveria ter sido feito um manejo daquelas garças, porque elas não ocupam essas regiões de forma contínua. Muitos ninhais são abandonados em parte do ano. Então, deveriam ter consultado pessoas que realmente entendem ornitologia, das questões relativas à saúde pública, o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] deveria ter sido consultado, o IEF [Instituto Estadual de Florestas] deveria ter sido consultado”, conclui.
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Leonardo Ramos
*Foto: Bianca Aun