Redescobrindo o Rio das Velhas de Ouro Preto a Acuruí
“Felicidade se acha é em horinhas de descuido”, escreveu certa vez o célebre escritor João Guimarães Rosa. O autor mineiro sabia das coisas. Por acaso ou “descuido”, me deparei com uma felicidade chamada Rio das Velhas. Um desconhecido que permeia o imaginário da maioria dos belo-horizontinos como um rio poluído, cujas águas cristalinas tive o prazer de conhecer em Acuruí devido ao Triathlon, esporte com três modalidades: natação, ciclismo e corrida.
O esporte que me permitiu mergulhar nas águas do Velhas me levou à descoberta de outras práticas esportivas ao longo de suas margens e de seu entorno. Essas descobertas se transformaram transformaram em uma reportagem em dois capítulos para o Esporte Espetacular, da TV Globo, exibidas em 06 e 13 de abril de 2025. Um trabalho feito a várias mãos: Giovanna Pires (repórter), Lucas Campos (repórter cinematográfico), Jackson Lobo (assistente), Rafael Farias (editor de texto), Pedro Santos (editor de imagem) e eu, Luciana Machado (produtora).
“Criei o roteiro em parceria com o CBH Rio das Velhas e apoiadores locais, que nos conduziram por caminhos, histórias e informações capazes de revelar a beleza do rio além do conhecimento popular.” – Luciana Machado

Produtora Luciana Machado (dir.) e a repórter Giovanna Pires (esq.) junto a moradora local, durante a produção desta reportagem. Ao lado, as águas cristalinas do Parque das Andorinhas, berço do Rio das Velhas
Onde brota vida e movimento
Essa deliciosa aventura teve início a cerca de 60 km de Acuruí, onde começa o percurso de um dos rios mais importantes de Minas Gerais. “Cerca de 60% da Região Metropolitana de Belo Horizonte [RMBH] é abastecida pelo sistema Rio das Velhas. Ou seja, há uma necessidade premente de cuidar desse rio para garantir segurança hídrica para milhões de pessoas”, esclarece Poliana Valgas, presidenta do CBH Rio das Velhas.
É em Ouro Preto, dentro do Parque Natural Municipal das Andorinhas, numa área verde de 557 hectares de Cerrado e Mata Atlântica, onde brotam as nascentes do Velhas. A água gelada e cristalina vai encontrando-se com outros rios, formando piscinas naturais e cachoeiras que recebem cerca de 35 mil visitantes por ano. As cachoeiras das Andorinhas, dos Pelados e Véu das Noivas também refrescam o corpo e a alma de quem utiliza o Parque para a prática de esportes como trail run, mountain bike, escaladas (esportiva e Boulder) e slackline.
Pelas trilhas e, principalmente, na pista de XCO (Cross-Country Olímpico) de 5 km, o ciclista ouro-pretano Samuel Marotta, 30 anos, se preparou para tornar-se campeão brasileiro de Mountain Bike, em 2022. Do Mirante do Vermelhão, ponto mais alto do parque com cerca de 1400 m de altitude, Samuel desce em alta velocidade por terrenos técnicos e irregulares.
O esporte está no sangue. Samuel é sobrinho de André Mapa, 43 anos, artista de Ouro Preto e referência no trail run, a corrida de montanha. Foi campeão sul-americano no Skyrunning em 2023 e o melhor skyrunner brasileiro de 2024. Mas nem sempre foi assim. Foi na pandemia da Covid-19 que André transformou o Parque no quintal de casa, começou a correr e descobriu que nasceu para ser corredor de montanha.
Uma dessas trilhas nos leva à Pedra Branca, ponto de highline a cerca de 20 m do chão e de escalada esportiva. O ouro-pretano Fábio Melo, 39 anos, é guia de montanha do Exército Brasileiro. Muitas vezes, pedala ou corre pelo Parque, curte uma cachoeira e espera anoitecer para fazer o que mais gosta: o Boulder, escalada em formações rochosas sem uso de material, com o apoio de colchões para amortecer as quedas. O local é uma antiga pedreira e a escalada ajudou a acabar com a exploração de pedras, trazendo mais conscientização ambiental aos moradores da região.

Equipe da TV Globo acompanha ciclista pelas estradas de terra que revelam o lado esportivo e natural do Rio das Velhas. Ao lado, André Mapa, referência brasileira no trail run, transforma estas mesmas estradas em superação e contato com a natureza
Entre o tacho e o remo
As águas do Velhas deixam o Parque Municipal Natural das Andorinhas, passam pela comunidade de Catarina Mendes e chegam ao distrito de São Bartolomeu – um percurso que pode ser feito de bicicleta, margeando o Velhas. O povoado de São Bartolomeu, fundado no final do século XVII pelos bandeirantes em busca do ouro, possui uma das igrejas mais antigas de Minas Gerais: a Matriz de São Bartolomeu, tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1960.
A igreja fica na rua principal do distrito, onde mora uma família que está há séculos no povoado e que vive de fazer doces. A família de Serma Fortes, 76 anos, aprendeu a arte dos doces artesanais em tacho de cobre, uma tradição que atravessou gerações. O carro-chefe é a goiabada cascão, mas também tem geleias de frutas, doce de leite, raspas de laranja com chocolate… Atualmente, quem produz os doces é o neto Filipe Fortes. É dele a força de mexer a colher de pau e deixar o doce no ponto. “Quando meus avós não estavam dando conta de produzir mais a quantidade de doce que a gente sempre produziu, minha mãe veio para cá para ajudá-los e eu vim morar aqui também. E hoje já tem cinco anos que eu produzo doce aqui com eles”, contou Filipe.
Não é à toa que Guimarães Rosa dizia que “perto de muita água, tudo é feliz”. A poucos metros dali, os moradores aproveitam para descansar às margens do rio. Para os turistas mais aventureiros, as águas do Velhas são uma opção de lazer e esporte. Outro neto de Serma, o Luiz Fortes, é instrutor de canoagem e criou um passeio de caiaque. O leito raso permite que os turistas aprendam e se divirtam sem maiores riscos. “É um passeio ideal para quem está querendo ter a primeira prática no remo. Um passeio de contemplação da natureza, bem tranquilo, com águas rasas e cristalinas nesse trecho todo”, explicou Luiz.
Águas que relaxam, revigoram e conectam à natureza. A região possui mais de 40 cachoeiras e é perfeita para trekking, trail run e mountain bike. Uma das cachoeiras mais bonitas e fáceis de se chegar é a de São Bartolomeu, dentro da Floresta Estadual do Uaimií. São apenas 5 km saindo da rua principal do distrito, perto da igreja Matriz, até a cachoeira. É possível chegar a pé, de bicicleta ou carro para admirar a queda de 47 m de altura.

São Bartolomeu: onde novas formas de vivenciar o rio convivem com tradições centenárias
Três modalidades, um só rio
A Floresta faz divisa com o Parque Nacional da Serra do Gandarela, criado em 2014 como importante área de conservação ambiental. Possui 31 hectares que envolvem oito municípios: Ouro Preto, Mariana, Santa Bárbara, Caeté, Rio Acima, Raposos, Nova Lima e Itabirito.
Uma das entradas do Gandarela é em Acuruí, um pequeno paraíso a quase 80 km da capital mineira, com apenas 500 habitantes, que me encantou com as inúmeras possibilidades de sentir a natureza através da prática esportiva.
Fui participar de um treino de Triathlon no CT Arjon, centro de treinamento gratuito específico para triatletas, na sub-bacia do Rio Maracujá. De propriedade do empresário João Paulo Cavalcanti, natural de Itabirito, o CT é uma forma de apoiar o esporte e beneficiar a comunidade.
No local, foi construída uma lagoa de cerca de 150 m de comprimento para os treinos de natação. O ciclismo é feito na estrada sem saída da Serra de Capanema (ITA-300) e a corrida passou a ser realizada numa estrada de terra próxima, margeada pelo Rio das Velhas.

Triatletas utilizam o território da bacia como espaço de treino. CT Arjon também oferece estruturas para os atletas, como o lago para treino da natação
Em frente à lagoa, do outro lado da estrada, ficam os banheiros, o café, a área de transição dos esportes e o estacionamento dos carros. Minha maior surpresa, no meu primeiro dia no CT Arjon, foi vislumbrar, ao fundo do terreno, o Rio das Velhas.
Encantei-me com aquele lugar antes mesmo de começar minha experiência esportiva. O Triathlon foi a motivação para desbravar suas serras, trilhas e cachoeiras. Em 2024, durante o Festival das Montanhas e Águas de Minas, conheci um projeto da região, que oferece aulas de caiaque, remo, canoa, stand-up paddle e educação ambiental. Andei de caiaque com meus filhos Ian e Isis, então com sete e cinco anos de idade, e ainda aprendemos sobre a natureza da região. No complexo Catana da Serra, eles viram e entraram em uma cachoeira pela primeira vez. O mais divertido foi brincar na beira do Rio das Velhas, nos fundos do CT Arjon, onde o esporte, a natureza e a vida se conectam!

Projetos da região também incentivam a prática de remo e vela
Treinar ali foi maravilhoso! O local virou ponto de encontro de diversas assessorias esportivas, onde os triatletas amadores se juntam a atletas de elite, como o belo-horizontino Thiago Vinhal, que já fez mais de 30 provas de Ironman: “O CTA é o nosso lugar para treinar, competir e se conectar com quem ama Triathlon”.
Onde a fazenda encontra o rio
O rio segue… e chega ao Recanto dos Búfalos, uma fazenda de agricultura familiar. Em 2021, a família de Fernanda Drumond, dona da propriedade, abriu as portas de casa para gerar renda e ajudar os pais na fazenda: “Hoje a gente recebe as visitas tanto para experimentar os derivados do leite de búfala, que nós produzimos, quanto para interagir com os animais”, explica Fernanda. É possível tomar um delicioso café da manhã ou degustar um almoço bem caseiro, andar de búfala e se aventurar pelo Rio das Velhas. De barco, stand-up paddle ou caiaque, são cerca de 3 km até chegar à Represa Rio de Pedras.
Construída em 1908 para fornecer energia elétrica à nova capital mineira, Belo Horizonte, hoje está assoreada e com a capacidade de geração de energia reduzida. “O processo erosivo é ampliado pela mineração. Toda a barragem, um dia, vai virar uma planície porque o rio carrega sedimentos. É preciso um trabalho muito grande em toda a bacia do Maracujá para evitar que isso ocorra”, explica Ronald Guerra, vice-presidente do CBH Rio das Velhas.
A areia e os resíduos se acumulam nas profundezas da represa e não são percebidos por quem passeia ou treina no local. Por isso, o cenário encanta e convida para um mergulho.
Ali na represa está localizado o Centro de Referência em Águas Abertas, espaço para aulas de natação, treinos e provas. Criado e desenvolvido por Alessandro Massaini, treinador de natação, que já ministrou dezenas de cursos de águas abertas com palestras e treinos práticos, além de etapas do Campeonato Brasileiro Master de Águas Abertas. “A beleza do lugar, o contato com a natureza e o próprio desafio de enfrentar adversidades como temperatura da água, corrente, profundidade, vento… tornam tão atraente a modalidade, que hoje em dia está crescendo absurdamente”, explica Massaini.

Produção rural familiar e turismo se encontram em harmonia às margens do Rio das Velhas
Um velhas para viver
As últimas aventuras no trecho navegável do Rio das Velhas começam logo depois do encontro com a represa. É perfeito para a canoagem com mais velocidade e emoção. Foram cerca de três horas remando por quase oito quilômetros de pequenas corredeiras numa região com mata nativa, sem sinal de internet e apenas o som das águas, bichos e do vento nas folhagens. Tempo suficiente para admirar a paisagem, cansar os braços, levar dois tombos e me sentir realizada por essa experiência. O fim da aventura foi próximo à Ponte de Arame, antes do encontro com o Rio Itabirito. A partir dali, com a proximidade da Grande BH e o encontro com afluentes poluídos, a sujeira vai tomando conta e não é mais seguro navegar, muito menos mergulhar.
“Na cabeceira as águas têm mais qualidade. Em Ouro Preto, São Bartolomeu e Acuruí é possível nadar porque tem tratamento de esgoto. Mas o rio vai encontrando com as cidades e vai perdendo essa qualidade. Aos poucos, com certeza, quando chegar a Rio Acima, não dá para nadar, mas a gente quer. A meta é nadar, pescar e navegar no Rio das Velhas”, completa Ronald.
Segundo Poliana Valgas, “atualmente a parte mais poluída começa logo após a região de Raposos, Rio Acima, estendendo-se até a região de Baldim e Jequitibá. É o ponto em que a qualidade da água está mais baixa, exatamente pela quantidade de esgoto lançado nesse rio.”
Foram 65 km de um rio saudável percorridos durante quatro dias de descobertas. Um pequeno e privilegiado trecho dos 806 km de extensão do Rio das Velhas, que revela inúmeras possibilidades de esporte, lazer, aventura, conexão com a natureza, sustentabilidade e aprendizados sobre saúde e preservação ambiental.
O Rio das Velhas é tão importante para Minas Gerais, que Guimarães Rosa cita-o em sua principal obra “Grande Sertão: Veredas”, de 1956. O local onde o personagem principal, Riobaldo, descobre o segredo do amigo Diadorim é na foz do Velhas, em Barra do Guaicuí, que Rosa chamou de Guararavacã do Guaicuí.

Canoagem de velocidade, escalada e slackline também são opções que a bacia do Rio das Velhas oferece
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Matéria originalmente publicada na Revista Velhas nº22
*Texto: Luciana Machado, jornalista e produtora de Esporte da TV Globo, triatleta
*Fotos: Ane Souza; Fernando Piancastelli
