
Tecnologia que é a alma da Revolução Industrial 4.0 traz inúmeras possibilidades para ajudar a curar nosso planeta adoecido — mas também tem seu lado sombrio: um monstro que devora recursos naturais
Por trás de cada interação com um chatbot [programa de computador que simula e processa conversas humanas, permitindo que as pessoas interajam com dispositivos digitais], uma boca voraz deixa as marcas da mordida hídrica e energética.
Gerar um texto de meras 100 palavras a partir de Inteligência Artificial (IA) no ChatGPT [chatbot desenvolvido pela OpenAI] consome, em média, 519 mililitros de água, conforme divulgado pelo jornal The Washington Post a partir de análise de pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Riverside.
Para gerar imagens no estilo Ghibli [estúdio japonês de animação], febre que contagiou grande parte da Internet há pouco tempo, a IA consome ainda mais água, pois a geração de uma imagem equivale a 20 comandos. Treinar um único modelo de Inteligência Artificial Generativa, que gera algo novo e original, muitas vezes imitando a criatividade humana, e produz novos conteúdos como textos, imagens, áudios, vídeos e até códigos de software, como o GPT-4, consome uma quantidade de água equivalente ao gasto anual de 300 residências.
Relatório do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) deste ano destaca que a demanda global por água relacionada à IA tende a aumentar significativamente, atingindo volumes que superam o uso anual de alguns países, por exemplo, o Reino Unido. Vivendo uma realidade em que 25% da população da Terra enfrenta escassez de água potável, essa crescente avidez é motivo de grande preocupação.
A própria produção dos microchips que turbinam a IA Generativa também demanda grandes quantidades de água, intensificando o impacto ambiental dessa tecnologia. A maior empresa fabricante de semicondutores do mundo, a TSMC, sediada em Taiwan, consome milhões de litros de água ultrapura (UPW, na sigla em inglês) para lavar as pastilhas de silício e resfriar equipamentos, segundo seu próprio Relatório de Sustentabilidade de 2023.
Para produzir um microchip são necessários cerca de 2.200 galões de UPW, e treinar um grande modelo de linguagem pode consumir milhões de litros de água doce.
Faces do problema
Em 2020, durante a construção de mais dois data centers do Google na cidade de The Dalles, no estado norte-americano do Oregon, a população teve acesso a informações que revelavam um gasto de água superior a 1/4 do total consumido por toda a população local. Isso ocorre porque os servidores dos data centers geram enormes quantidades de calor à medida que efetuam os milhares de cálculos necessários para cada resposta. Para evitar o sobreaquecimento, o sistema requer arrefecimento constante.
Diante desses conflitos, o gigante Google comprometeu-se a repor 120% da água que utiliza nesses processos até 2030, mas relatório recente mostra que a big tech só havia reposto 18% até 2023.
Outro desafio diz respeito ao consumo de energia. Cada resposta de um chatbot com cerca de 100 palavras implica um consumo médio de 0,14 quilowatts-hora (kWh), o suficiente para alimentar 14 lâmpadas LED durante uma hora. Uma solicitação feita ao ChatGPT consome dez vezes mais eletricidade do que uma pesquisa no Google, segundo a Agência Internacional de Energia.
Na Irlanda, onde os data centers se espalham como fogo em capim seco, estima-se que o setor vá consumir 32% da eletricidade total do país até o ano que vem, contra 17% três anos atrás.
Impulsionado em boa parte pela explosão da IA, o número de data centers no mundo saltou de 500 mil, em 2012, para 8 milhões, atualmente, e essa carreira desabalada não vai parar.
Desigualdade
É usual que empresas, não só de tecnologia, se estabeleçam em locais com recursos acessíveis e menores custos operacionais, muitas vezes sem levar em conta impactos sobre as comunidades locais. Quando a demanda de água e energia recai sobre áreas de baixa resiliência hídrica e saneamento precário, quem paga são a sustentabilidade e a qualidade de vida das pessoas.
O principal desafio que se coloca para o futuro da IA não é técnico, mas ético. É imprescindível que se invista em tecnologias inovadoras para minimizar a pegada hidroambiental da IA.
Segundo o professor Virgílio Almeida, do Departamento de Ciência da Computação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), um dos principais especialistas do país no assunto e doutor pela Vanderbilt University, dos Estados Unidos, “existem pesquisas para o desenvolvimento de algoritmos que atenuam a demanda por recursos e otimizem o uso de energia. O modelo chinês [DeepSeek, que abalou os mercados internacionais de IA recentemente] apresentou algoritmos mais eficientes, que necessitam de menos estrutura computacional”.
A professora doutora do Programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC São Paulo, Dora Kaufman, evoca as “várias iniciativas”, como o “projeto do governo brasileiro de data centers sustentáveis” e estudos chineses para resfriamento sem uso de água.
Brasil
De fato, o governo federal lançou, há menos de um ano, o Plano “IA para o Bem de Todos”, que abrange o período 2024/2028. Entre seus principais objetivos, destacam-se a busca por “inovações sustentáveis e inclusivas”; a instalação de uma “infraestrutura tecnológica avançada”, incluindo a utilização “de um dos cinco supercomputadores mais potentes do mundo” e a utilização de “energias renováveis”; o desenvolvimento de “modelos avançados de linguagem em português, com dados nacionais que abarcam nossa diversidade cultural, social e linguística, para fortalecer a soberania”; e a formação, capacitação e requalificação “de pessoas em grande escala para valorizar o trabalhador e suprir a alta demanda por profissionais qualificados”.
Os investimentos previstos, de mais de R$ 23 bilhões em quatro anos, só perdem para Estados Unidos e China, de longe os campeões em aporte de recursos – públicos e privados – para a IA. O professor Virgílio observa que, embora “o Brasil ainda não tenha esses centros de teste de modelos, carrega o atrativo de uma matriz energética renovável – hidráulica, eólica e solar –, uma grande vantagem”.
O futuro é logo aqui
O setor ainda caminha em terreno pantanoso, na falta de qualquer marco regulatório. No Brasil, temos o Projeto de Lei nº 2338/2023, que regulamenta o uso da IA no Brasil, “já aprovado pelo Senado e tramitando na Câmara”, cita Almeida. “É preciso, sim, ter uma regulação, pois são muitos os interesses”. O “desconhecimento geral sobre o assunto” é a realidade que precisamos superar, anota o professor do DCC, que prega “mais debate e entendimento mais amplo para aumentar o letramento da sociedade” a respeito.
“Nada é simples envolvendo a IA”, resume Dora Kaufman. “Por que não regular? Essa é a pergunta, mas não é fácil. A tecnologia é transversal, cada setor tem suas especificidades. O protagonismo nesse campo deve ser das agências reguladoras, cada uma em sua área, com a criação de autoridade reguladora nos setores hoje desregulados”.
A professora explica: “Uma regulação única para tudo seria generalista ou daria no que aconteceu na Europa, onde a Lei de IA está sofrendo enorme pressão pela revisão. Antes mesmo de qualquer artigo, a peça traz 180 considerações iniciais, tal a complexidade” do tema, afetando a capacidade “de fiscalização e implementação”.
“Cabe ao Estado proteger a sociedade, mas para o investidor também é fundamental ter regras claras”, considera. E adverte: “Não adianta esperar que as big techs tomem medidas efetivas se não houver uma regulamentação. Quando o interesse comercial conflita com o social, vai prevalecer o comercial”.
*Todo o conteúdo visual desta reportagem [em sua versão original] foi gerado com o uso de Inteligência Artificial. A produção consumiu aproximadamente 0,52 kWh de energia elétrica e 9 litros de água, considerando estimativas médias de uso computacional e refrigeração de data centers.
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Paulo Barcala
*Artes: Clermont Cintra
*Diagramação: Albino Papa