Em maio de 2019, há praticamente três anos, matéria publicada aqui no site mostrava, com dados de 2018 do Sistema Nacional de Informação Sobre Saneamento (SNIS), que 54,4% da população brasileira tinha acesso à coleta de esgoto e apenas 46% ao esgoto tratado, patamar que colocava o Brasil atrás de países como México, África do Sul, Bolívia, Iraque, Peru e Marrocos.
Em dois anos, o progresso foi miúdo. A foto de 2020 revela que 59,2% do país contava com sistemas públicos de esgotamento sanitário e 50,8%, com tratamento de esgotos, e um total anual de recursos aplicados da ordem de R$ 13,7 bilhões. Desse montante, quase dois terços vieram da cobrança dos serviços e de receitas não operacionais das empresas e autarquias que administram o serviço nos municípios, R$ 8,6 bilhões. Outros 26,9%, ou R$ 3,6 bilhões, tiveram origem em empréstimos do FGTS, Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT) e financiamentos externos. No frigir dos ovos, escassos 9% dos investimentos eram oriundos do Orçamento Geral da União, dos estados, Distrito Federal e municípios, ou R$ 1,2 bilhão.
Na opinião de Marcus Vinícius Polignano, secretário do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), os “investimentos públicos em saneamento no país são ridículos, é uma fragilidade total do nosso sistema de financiamento. Não se pode simplesmente passar a obrigação às prefeituras, que respondem pelo serviço, mas não têm capacidade de investir. Temos bancos públicos de fomento, como o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], com uma grana violenta, que poderiam destinar valores substanciais como parte de uma política pública para o saneamento em médio e longo prazo. É falta de prioridade para uma questão tão vital”.
Panorama na bacia
A bacia hidrográfica do Rio das Velhas abrange área de 27.850 km², englobando 51 municípios, dos quais 44 têm suas sedes urbanas dentro dos limites da bacia, 21 desses com Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs) em funcionamento, ou 47,7%, segundo tese de doutoramento de Josiani Cordova, apresentada ao Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2020.
A Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais) administra os serviços de esgoto em 28 dos 51 municípios banhados pelo Rio das Velhas ou por seus afluentes. Em ordem alfabética, são eles: Belo Horizonte, Buenópolis, Capim Branco, Conceição do Mato Dentro, Confins, Contagem, Codisburgo, Corinto, Curvelo, Datas, Diamantina, Esmeraldas, Funilândia, Jaboticatubas, Lagoa Santa, Matozinhos, Pedro Leopoldo, Presidente Juscelino, Prudente de Morais, Raposos, Ribeirão das Neves, Sabará, Santa Luzia, Santo Hipólito, São José da Lapa, Taquaraçu de Minas, Várzea da Palma e Vespasiano.
A companhia informa ter investido, desde 2019, mais de R$ 518 milhões nos sistemas de esgotamento sanitário em sua área de atuação, o que inclui, por exemplo, investimentos na implantação de ETEs (24 cidades, segundo a Copasa), de redes coletoras e interceptores de esgoto sanitário.
Dados do SNIS para 13 das principais cidades da bacia do Rio das Velhas apresentam cenários ainda muito preocupante. Nova Lima, por exemplo, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), cujo serviço de saneamento é operado pela Copasa, embora trate 100% do total do esgoto coletado, tem meros 21,8% da população atendida pela coleta. Lagoa Santa, outro município da RMBH, não chega a 48% do esgoto coletado, e diversos outros não passam dos dois terços.
Na ponta do tratamento, a conta fica pior. Ouro Preto não chega a 1%, Sabará não sai do zero e Sete Lagoas, com mais de 240 mil habitantes, ainda patina na casa dos 10%, conforme informações do próprio Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE).
Nessa última cidade, que tem 96,4 % da população atendida com coleta de esgoto, a história se arrasta desde pelo menos 2006, quando se iniciou o processo licitatório para a construção da ETE Matadouro, até hoje não inaugurada. De acordo com o SAAE local, “em breve Sete Lagoas contará com a ETE Matadouro, que tratará 100% do efluente doméstico gerado na área urbana do município. O projeto é a realização de um sonho de mais de três décadas. O investimento de mais de R$ 70 milhões vai permitir a implantação da estação, que terá o maior alcance ambiental da história da cidade e vai melhorar a qualidade da água do sistema Rio das Velhas”.
Cidades da bacia ainda apresentam serviços de saneamento que não são capazes de suprir completamente a demanda de suas populações
Retomar o impulso
A entrada em operação das ETEs Arrudas e Onça, ambas da Copasa, na capital mineira, nos primeiros anos deste século, começou a mudar o panorama do saneamento na bacia do Rio das Velhas.
Marcos von Sperling, professor do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental (DESA) da Escola de Engenharia da UFMG e doutor em Engenharia Ambiental pelo Imperial College de Londres, salienta “o importante avanço verificado”. “Os benefícios foram sentidos logo”, diz, e relembra a Meta 2010 do Projeto Manuelzão, em parceria com o CBH Rio das Velhas, de “navegar, pescar e nadar” no trecho que cruza a RMBH. “Se tem peixe” diz von Sperling, “na biota aquática tem oxigênio dissolvido porque tem coleta e tratamento de esgotos. Com condições sanitárias melhores e o retorno dos peixes pela remoção de grande parte da carga poluidora, a saúde do rio e das pessoas agradece”.
Esse avanço importante procurou continuidade com os estudos para implantar o tratamento terciário nas ETEs Arrudas e Onça, anunciados ainda em 2017 pela Copasa. Cinco anos depois, no entanto, o projeto não evoluiu.
O tratamento terciário implica a remoção de poluentes específicos não removíveis pelos métodos convencionais e evita a eutrofização, que resulta na queda abrupta de oxigênio na água, afetando diretamente os peixes. Para von Sperling, “boa parte das ETEs precisa incorporar essa etapa, mas a maioria não tem, só remove matéria orgânica”.
“Para proteger a qualidade das águas isso tem que ser levado em consideração”, e continua: “É necessário rever a lei estadual de proteção das águas e incorporar padrões para esses lançamentos. Devemos levar isso em consideração dentro de uma agenda factível. Sabemos que em curto prazo é impossível, tem que ter mudanças tecnológicas, mas o argumento de que tem que tratar o básico primeiro já vem de 20 anos”.
Sua colega do DESA, a professora Sílvia Oliveira, doutora em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos pela UFMG, ressalta que “o esgoto doméstico é a principal fonte poluidora do Rio das Velhas”. Oliveira informa que “23 sedes municipais da bacia declaram que lançam esgoto in natura”, e prossegue: “Nossos corpos d’água têm índice de contaminação fecal próximo ao dos países mais pobres da África”.
Sobre as grandes ETEs, diz que “nem Arrudas nem Onça tratam em nível suficiente o Nitrogênio e o Fósforo” e que “não há remoção da contaminação fecal”.
A Copasa, por meio de sua assessoria de imprensa, assegura que a Fundação Cristiano Otoni foi contratada para realizar “estudo de avaliação de potenciais tecnologias para remoção de fósforo do efluente das ETEs Onça e Arrudas e o efeito de sua implantação sobre a qualidade da água do Rio das Velhas”.
O estudo teria duas abordagens distintas: na primeira, a estratégia de melhoria seria pautada na ampliação da cobertura da rede de coleta de esgoto, evitando-se os lançamentos de esgoto sanitário in natura nos corpos d’água receptores; na segunda, o foco seria a implantação do tratamento terciário nas ETEs Onça e Arrudas, principais ETEs localizadas na bacia hidrográfica do Rio das Velhas. O prazo para a elaboração dos estudos é de 300 dias e a ordem de serviço deverá ser dada no mês de maio.
Polignano lamenta: “Cada vez que se empurra o assunto para a frente, que não se toma essa iniciativa, é mais rio poluído, e nós corremos contra o tempo. Sabemos da necessidade da depuração do tratamento”. Von Sperling concorda: “é preciso evoluir numa taxa mais acelerada, temos que ir mais depressa. Saneamento é saúde pública”.
Implantação das ETEs Arrudas e Onça contribuiu para uma melhoria do saneamento na bacia do Velhas, porém especialistas indicam que avanços ainda são necessários
CBH com as mãos na massa
“O Comitê não tem como financiar essas obras de vulto, não tem esse papel, mas tem a missão de denunciar o descaso com a falta de investimento no saneamento das cidades, que, uma vez adotado, saneia a bacia, saneia o rio. Uma coisa está ligada à outra. O custo disso para essa geração e para as futuras é absurdo”.
O CBH Rio das Velhas não fica apenas na denúncia. Até março de 2021, já havia financiado, com recursos da cobrança pelo uso da água, a elaboração de 27 Planos Municipais de Saneamento Básico (PMSB) na bacia. “Isso é básico para o planejamento da estrutura necessária de água e esgoto”, lembra Polignano.
Desde o começo dos anos 2000, a atuação do CBH resultou “numa alavancagem enorme ao tratamento na RMBH, com as ETES Arrudas e Onça, tratando cerca de 70% dos esgotos coletados”, pontua, e evoca ainda o Programa Revitaliza Rio das Velhas, de 2017, pacto firmado entre o CBH, a Copasa, prefeituras, Fiemg (Federação das Indústrias do estado de Minas Gerais) e governo do estado pela conservação e revitalização do Rio das Velhas.
O próprio Plano Diretor de Recursos Hídricos (PDRH) do CBH Rio das Velhas, cuja primeira edição data de 2004, já assinalava que “o tratamento de esgotos é extremamente deficitário na bacia, gerando uma significativa carga remanescente de Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO), incompatível com a autodepuração na maioria dos trechos”.
O PDRH estimava, na revisão de 2015, que “três milhões de habitantes da bacia ainda não dispõem de serviços de esgotamento sanitário”. A chamada Agenda Marrom do PDRH, voltada para o saneamento ambiental, congrega 22,6% das ações e 22,4% dos recursos arrecadados pelo Comitê.
Eu Faço Parte
A campanha anual do CBH Rio das Velhas, lançada em março último, tem um de seus quatro pilares a questão do saneamento. De viés educativo e de mobilização social, traz o “objetivo de destacar os principais fatores de pressão que têm impactado gravemente o Rio das Velhas em quantidade e qualidade de águas, mobilizar a sociedade e visibilizar a necessidade urgente de incorporar a revitalização do Rio das Velhas na agenda político-institucional mineira”.
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala
Fotos: Bianca Aun; Michelle Parron