“Água para a Prosperidade e a Paz” é lema da ONU para 2024; números, no entanto, apontam para conflitos em que a água está em disputa
No dia 22 de março de 1992, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou a “Declaração Universal dos Direitos da Água”. Em 10 artigos, a organização procura ressaltar a importância da água para uma vida humana digna e, desde então, a data é celebrada anualmente como o Dia Mundial da Água. Este ano, a ONU propôs a reflexão “Água para a Prosperidade e a Paz”, trazendo à tona alguns números que, por vezes, passam despercebidos.
- 2,2 bilhões de pessoas não tinham condições para gerir com segurança a água potável em 2022;
- Cerca de 80% dos empregos são dependentes da água em países de baixa renda, onde a agricultura é a principal fonte de subsistência;
- 72% da captação de água doce é utilizada pela agricultura;
- 1,4 bilhão de pessoas foram afetadas por secas entre 2002 e 2021;
- Até 10% do aumento da migração global entre 1970-2000 esteve ligado a déficits de água.
Se os números são alarmantes e apontam para um conflito generalizado pelos recursos hídricos, a batalha pela água só será perdida se nos entregarmos ao alarmismo ou cedermos à apatia frente às previsões apocalípticas. É necessário entender as dinâmicas humanas e atuar na realidade para que seja possível garantir água em abundância e qualidade para todas as pessoas. Aqui eu te convido a enxergarmos esses números com um olho na realidade e o outro na arte.
“Como se a esperança fosse uma planta que crescesse com a chuva”
Se até 10% da migração global aumentou entre 1970 e 2000, segundo a ONU, por conta da escassez de água, no Brasil os fluxos migratórios em busca de água causados pela seca são também preocupantes. Muitos que moravam no Polígono das Secas – que atinge desde o norte de Minas Gerais até quase todos os estados da Região Nordeste – deixaram seus locais de origem em busca de melhores condições de vida.
No filme “O Auto da Compadecida”, baseado em obra homônima de Ariano Suassuna, João Grilo se safa do Inferno porque Maria, sua advogada, convence Manuel (Jesus) de que o travesso João pregava suas peças por necessidade: “João foi um pobre como nós, meu filho, e teve que suportar as maiores dificuldades numa terra seca e pobre como a nossa. Pelejou pela vida desde menino. Passou sem sentir pela infância, acostumou-se a pouco pão e muito suor. Na seca comia macambira, bebia os frutos do xiquexique. Passava fome e quando não podia mais rezava, e quando a reza não dava jeito ia se juntar a um grupo de retirantes, que ia tentar sobreviver no litoral. Humilhado, derrotado, cheio de saudade. E logo que tinha notícia da chuva pegava o caminho de volta, animava-se de novo, como se a esperança fosse uma planta que crescesse com a chuva”, diz Maria a Jesus.
O argumento dá conta do fato de que, onde não há água, não há também a possibilidade de enfrentar a vida com dignidade. Quando falta água, falta comida, falta trabalho – já que, também segundo o organismo internacional, 80% dos empregos em países de baixa renda são afetados pela escassez de recursos hídricos, uma vez que, nesses países, a agricultura costuma ser a principal fonte de subsistência. E, sem trabalho, mesmo a migração se torna uma ação arriscada.
“Preciso da bicicleta para poder gerar eletricidade. Com a eletricidade, posso conseguir água, posso fazer chover”
A gestão dos recursos hídricos não é simples. Mesmo onde há abundância de água, pode não haver qualidade para beber. A falta de água potável é um problema sério: de acordo com a ONU, em 2022, 2,2 bilhões de pessoas não possuíam instrumentos necessários para gerir a água potável com segurança, bem como 1,4 bilhão de pessoas foram afetadas por secas entre 2002 e 2021. No filme “O menino que descobriu o vento”, o jovem William Kamkwamba, do Malawi, país do leste da África, precisa encontrar, entre estudos e ferros-velhos, uma solução para a escassez de água que ameaça a vida de sua comunidade. Embora peça de ficção, o filme é baseado na história real de um menino que procurou, de todas as formas, construir uma bomba eólica para que as atividades agrícolas do local onde morava pudessem continuar e sustentar a vida.
O filme também é uma celebração do espírito de vida comunitária. Os conflitos são debatidos conjuntamente. As pessoas se reúnem em torno de lideranças anciãs, que não decidem sozinhos o que deve ser feito, mas orientam e aconselham os mais jovens. Há um ensinamento importante que evoca o passado como inspiração para o presente: “Mesmo rezando pra chover, os ancestrais sobreviveram porque permaneceram juntos”. Em tempos de mudanças climáticas e de escassez de água, lembrar que a vida humana se baseia no trabalho coletivo e nos laços comunitários é uma trilha que deve ser percorrida para se chegar a soluções para questões como essas.
“Perto de muita água, tudo é feliz”
Outro número importante diz respeito ao uso da água. Segundo a ONU, 72% da água doce captada no mundo
é usada para a agricultura. É claro, esse volume é utilizado para alimentar a população, mas o mesmo órgão aponta, na “Declaração Universal dos Direitos da Água”, no sexto artigo, que “A água não é uma doação gratuita da natureza; ela tem um valor econômico: precisa-se saber que ela é, algumas vezes, rara e dispendiosa e que pode muito bem escassear em qualquer região do mundo”.
Na prática, a legislação brasileira transformou essa constatação num instrumento de gestão de recursos hídricos. A Lei nº 9.433/1997 instituiu a Cobrança pelo Uso da Água como uma forma de racionalizar o uso dessa captação. Em Minas Gerais, a cobrança permite que o CBH Rio das Velhas possa lutar pela universalização do acesso à água em quantidade e qualidade para múltiplos usos. Desde 2011, todo o trabalho desenvolvido pelo Comitê só foi possível graças aos recursos da Cobrança pelo Uso da Água. De lá para cá, o CBH destinou quase R$ 71 milhões em projetos de recuperação ambiental, que têm um principal objetivo: a garantia de mais e melhores águas na bacia para todo mundo.
Para que as atividades que realizamos, do lazer à sobrevivência, sigam sustentando o que nos faz humanos, é necessário que todos nós nos envolvamos na discussão do futuro do planeta. Porque paz e prosperidade não são plantas que crescem com a chuva, não caem do céu nem brotam do chão como as nascentes de rios. Elas nascem da resolução humana por justiça e demandam trabalho, debate, educação. Mas, nesse processo, nós, agentes desses valores, podemos e precisamos buscar estímulos, seja na constatação da realidade ou no suporte da poesia, para não desanimar frente a tantas vozes que dizem que já não há mais volta.
É preciso seguir lutando por água para todos. Porque, como diz Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”, o grande inspirador do CBH Rio das Velhas, “perto de muita água, tudo é feliz”.
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Leonardo Ramos