Revista Velhas nº17 – Água: Substantivo feminino

25/09/2023 - 12:53

Referência global em estudos sobre governança, água e gênero, belo-horizontina Fernanda Matos fala à Revista Velhas sobre representação em colegiados e sobre como a igualdade de gênero pode contribuir para o alcance das metas relacionadas à emergência climática


 

“Fernanda Matos desempenha um papel importante para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, particularmente sobre a meta 6, focada em água potável e saneamento para todos. Como única representante brasileira na iniciativa de Monitoramento Integrado ONU-Água, ela integra um grupo de especialistas que ajuda o projeto a criar abordagens de contextualização de gênero nos indicadores globais que possibilitarão a elaboração de políticas baseadas em relevância de gênero em todo o mundo. Fernanda exemplifica a coragem e o compromisso de Alfredo Sirkis [jornalista, escritor, ambientalista e político brasileiro, que liderou o Centro Brasil no Clima e o Fórum Brasileiro de Mudança do Clima, falecido em 2020] com a ação climática.”

As palavras acima são do ex-vice-presidente dos Estados Unidos, ambientalista e prêmio Nobel da Paz, Al Gore, em 2022, quando concedeu à pesquisadora mineira Fernanda Matos o prêmio Alfredo Sirkis Memorial Green Ring Award, que prestigia ações de voluntários da iniciativa Climate Reality Project que mais se destacaram ao redor do mundo.

Graduada em Administração, Mestre em Turismo e Meio Ambiente e especialista em Gestão Estratégica de Marketing, Fernanda tem ainda Doutorado e Pós-Doc em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Desde 2017, atua como subcoordenadora do Projeto Governança e Recursos Hídricos, no Centro de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração da universidade.

É também responsável pelo desenvolvimento das publicações ‘Retratos de Governança das Águas no Brasil’, que busca apresentar análises de pesquisa sobre o processo de formação e perfil dos representantes membros dos organismos colegiados de gestão de recursos hídricos. “O estudo visa também colaborar para a difusão e socialização do conhecimento e falhas de governanças identificadas nos espaços colegiados, de modo que possa subsidiar a elaboração de políticas para fortalecimento da democratização na gestão das águas”, afirma.

Desde 2019, é editora colaboradora da Rede Brasil de Organismos de Bacia, na seção REBOB Mulher – um espaço para divulgar experiências, relatos, ações de engajamento de mulheres na área de meio ambiente e, especialmente, na gestão das águas.

Nesta entrevista à Revista Velhas, Fernanda Matos explica o que gênero tem a ver com gestão das águas, o que fazer para estimular uma representação mais igualitária nos Comitês de Bacias Hidrográficas e Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos de todo o país, e como a igualdade de gênero pode contribuir para o alcance das metas relacionadas à emergência climática.

Fernanda Matos é responsável pelo desenvolvimento das publicações ‘Retratos de Governança das Águas no Brasil’, que busca apresentar análises de pesquisa sobre o processo de formação e perfil dos representantes membros dos organismos colegiados de gestão de recursos hídricos.

 

O que te despertou a enveredar na pesquisa sobre governança, água e gênero?

Nos primeiros ENCOBs [Encontro Nacional dos Comitês de Bacias Hidrográficas], as pessoas me falavam: “você está vendo, tem poucas mulheres, tem poucos jovens” – e isso para o pesquisador é muito inquietante. Poucos é quanto? O que é pouco? Aí veio o projeto e a gente começou a ter números. Realmente são poucas [mulheres], são 30%. Assim, o estudo ‘Retratos de Governança das Águas no Brasil’ buscou apresentar de modo simples, mas sem ser simplista, as análises de pesquisa sobre o processo de formação e perfil dos representantes membros de Comitês de Bacias Hidrográficas. Como atividade de extensão, buscou colaborar para a difusão e socialização do conhecimento e falhas de governanças identificadas nos espaços colegiados, de modo que possa subsidiar a elaboração de políticas para o fortalecimento da democratização na gestão das águas.

Você analisou esses mais de 15 mil espaços de participação (entre titulares e suplentes) nos Comitês de Bacias Hidrográficas e Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos de todo o país. O que de principal lhe chamou a atenção?

Nos organismos colegiados de gestão das águas constituídos no país, o número de mulheres é baixo – apenas 31% nos CBHs estaduais, 27% nos CBHs interestaduais e 32% nos CERHs –, sendo ainda identificados problemas de igualdade de tratamento, como relatos de preconceito e práticas de silenciamento das participantes. É preciso ampliar o debate sobre as questões identificadas. A gestão sustentável dos recursos hídricos e a igualdade do gênero são interdependentes. O reconhecimento da importância do equilíbrio de gênero é fundamental para que possamos evoluir enquanto sociedade. Mesmo que este tema esteja em debate e muito se fale da participação da mulher na gestão de recursos hídricos é preciso que, na prática, isto se concretize de forma cada vez mais evidente.

Outro ponto que dificultou é que alguns sites estavam muito desatualizados – porque o primeiro ponto é mapear quantos Comitês criados e instalados têm, quantas pessoas estão destinadas a ocupar esses espaços, quantas cadeiras são entre titulares e suplentes, quantos participam. Feito isso, passa-se a entender quem está dentro. E são, em grande maioria, homens, de classe média alta, em torno de 50 anos, com graduação ou pós-graduação na área da engenharia – isso de um recorte nacional. Aí a gente questiona: qual é a representatividade do Comitê com relação a sua população? Outro dado que chama a atenção é que em alguns estados havia um grande número de cadeiras vagas. Esse exercício de olhar quem está dentro pode conduzir a dois pontos: primeiro, se a gente tem cadeira vaga, quem é que pode ocupar esse espaço? Um segundo é observar quem está fora. Quando você olha quem está dentro você exercita o pensar na diversidade. A gente precisa olhar quem não está dentro: comunidades, mais mulheres, mais jovens, mais pessoas de outras áreas. Não é isso o que preconiza a nossa legislação? Que tenhamos diferentes olhares, diferentes atores envolvidos na gestão das águas?

Participação masculina e feminina nos organismos colegiados de gestão das águas.

 

Minas é regra ou exceção nesse contexto?

Minas Gerais não é exceção à regra; pelo contrário, tem uma baixa participação feminina. São 27% de mulheres, portanto abaixo da média nacional, que é de 30%. Nós precisamos avançar em relação à participação! Algo que me chamou a atenção, que Minas destoa de todos os estados, em relação ao eixo representação/representatividade, é a participação de um mesmo representante em vários Comitês. Chega a ter membros que participam de sete, às vezes nove CBHs. Sendo os Comitês pensados sobre a ótica da territorialidade, o chamado “pertencer para falar”, se ele [conselheiro] está em sete ele não pertence a esses sete. Ele está de fato acompanhando? O que será que ele está levando para essas deliberações?

O que fazer para estimular uma representação mais igualitária nessas esferas?

Diálogo. O primeiro ponto é a identificação da questão. Quanto mais a gente conversa e vai falando sobre a necessidade de que é preciso ter igualdade nesses espaços de participação, que é preciso buscar equidade de participação, cada vez que a gente fala que é preciso que tenha diversidade nos espaços, a gente já acende um alerta. Outro ponto importante nessa identificação são os dados, é saber de fato quem está participando. São homens? São mulheres? Ao mapear isso, a gente pode encontrar alguns eixos de trabalho que vão estar relacionados à comunicação e divulgação para que mais mulheres participem, capacitação, produção de conteúdo direcionados para que elas estejam aptas a participar. Importante investigar junto às próprias mulheres se os horários das reuniões dos Comitês são bons para participar, se o espaço de participação é considerado seguro – imagine, a gente tem uma alta taxa de feminicídio no nosso país. Será que ela considera que é um ponto iluminado o suficiente, que tem acesso a transporte público? Se não vai atrapalhar os horários de buscar crianças – porque as mulheres ainda são responsáveis pelas atividades domésticas. São questões sobre a participação que a gente precisa começar a refletir internamente.

Lançamento do segundo volume do livro ‘Mulheres das Águas’, organizado por Fernanda Matos, se deu no último Encontro Nacional de CBHs, em 2022.

 

Em quais outros indicadores relacionados à governança os CBHs, a seu ver, precisam avançar?

Melhorar a articulação com a sociedade. A gente tem vários exemplos, como o [CBH Rio das] Velhas, que tem sim um trabalho muito interessante, o [CBH do Rio] São Francisco também, são Comitês que desenvolvem um trabalho de comunicação, de tentar o envolvimento com outros espaços. Mas grande parte dos representantes [do conjunto de CBHs de todo o país] considera que ainda não consegue transpor os espaços colegiados. Esse é um ponto em que a gente precisa caminhar, o espaço dos Comitês precisa ser reconhecido, o CBH ser reconhecido como um ator relevante, um ator importante para a comunidade do entorno. A gente precisa observar como fazer para transpor essa barreira junto às Assembleias Legislativas, junto às Câmaras Municipais, iniciativas da sociedade civil e do setor público, para que a opinião pública reconheça o Comitê como espaço legítimo e democrático de gestão das águas.

Em 2022, você ganhou o prêmio Alfredo Sirkis Memorial Green Ring Award, que prestigia ações de voluntários que mais se destacaram ao redor do mundo. Como foi essa experiência?

Eu diria que é uma daquelas coisas inesperadas e surpreendentes do viver. Difícil ainda explicar o sentimento de ganhar um prêmio e estar em uma chamada de vídeo para gravação com Al Gore, ex-vice-presidente dos Estados Unidos, ganhador do Prêmio Nobel, ativista ambiental, fundador do The Climate Reality Project. A voz, de tão embargada, quase falha na busca por agradecer. Muitas lágrimas derramadas de alegria, gratidão e outros muitos sentimentos, juntos e misturados.

Como esses dois assuntos se conectam? Como a igualdade de gênero pode contribuir para o alcance das metas relacionadas à emergência climática?

Quando a gente vai ler os estudos sobre gênero, sobre acesso à água, sobre mudança do clima, a gente observa que as mais atingidas são as populações vulnerabilizadas. Estão nas áreas de risco, há os que não possuem casa e a maior parte dessa fatia impactada são mulheres e meninas. Quando você impacta a vida de uma menina você vai criando ali um ciclo de pobreza e de exclusão que reverbera para outras pessoas. Essa necessidade de a gente repensar os modos de vidas na cidade, do combate à mudança do clima, de ter acesso à água, de ter o acesso ao saneamento é tirar as pessoas de uma situação de miséria – que em grande parte são mulheres e, em termos de interseccionalidade, especialmente pardas e negras. Eu gosto sempre de citar o exemplo da higiene menstrual. Em 2020, nós tínhamos mais de 1.500 escolas sem acesso à água, sem acesso a banheiro no Brasil. Isso é difícil, mas para a vida de uma menina isso ainda é pior. Entre os 13 e os 17/18 anos, idealmente ficamos em torno de 5 horas dedicados à escola. Se uma menina não tem acesso a banheiro, pelo menos em três dias do mês ela não vai conseguir ir à escola. Imagine o que isso impacta no aprendizado, na autoestima, na vida financeira dela? São mais de 173 mil meninas impactadas no Brasil pela falta de acesso a banheiro para ir à escola.

 


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Luiz Ribeiro