Desde 2010, a ONU (Organização das Nações Unidas) reconhece “que o acesso à água limpa e segura e ao saneamento básico são direitos humanos fundamentais” e que “o direito humano à água é indispensável para se viver uma vida com dignidade humana. É um requisito para a realização de outros direitos humanos”. A Constituição Federal de 1988, no entanto, ainda não reconhece o acesso à água de qualidade como direito fundamental entre os elencados no artigo 6o. Essa ausência constitucional é o reflexo de uma realidade em que o direito à água ainda não é plenamente exercido por todos – especialmente pelas pessoas em situação de vulnerabilidade.
É pobre porque não tem acesso a água ou não tem acesso a água porque é pobre?
A relação entre o acesso à água de qualidade e o desenvolvimento humano é um dado sobre o qual nem sempre se debruça detidamente. Segundo o relatório “As Múltiplas Dimensões da Pobreza na Infância e na Adolescência no Brasil”, de fevereiro deste ano, “a dimensão que mais contribui para a pobreza é saneamento (33,8%), seguida de renda (32,9%). Ou seja, de cada dez situações de privação que afetam crianças e adolescentes no Brasil como um todo, três estão associadas à falta de banheiro de uso exclusivo ou de um sistema adequado de esgoto, e outras três são relativas a um nível de rendimento inferior à linha de pobreza e de pobreza extrema”. Esse é um dado grave que expõe um círculo vicioso: é pobre porque não tem acesso a água, e não terá acesso a água porque é pobre.
“Essa visão da água como um recurso, como uma mercadoria, nos trouxe à situação em que estamos hoje: o déficit tanto no abastecimento de água quanto de esgotamento sanitário no Brasil é muito grande e, se formos ver os dados com lupa, esse déficit está concentrado nas periferias das grandes cidades e no meio rural, lugares onde estão as pessoas em situação de mais vulnerabilidade”, lembra Thaíssa Oliveira, Engenheira Ambiental e Coordenadora de Assuntos da Juventude do ONDAS (Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento).
A entidade “nasceu com o propósito de promover a ação conjunta, autônoma e crítica de instituições acadêmicas e de movimentos sindicais e sociais de todo o país, assegurando, dessa forma, a efetivação ao direito universal ao saneamento, por meio da gestão pública e democrática”. “Daí a necessidade de as políticas de saneamento incorporarem esses grupos sociais e entenderem que a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços não pode estar acima do direito das pessoas de terem acesso a eles”, completa Thaíssa. O ONDAS também trabalha para que o acesso à água como direito fundamental esteja expressamente assegurado na Constituição Federal. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC 06/2021) propõe o seguinte texto:
Art. 1º O art. 5º da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte
inciso LXXIX:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
LXXIX – é garantido a todos o acesso à água potável em quantidade
adequada para possibilitar meios de vida, bem-estar e desenvolvimento
socioeconômico.
Desenvolvimento humano na Bacia do Rio das Velhas
Enquanto a média de população com abastecimento de água na Bacia do Rio das Velhas é de 93,4%, dois pontos percentuais acima da média no Brasil, cidades como Monjolos e Presidente Kubitschek apresentam índices abaixo de 90% – 66,8% e 87% respectivamente, segundo dados do Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas – e estão entre as cidades mineiras com Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) entre médio e baixo. Não é coincidência. Se pensarmos que a água é essencial para a vida humana e que sua escassez ou baixa qualidade pode provocar doenças graves ou mesmo a morte, chegaremos à conclusão de que crianças e adolescentes excluídas desse direito terão problemas para concluir seu percurso escolar, trabalharão em empregos precarizados na idade adulta e, consequentemente, continuarão morando em regiões onde o acesso a água é precário.
A análise de Marcus Vinícius Polignano, secretário do CBH Rio das Velhas, segue na mesma direção. Para ele o direito à água tem o mesmo significado que o direito à saúde celebrado pela Constituição no artigo 6o e que, embora os serviços de saneamento tenham custos, as pessoas não podem ser cobradas por ele da mesma forma. “Considero que o acesso à água e ao saneamento é um direito equiparado ao direito constitucional da saúde – direito do cidadão e dever do Estado. Há cerca de 30 anos, houve um investimento muito grande na universalização de água potável para as populações urbanas. Na Bacia do Rio das Velhas, essa universalização praticamente se efetivou – algo perto de 5% da população ainda não tem acesso a água potável. Mas isso não significa também igualdade na disponibilidade e distribuição dessa água. Nas periferias de Belo Horizonte, Ribeirão das Neves e Esmeraldas, por exemplo, essa distribuição se dá com irregularidade. É importante que haja políticas redistributivas para garantir equidade social. É preciso tratar os desiguais desigualmente, não se pode aplicar a mesma taxa de serviço para os diferentes estratos sociais”, alerta.
Medicina e o Rio das Velhas
Em 1997, professores de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), preocupados em combater as causas das doenças que atingem as populações em situação de vulnerabilidade, investiram em medicina preventiva criando o Projeto Manuelzão, elegendo a Bacia do Rio das Velhas como território de atuação. Os Núcleos Manuelzão foram as sementes que deram origem aos Subcomitês do CBH Rio das Velhas, num trabalho que funde defesa das águas e melhoria da qualidade de vida. “O Projeto Manuelzão nasceu na Faculdade de Medicina por entender que saúde, ambiente e cidadania estão intimamente relacionados. Indicadores como mortalidade infantil, doenças de veiculação hídrica e epidemias dessas doenças são maiores onde faltam condições adequadas de saneamento. O Manuelzão atua não só na saúde das pessoas, como também recupera a saúde do rio”, conclui Polignano.
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Leonardo Ramos
*Fotos: Thaíssa Oliveira – Acervo Pessoal; Ohana Padilha; Michelle Parron