Completados cinco anos da tragédia da Vale em Brumadinho, quais são as consequências ainda presentes na bacia do Rio das Velhas?
Quis o destino – ou algo que o valha – que meu primeiro trabalho como repórter fotográfico fosse em Brumadinho, no dia 26 de janeiro, há cinco anos. Com a câmera na mão e a bota na lama, testemunhei de perto um cenário que em tudo se assemelhava ao de uma guerra: devastação, acessos fechados, helicópteros, buscas profissionais e amadoras por sobreviventes, pessoas entre atônitas e desesperadas. O rompimento da barragem da Mina de Córrego do Feijão, empreendimento da Vale em Brumadinho, foi uma tragédia ambiental e humana de gigantesca proporção que, cinco anos após, ainda está presente – seja na mancha da lama que não sai da bota usada naquele dia, seja nos impactos causados, alguns dos quais jamais serão reparados, permanecendo como cicatrizes de um evento traumático.
Foram mais de 270 pessoas mortas, das quais três ainda não encontradas. O Rio Paraopeba está longe de se recuperar, e o das Velhas, que conta com o irmão para abastecer a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), vive a insegurança da pesada missão de fornecer água para uma população que supera a casa dos milhões. Embora geograficamente separados, Paraopeba e Velhas fazem parte de um todo, cujas partes que separamos e nomeamos se comunicam e se influenciam mutuamente.
Além disso, o que aconteceu com o Paraopeba também pode acontecer com o Rio das Velhas, uma vez que há também barragens de rejeito que, se rompidas, podem repetir a tragédia que devastou Brumadinho e levar a Grande BH a uma situação de caos hídrico.
Os impactos diretos e indiretos na bacia do Rio das Velhas
Inaugurada em 2015, após um período crítico de escassez hídrica, a captação a fio d’água no Rio Paraopeba tinha como objetivo criar mais uma camada de segurança para o abastecimento de água na RMBH e servir de apoio para a segurança hídrica na bacia do Rio das Velhas. É importante notar que cerca de 71% da população da bacia mora nessa região, situada na porção mais alta do rio. Isso quer dizer que, estando o Rio das Velhas sobrecarregado no abastecimento da RMBH, todo o restante da população na bacia a jusante sofreria também com a escassez hídrica. Segundo a Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais), hoje, o Sistema Paraopeba, constituído pelas represas de Rio Manso, Serra Azul e Várzea das Flores, construídas nos afluentes do rio, contribui com 28% do abastecimento de Belo Horizonte e 48% da RMBH.
Quando ocorre o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019, a captação direta na calha do Paraopeba fica comprometida pela contaminação causada pelo rejeito de minério e é imediatamente interrompida.
Nesse sentido, os Comitês das Bacias Hidrográficas (CBHs) dos Rios das Velhas, São Francisco e Paraopeba se uniram, logo após a tragédia, na cobrança por reparações das consequências que afetaram a todos. Para a bacia do Rio das Velhas, a principal reparação consistia em construir um outro ponto de captação no Paraopeba que pudesse cumprir a função daquele que foi comprometido no rompimento da barragem.
Em agosto daquele mesmo ano, a Vale se comprometeu, diante dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, a construir um novo ponto de captação no Paraopeba, 12 km a montante do local onde a lama foi despejada. De adiamento em adiamento, cinco anos se completaram sem que o compromisso fosse cumprido. Questionada sobre essa questão e outras, a Vale não se pronunciou até o fechamento desta matéria.
Com a captação a fio d’água interrompida há cinco anos no Rio Paraopeba, uso do Rio das Velhas para abastecer a RMBH se intensificou. A Estação de Bela Fama da Copasa, em Nova Lima (esq). Ex-presidente do CBH Rio das Velhas e atual vice-presidente do CBHSF, Marcus Vinícius Polignano (dir) cobrou à época reparação integral dos impactos da tragédia.
Mas os impactos são mais profundos – literalmente
“Na crise hídrica de 2014/15, o Rio das Velhas praticamente secou – o que não é permitido por lei. Você não pode matar um rio nem mesmo para suprir a necessidade de abastecimento. A Copasa, então, resolveu ver onde poderia melhorar a questão da segurança hídrica. Foi aí que se iniciou o processo de captação de água na calha do Paraopeba. Com a tragédia da Vale em Brumadinho, aquela onda de lama destruiu a captação da Copasa que estava na margem do rio, e nós voltamos ao cenário pré-crise hídrica de 2014”, resume o geólogo e pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear (CDTN) e membro do Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela, Paulo Rodrigues. Para ele, no entanto, o problema é – literalmente – mais profundo.
Paulo explica que as águas dos rios, como as do Paraopeba e do Velhas, são, em suas palavras, “dádivas” das águas subterrâneas que, armazenadas nos aquíferos, acabam transbordando para a superfície quando saturadas, formando as nascentes dos rios. “Os aquíferos são como caixas d’água, onde essas águas subterrâneas ficam armazenadas. O que vemos na superfície, nos rios, é, em média, 1/40 do que está no aquífero. Quando ele está saturado, essa água começa a sair pelos olhos d’água. Todo olho d’água, toda nascente é resultado dessa saturação. É como a caixa d’água que transborda e sai pelo ladrão, como se dizia antigamente”. Dessa forma, as nascentes funcionam como “sentinelas” do que ocorre no subterrâneo. Se elas secam, significa que algo de errado está acontecendo no aquífero”, observa.
Geólogo Paulo Rodrigues chama a atenção para a necessidade de preservação dos aquíferos, para garantir perenidade no afloramento das águas.
Ocorre que, segundo ele, o Quadrilátero Ferrífero, onde estão localizadas as nascentes do Rio das Velhas, possui uma característica única no planeta: devido ao fato de o minério de ferro ser um aquífero de grande qualidade, e de que, nessa região, esse minério está localizado em topo de morro, a atividade mineradora destrói os aquíferos responsáveis pelas nascentes dos rios. “Então, nós temos um sério problema: ou você preserva as zonas de recarga e os aquíferos para o bem de todos – inclusive dos empresários e das empresas, que necessitam da água para suas atividades – ou você minera, o que vai beneficiar apenas os empresários da mineração, em detrimento do interesse público. Aí temos um conflito hídrico gravíssimo, que não existe em nenhum outro lugar do mundo, só no Quadrilátero Ferrífero”, alerta.
Conclusão: o rompimento de barragens não é o único nem o maior problema. Paulo também chama a atenção para o fato de que mesmo as barragens que não estão em risco podem estar despejando metais pesados e produtos químicos nos rios, uma vez que não há fiscalização suficiente para assegurar que a água drenada das barragens esteja livre desses elementos.
Questionada sobre se a mineração ao longo da bacia do Rio das Velhas compromete a qualidade da água captada, a Copasa informou que “o monitoramento é feito pelos órgãos ambientais. Entretanto, a Companhia também monitora a qualidade da água bruta captada para verificar sua capacidade de tratamento e, até o momento, a estação de Bela Fama [no Sistema Rio das Velhas] atende a todas as condições para fornecer uma água dentro dos padrões de potabilidade definidos pela legislação”.
Quadrilátero Ferrífero ocupa grande parte do chamado Alto Rio das Velhas, região onde é produzida grande parte da água que abastece a RMBH. Especialista aponta “conflito hídrico gravíssimo”.
Há alternativas?
Segurança hídrica diz respeito não só à quantidade de água disponível para consumo humano, como também, obviamente, à qualidade dessa água. O CBH Rio das Velhas se dedica a enfrentar os obstáculos nessas duas frentes. Ronald Guerra, vice-presidente do Comitê, reflete sobre estas questões: quais são as alternativas, então, para garantir a segurança hídrica na bacia frente aos riscos que a atividade minerária impõe?
“A tragédia que ocorreu em Brumadinho afetou também o imaginário das pessoas, a relação que elas têm com a própria bacia hidrográfica e com a segurança. Há muitas barragens na bacia do Rio das Velhas. Qualquer acidente pode ter as dimensões que ocorreram nessas grandes duas tragédias [Mariana, em 2015, e Brumadinho, em 2019]. Esse é um risco objetivo que mexe com a segurança das pessoas”, pontua. Nesse sentido, há inúmeras propostas de ampliação dos sistemas de captação já existentes, das quais algumas ainda carecem de maior discussão, tendo em vista que qualquer intervenção humana gera impactos ambientais em maior ou menor grau.
Vice-presidente do Comitê, Ronald Guerra (esq) chama a atenção para risco extremo em caso de eventual rompimento de barragem na bacia do Rio das Velhas. Projeto costurado pelo MPMG (dir), lançado em novembro de 2023, prevê aporte de R$ 7,5 milhões a ser investido no Alto Rio das Velhas.
Após a tragédia, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) impôs alguns Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) à Vale no intuito de garantir a reparação possível e necessária à devastação causada. Um deles, o TAC “Água”, teve recursos para as bacias do Paraopeba e do Velhas recentemente aprovados. “O TAC Água define a entrega de projetos para ampliação do Sistema Rio Manso. Além disso, há um projeto de barramento que a gente vê com uma expectativa não muito positiva que é na Ponte de Arame [no leito do Rio das Velhas]. Há o sistema de captação do Ribeirão da Prata, do Ribeirão Macaúbas… esses últimos são estudos previstos como ampliação com poços artesianos, bem detalhados e sendo discutidos com um olhar cuidadoso para o impacto que eles podem também causar no território da bacia”, conta Ronald.
O CBH Rio das Velhas vê com precaução a proposta do barramento Ponte de Arame por ocorrer em um cânion com uma área extensa de Mata Atlântica com vestígios arqueológicos e que, segundo Ronald, seria mais bem aproveitado como uma Unidade de Conservação própria para turismo. O barramento seria construído a jusante da barragem de Rio das Pedras, em Itabirito, em franco processo de assoreamento.
Uma das possibilidades ventiladas a fim de garantir segurança hídrica é a construção de barramento no leito do Rio das Velhas. Comitê vê com preocupação a proposta.
Ainda como desdobramento do TAC Água, o projeto “Água e Sustentabilidade: Segurança Hídrica para a Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH)” prevê o aporte de R$ 7,5 milhões, provenientes da compensação pela tragédia da Vale em Brumadinho, a serem investidos na sub-bacia do Rio Maracujá, no Alto Rio das Velhas, em ações do CBH Rio das Velhas de recuperação de áreas degradadas que já estão em andamento. Essa microbacia vem sofrendo com voçorocas e despejo de resíduos sólidos e esgoto.
Para Ronald, a preocupação do CBH Rio das Velhas coincide com o pensamento do Paulo Rodrigues: a mineração no Quadrilátero Ferrífero, berçário do Rio das Velhas, é um ponto de extrema atenção: “O mais importante é observar que a gente precisa ampliar todo o programa de revitalização das cabeceiras do Rio das Velhas, que abastecem a RMBH, pensando em aumentar a oferta de qualidade e quantidade de água através da proteção desses mananciais. Todo esse sistema de exploração na cabeceira tem tido desdobramentos da grande mineração em pequenas minerações, que estão surgindo com licenciamentos mais simplificados e transportando minério bruto ou minério tratado através das rodovias – e que, no final da história, é adquirido principalmente pela Vale, para ser exportado no mercado internacional”, lembra.
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Leonardo Ramos