Subprodutos do tratamento de esgoto lançados no rio matam – mas, se bem manejados, podem ser fonte de vida
Cortada pelo Rio das Velhas, a cidade centenária de Jequitibá, antigo distrito de Sete Lagoas, deve sua fundação ao rio. Localizada no Médio Rio das Velhas, o município que recebeu seu nome da maior árvore da Mata Atlântica sofre, anualmente, os efeitos da escassez hídrica bem de perto. Nos meses de estiagem, suas águas mudam de cor e, na superfície, aguapés podem ser vistos. Embora os próprios aguapés não ofereçam riscos à saúde humana, eles são indicadores de que algo mudou no rio.
Geraldo Ladim, mais conhecido por Seu Ladim, um dos pescadores mais tradicionais da região de Jequitibá, sabe ler essas mudanças do rio, como a cor esverdeada e a falta de peixes. “De 50 anos pra cá, o Rio das Velhas vai só morrendo. Olha a cor da água. Você vem aqui pescar e não leva nada pra casa… que alegria que vai ter? Alegria nenhuma”, lamenta.
Pescador em Jequitibá, Geraldo Ladim vê de perto as alterações no rio, causadas especialmente pela RMBH
Os principais responsáveis por essa baixa oxigenação do rio, que diminui a disponibilidade de peixes, é a presença, em grande quantidade, de dois elementos químicos na água: nitrogênio e fósforo, que funcionam como nutrientes para algas microscópicas e cianobactérias. A presença exagerada desses seres vivos no rio, que leva também à proliferação de aguapés, diminui a penetração dos raios solares, dificultando a fotossíntese e, dessa forma, deixando o rio turvo e com baixas taxas de oxigênio dissolvido na água. Esse processo é conhecido como eutrofização.
Esses elementos percorrem nosso corpo através da alimentação e são descartados nas fezes, chegando ao rio principalmente pelo esgoto não tratado ou por aquele que foi tratado, mas não passou por nenhum processo de retirada de fósforo e nitrogênio. Os efeitos da eutrofização são mais visíveis no Médio e Baixo Rio das Velhas, após o rio já ter recebido descargas consideráveis de esgotos e efluentes da Grande BH e de cidades como Sete Lagoas.
Mas, e se o esgoto tratado não tivesse como destino os rios?
Proliferação de aguapés tornou-se comum no Médio Rio das Velhas, em tempos de estiagem. Em destaque, o rio em Santo Hipólito.
O ciclo dos elementos
Professor aposentado na UFMG e ex-coordenador do INCT em ETEs Sustentáveis, Carlos Chernicharo propõe a economia circular no tratamento do esgoto.
“O tratamento de esgoto, na maioria das vezes, passa pelos níveis primário e secundário. Isso é muito eficiente na remoção de matéria orgânica, mas existem compostos, como nitrogênio, fósforo e organismos patogênicos, que normalmente não são removidos no tratamento secundário”, explica Carlos Chernicharo, professor titular aposentado do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Escola de Engenharia da UFMG, ex-coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em ETEs Sustentáveis. Para retirar esses elementos do esgoto tratado, então, seria necessário tratá-lo mais uma vez – chegando na etapa do tratamento terciário. “No entanto, a remoção de nitrogênio, principalmente, é muito cara. Por isso é importante pensar em novas formas de disposição do esgoto tratado que não sejam o rio. O que é um esgoto tratado? Ele tem água, que é um recurso hídrico; ele tem nitrogênio e fósforo, que são fertilizantes”.
Esses elementos, que seriam nocivos para a vida no rio, são ingredientes importantes para a fertilidade do solo. O nitrogênio compõe as células das plantas e o fósforo é responsável pelo gerenciamento de energia delas. O ciclo do fósforo se inicia nas rochas, que, através do intemperismo, são depositados no solo e absorvidos pelas plantas. Já o nitrogênio, presente na atmosfera, nutre os vegetais através da chuva que cai sobre a terra. O ciclo natural se completa, então, quando devolvemos cada um deles à terra ou ao ar. Se jogamos esses nutrientes na água, o ciclo não se fecha.
“O Brasil importa esses fertilizantes. Alguns deles, como o fósforo, são finitos no planeta. Com a guerra entre Rússia e Ucrânia, a possibilidade de importar esses fertilizantes diminui. A produção do nitrogênio para as nossas culturas agrícolas tem também um custo exorbitante, além de emissões de gases de efeito estufa. Então, por que não aproveitar a água, o nitrogênio, o fósforo que estão no esgoto tratado, para praticar a fertirrigação? Dessa forma, estaríamos retornando para o solo, para as plantas, os nutrientes que vieram de lá a partir dos alimentos que consumimos, fechando, então, um ciclo, e praticando a economia circular no tratamento do esgoto”, conclui Carlos.
Na bacia do Velhas
Lucas Chamhum, também engenheiro ambiental e sanitarista, evidencia alguns dados que podem apontar para um reaproveitamento dos subprodutos do tratamento do esgoto. “Dos subprodutos, temos a fração de nitrogênio e fósforo presentes na fase líquida do esgoto tratado – que, na bacia do Rio das Velhas, é despejada integralmente nos corpos d’água – e o lodo, que precisa ser desidratado dentro da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE), mas hoje está sendo direcionado para aterros sanitários ou tendo outros destinos. Ou seja, não está sendo aproveitado”, alerta.
Em sua pesquisa de Mestrado, Lucas avaliou áreas potenciais de uso agrícola do lodo de Estações de Tratamento de Esgoto Doméstico nas bacias dos Rios das Velhas, Jequitaí e Pacuí. Ele chama atenção para o fato de que as ETEs podem destinar o lodo proveniente do esgoto para outros lugares que não o aterro sanitário. O tratamento terciário, segundo ele, pode levar a um investimento financeiro desnecessário.
Tratamento secundário promovido pelas ETEs convencionais não remove nutrientes, como nitrogênio e fósforo.
“É um pouco contraditório você tratar o esgoto removendo nitrogênio, fósforo, gerar lodo e, depois de tudo isso, dispô-lo no aterro sanitário. Nesse processo, o ciclo desses elementos não se fecha, e a infraestrutura de tratamento, que já é precária, fica sobrecarregada. Ao passo que a utilização na agricultura possibilita essa regeneração, explica.
“O lodo que sai da ETE está com teor de sólidos de até 5%. Transportar essa massa com 95% de água para longas distâncias é inviável. Esse efluente também não pode ser despejado no aterro sanitário para não causar instabilidade do maciço de resíduo. É preciso desidratá-lo até a proporção de em torno de 25% de sólido. Hoje, na bacia, acaba por aí o tratamento. No entanto, esse lodo gerado pode ser utilizado na fertirrigação após sua higienização”, conta Lucas. Mas a fertirrigação não é a única alternativa de reuso. “Falamos muito em fertirrigação, que é o reuso para fins agrícolas, mas existem outras possibilidades. Você pode ter o reuso, por exemplo, para batimento de poeira. Você pode ter o reuso industrial, urbano não potável… Enfim, são várias possibilidades”, finaliza.
Ainda que em níveis que atendam à legislação, efluentes lançados nos rios causam impactos. Eutrofização pode diminuir a concentração de oxigênio nos rios, causando a mortandade de peixes.
Na bacia do Iguaçu
No Paraná, a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) tem, hoje, 41 Unidades de Gerenciamento de Lodo de Esgoto (UGLs) em todo o estado. Lá, estudos iniciados na década de 1980 já apontavam para uma destinação sustentável do lodo de esgoto. O reuso do esgoto começou no fim da década de 1990 e a primeira UGL foi implantada em 2006. Desde então, aproximadamente 423 mil toneladas de lodo foram geradas, sendo que, em 2022, quase 23 mil foram destinadas para a fertirrigação. Hoje, a Sanepar atende 157 agricultores em aproximadamente 58 municípios paranaenses.
Rebert Skalisz, engenheiro agrônomo da Sanepar, conta que o lodo de esgoto produzido atualmente é insuficiente para atender todos os produtores rurais que se interessam pelo produto. “Hoje em dia há mais demanda de produtores do que de material para ofertar. Os agricultores estão cada dia mais interessados nesse produto. No início houve diversas questões, principalmente com relação ao manuseio, uma vez que é um material muito mais úmido que os fertilizantes convencionais. Porém, hoje, com novas tecnologias, oferecemos um biossólido bem mais seco”, celebra.
Há diversos processos para a higienização do lodo, mas, segundo Rebert, o mais barato para a realidade de Curitiba é a “estabilização alcalina prolongada, que consiste em adicionar cal virgem numa proporção entre 30% e 50% em relação ao teor de sólidos totais do lodo, que elimina os patogênicos. Mas isso depende da região”, pontua. Além disso, a Sanepar cobre os custos do transporte do biossólido e, no caso da capital paranaense, até mesmo os de aplicação.
“O lodo é um indicador de qualidade: quanto mais lodo é gerado, mais o esgoto foi bem tratado. Lançar o lodo em aterros sanitários causa um grande impacto, uma vez que são construídos para receber rejeitos que, em geral, não podem ser reaproveitados. O lodo, por ser matéria orgânica, não deveria ser destinado aos aterros, uma vez que pode ser reaproveitado em atividades como, por exemplo, a fertirrigação”, finaliza.
Agricultores de 58 municípios no Paraná recebem lodo para fertirrigação em suas propriedades. Rebert Skalisz, da Sanepar, diz que lugar de lodo não é no aterro. Lavoura de café em Jandaia do Sul, no Paraná, foi biofertilizada com lodo de esgoto tratado.
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Leonardo Ramos