Obra: Caftan Desert
Artista: Nila
Acrílica s. Papel Canson 140g
20×20 cm – 2018
Lá vão elas andando com latas na cabeça por quilômetros, em busca de um poço para matar a sede dos irmãos e dos filhos. Lá estão elas, lavadeiras, à beira do córrego esfregando roupa por roupa para sustentar a família. Em casa, a função delas é limpar, lavar, cozinhar e cuidar das crianças. Por questões culturais, a divisão de papéis entre mulheres e homens na sociedade acabou empurrando a mulher a criar uma relação muito mais próxima à água. Embora sem essa consciência, ao desempenharem diferentes papéis como prover água, limpar e cuidar da casa e dos filhos, elas se tornaram uma espécie de gestoras da água, esse bem essencial para a vida no planeta.
Seria um caminho natural pensar que decisões políticas e elaboração de leis que versem sobre água, esgoto e higiene tivessem a participação expressiva e efetiva das mulheres. Afinal, são elas as que mais sofrem com a falta d’água e inexistência de saneamento básico. São elas que assumem os cuidados com familiares doentes pela ingestão de água insalubre e pela ausência de tratamento de esgoto. Mas não é essa a realidade no Brasil.
Mesmo com a maioria dos habitantes formada por mulheres, no Brasil elas são apenas 28% das cadeiras do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), 38% da Agência Nacional de Água (ANA) e 27% dos Comitês interestaduais. Nos Subcomitês do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas) elas ocupam 34% dos lugares. Esses dados apontam que mulheres e homens estão longe de terem as mesmas oportunidades de participar, refletir, debater e pensar sobre fornecimento, gestão e proteção da água no país.
Para mostrar que a desigualdade de gênero não é exclusividade do meio ambiente, entre os 16 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU), está inserido “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. O tema divide o mesmo espaço de importância com outras urgências como erradicar a pobreza, acabar com a fome e garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos.
Além da baixa representatividade das mulheres, quando presentes e participantes, um outro fator dificulta sua contribuição nas decisões: o respeito a sua fala.
Para combater a desigualdade de gêneros a ANA criou, em 2016, o Comitê Pró-Equidade de Gênero da ANA (CPEG) com o objetivo de incorporar às ações de gestão da água o princípio de que a mulher desempenha um papel central no fornecimento, na gestão e proteção da água.
Desde que foi criado, algumas mudanças já foram percebidas por Mariane Ravanello, superintendente-adjunta de Planejamento de Recursos Hídricos e coordenadora do Comitê Pró-Equidade de Gênero da ANA. “Uma das evoluções que percebemos é na questão qualitativa. Não sabemos se dá para ligar a mudança apenas a essa ação do comitê ou a toda evolução do tema gênero dentro da ANA, mas qualitativamente nós já estamos sendo mais ouvidas”, diz a coordenadora.
Mariane Ravanello coordena o Comitê Pró-Equidade de Gênero da ANA.
Perceber e levantar dados concretos. A pesquisadora Fernanda Matos, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), se inquietou com a ausência de mulheres na gestão de recursos hídricos e resolveu apurar como estava a participação delas em números nos Comitês de bacias hidrográficas pelo Brasil. Em parceria com outras instituições e pesquisadores, Fernanda iniciou um levantamento nos 223 Comitês. “Apesar de serem 12 mil espaços de participação nos Comitês (entre titulares e suplentes), identificamos que nos Comitês estaduais a participação da mulher corresponde a 31%. A outra questão levantada pela pesquisa é que muitas vezes as mulheres estão nesses espaços, mas a influência delas ainda é limitada porque é sempre barrada. Toda vez que ela tenta falar alguém atropela, apropria da vez de fala, da ideia, e assim vai enfraquecendo sua participação”, diz a pesquisadora.
A bacia do Rio das Velhas teve um avanço importante em 2020 ao eleger, pela primeira vez, uma presidenta do CBH Rio das Velhas. O cargo é ocupado pela engenheira ambiental Poliana Valgas.
Mas no CBH Rio das Velhas a balança entre gêneros segue desequilibrada. As Câmaras Técnicas e Grupos de Trabalho, que são instâncias de discussão e decisão, ainda são espaços dominados pelos homens. A CTOC (Câmara Técnica de Outorga e Cobrança), por sua vez, é a única coordenada por uma mulher, a Heloísa França. Para a bióloga é um desafio pessoal e profissional assumir essa cadeira. “No começo não foi fácil. Mulher e ainda com apenas 36 anos. Mas o conhecimento que eu tinha, o apoio dos conselheiros e a minha dedicação diária aos estudos me atualizam e me ajudam a ficar preparada. Eu me cobro muito e não gosto de titubear quando sou questionada”, explica.
“
“É uma honra ser a primeira mulher. Estou abrindo precedentes para outras mulheres, que é o que mais me deixa feliz. Cada mulher da bacia hoje pode enxergar que aquele espaço é para ela também.
Temos que parar de achar que não podemos chegar a certos lugares e a minha presença representa muito isso. Mostra a todas da bacia que é possível estar em uma posição de comando”
Nos Subcomitês o desafio é o mesmo. Maria Luiza Lelis Moreira é psicóloga social e ambiental e atua como conselheira do Subcomitê Ribeirão Onça e do CBH Rio das Velhas. Como mobilizadora social, ela está há 10 anos no Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu (COMUPRA) e no movimento Deixa o Onça Beber Água Limpa. De lá para cá, Maria percebeu avanços, mas a luta é diária. “Há 10 anos atrás eu me lembro que as mulheres eram vistas e lembradas apenas como aquelas que vão fazer números na hora de uma votação, que vão levar um lanche para uma reunião ou preparar a sala para deixá-la limpinha e cheirosa. Não como as mulheres pensadoras, engajadas, que poderiam contribuir com todas as suas vivências”, relembra.
O acúmulo histórico de funções também impede a participação das mulheres nesses espaços. A sobrecarga vem com as tarefas de casa, nos cuidados com os filhos, o trabalho doméstico, o trabalho fora de casa, os estudos. Diante de tantas funções, sobrar espaço para participar de ambientes importantes de decisão, como é o caso dos Subcomitês, envolve administrar tempo e fazer um esforço bem maior que dos homens. Para Mariane, da ANA, nossas políticas e processos precisam se adaptar à realidade das mulheres. “O acúmulo de tarefas é a variável que faz acontecer a menor participação. A solução não é onerar a mulher com mais essa função, mas transformar o sistema de uma forma que este consiga receber mais essa mulher”.
Uma possibilidade é mudar o desenho de como são feitos os encontros e as reuniões, sugere a pesquisadora Fernanda. “Como podemos facilitar para que mais mulheres participem com reuniões e eventos que não coincidam com horários de entrada e saída de crianças da escola? Vai ter espaço para levar a criança e ela será aceita? Terá alguém para tomar conta ou a mãe poderá ficar com ela durante a reunião?”.
O fato é que não falta interesse das mulheres em ocuparem esses lugares. Envolvimento que Carolina Noronha, conselheira do Subcomitê Rio Cipó, percebe desde a escola. Carolina é formada em geografia e professora no distrito da Serra do Cipó, no município de Santana do Riacho. Ela desenvolve algumas ações com os alunos de educação ambiental. Nas atividades propostas, a conselheira nota um envolvimento feminino maior. “Eu percebo uma maior preocupação das mulheres, não só com o meio ambiente em si, mas com as questões coletivas. Percebo que elas têm maior seriedade em tratar os assuntos e percebo um engajamento maior das meninas nas atividades de educação ambiental.”
Além de respeitar o espaço das mulheres e promover ações que equilibrem a participação de mulheres e homens na gestão das águas, o que mais pode ser feito?
Tamires Clei Nunes, coordenadora do Subcomitê Rio Curimataí, acredita que falta mais informação. Ela chegou ao Subcomitê ao ver um cartaz de um evento. Curiosa, foi entender do que se tratava e começou a participar. “Uma das minhas ações é a divulgação do que fazemos pelas redes sociais. O Instagram hoje é a nossa vitrine de projetos e ações. Quando pudermos voltar aos encontros presenciais, penso em fazer seminários temáticos sobre gênero e rodas de conversa. Esse trabalho de inserção da participação das mulheres é de formiguinha, construído na base. E é preciso chegar na base e fazer os convites”, diz a coordenadora.
Uma realidade bem diferente da que vimos até aqui é a ocupação feminina na Agência Peixe Vivo. As mulheres são 73% da agência, o que significa que 22 dos 30 cargos são ocupados por mulheres. Só na direção executiva são quatro mulheres e apenas um homem. A Diretoria geral, comandada por Célia Fróes, também alcançou um lugar de destaque. Célia é a única mulher à frente de uma agência de bacia, das cinco que existem hoje no Brasil. A entidade responsável por dar apoio administrativo, técnico e financeiro ao CBH Rio das Velhas tem a direção da Célia há 10 anos. “Os primeiros anos foram difíceis para se criar uma relação de confiança e respeito junto aos Comitês, principalmente pelo fato de eu ser mulher e estar na linha de frente de uma agência para gerir um montante financeiro expressivo”, relembra ela.
Coordenadora do Subcomitê Rio Curimataí, Tamires Clei Nunes aguarda a volta dos encontros presenciais para a realização de seminários e rodas de conversa sobre gênero. Célia Fróes é diretora geral da Agência Peixe Vivo, onde a presença feminina representa 73% dos colaboradores. Heloísa França é a única mulher à frente de uma câmara técnica do CBH Rio das Velhas.
A preocupação com a participação das mulheres nos Subcomitês do CBH Rio das Velhas motivou uma ação, promovida pelas mulheres, realizada em março deste ano. Representantes de toda bacia, da ANA, da Agência Peixe Vivo, pesquisadoras e outras profissionais se encontraram no Webinário “Água e Gênero – O protagonismo da mulher na gestão das águas da bacia do Rio das Velhas”. Com levantamento de dados, trocas de experiências e desafios que enfrentam no dia a dia, elas compartilharam suas vidas, percepções e atuações pela gestão das águas. “Eu gostaria de ter mais mulheres participando no Comitê. Nós somos muito fortes. A vida começa pelas mulheres e a vida não existe sem água. As mulheres são como as águas, que crescem quando se encontram. Que a gente possa avançar como as águas, superando desafios, transpondo obstáculos e seguindo rumo ao mar”, diz Poliana, presidenta do CBH Rio das Velhas.
Assista ao Webinário “Água e Gênero, O protagonismo da mulher na gestão das águas da bacia do Rio das Velhas”
Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Arte de capa: Nila Kaiowá
Texto: Michelle Parron
Fotos: Bianca Aun, Fernando Piancastelli, Léo Boi e Ohana Padilha