Revista Velhas nº16: Inundar a política com a pauta das águas

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02/11/2022 - 10:05

O espírito que trouxe mais proteção aos rios nos primeiros anos deste século precisa voltar a reencarnar o tema na agenda pública


Recue no tempo fugazes 15 anos. Estamos em 2007, em Baldim, quando “não dava para chegar perto do rio por causa do mau cheiro. Só via peixe morrer”. O depoimento, dado apenas dois anos depois ao jornal O Estado de São Paulo por João Pereira, pescador por gosto, registrava a guinada brusca: “Agora encontro dourado e curimatã.”

Em setembro de 2010, um dourado de 13 quilos foi pescado em Santo Hipólito, de porte como há muito não se via. Mais sete anos e a terceira expedição no Rio das Velhas testemunharia o salto de um dourado de estimados cinco quilos, bem ali entre Nova Lima e Rio Acima, a 50 km da nascente.

Que mudanças profundas permitiram a volta dos peixes, esses infalíveis bioindicadores de qualidade da água e, por tabela, também da vida e da saúde dos humanos, ao maior afluente do São Francisco?

 

Cuidar das águas

Na virada de século, milhares de litros de esgoto doméstico e da indústria continuavam caindo todo segundo nos dois principais afluentes do Velhas na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), os Ribeirões Arrudas e Onça.

A história começa a mudar com a construção, em 2001, da Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) do Ribeirão Arrudas. “A ETE Arrudas foi mais fruto de decisão do governo Itamar [Franco, então governador] e de uma negociação muito forte com a Prefeitura de BH”, lembra Rogério Sepúlveda, que presidiu o CBH Rio das Velhas de 2010 a 2013, pelo Projeto Manuelzão, hoje engenheiro da Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais).

Construção das Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) dos Ribeirões Arrudas e Onça é resultado direto da mobilização por mais e melhores águas no Velhas.

Construção das Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) dos Ribeirões Arrudas e Onça é resultado direto da mobilização por mais e melhores águas no Velhas.

 

Outros passos largos seriam dados em sequência, com a introdução do tratamento secundário da ETE Arrudas em 2002 e, principalmente, com a inauguração da ETE Onça, em fevereiro de 2006.

Ligando as pontas desse emaranhado, opera a mobilização social. Segundo Sepúlveda, o movimento do Projeto Manuelzão, nascido na Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), em 1997, “em direção à gestão das águas e ao Comitê de Bacia Hidrográfica [CBH Rio das Velhas, criado um ano depois], unindo saúde humana e a questão hídrica, levando o internato rural e trazendo os municípios para o tema” criou o ambiente propício para que a pauta da recuperação do rio ganhasse espaço. “A ETE Onça é resultado dessa mobilização”, diz Sepúlveda, um dos organizadores da expedição que percorreu toda a extensão do Rio das Velhas em setembro de 2003 e acendeu a consciência hidroambiental por onde passou.

Em 13 de outubro, a carreata de encerramento da jornada fora recebida com entusiasmo pela população da capital. Entregue ao prefeito e ao governador, a Carta da Expedição propôs a Meta 2010 – “Navegar, Pescar e Nadar no Rio das Velhas” em seu trecho mais poluído, que acabou assumida pelo governo de Minas em 2004 e transformada em Programa Estruturador.

Mobilizações sociais do Projeto Manuelzão, como as Expedições pelas águas do Rio das Velhas, envolveram a sociedade e inseriram a revitalização na agenda política.

Mobilizações sociais do Projeto Manuelzão, como as Expedições pelas águas do Rio das Velhas, envolveram a sociedade e inseriram a revitalização na agenda política.

 

Os dias de hoje

Quase 20 anos após a primeira expedição, o balanço da carroça não ajeitou as abóboras. Quem reconhece é o presidente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), deputado Agostinho Patrus (PSD): “Nos últimos anos, houve um preocupante processo de degradação da qualidade das águas e de desmazelo quanto à preservação da bacia do Rio das Velhas”.

O deputado reflete sobre o passo tímido rumo aos 100% da Meta 2010, renovada em 2014 e ainda hoje a nos mirar do horizonte: “A bacia abrange mais de 50 cidades e quase 30 mil km². Há inúmeras divergências entre leis e normas, impasses surgem quando legislações locais se chocam com o Código Florestal, sendo necessária muitas vezes a intermediação do Poder Judiciário”.

Segundo Diogo de Castro, analista legislativo do Observatório de Leis Ambientais (Lei.A – Conhecimento e Ação pelo Meio Ambiente), “o que a gente observa é que há uma relação direta entre a ameaça de desabastecimento e o número de iniciativas legislativas que são deixadas de lado ao primeiro sinal de que o pior já passou”.

 

Municípios

Poliana Valgas, presidenta do CBH Rio das Velhas, avalia: “Ainda é muito tímida a participação dos municípios. Embora o CBH tenha muitos programas e ações, e tudo aconteça no território municipal, é preciso trazer as prefeituras para a gestão com o olhar para a questão hídrica. Muitos planos diretores não conversam com o tema. Só vamos conseguir avançar se unirmos esforços”.

O presidente da Associação Mineira de Municípios (AMM), Marcos Vinícius Bizarro, concorda: “Precisamos fortalecer as agendas em nível municipal, conscientizando o Poder Executivo e a população, mas o principal desafio é financeiro. O saneamento básico, de extrema importância, requer altos recursos financeiros. Os municípios, sozinhos, não têm condições de arcar com os programas”.

Da Câmara de Belo Horizonte vem um exemplo de que é possível agir mesmo com escasso poder de legislar sobre a matéria. Duda Salabert, vereadora do PDT, ressalta o “trabalho ativo na formação sobre os impactos da mineração” e a atuação que inclui “visitas técnicas e escuta de comunidades atingidas”. Para Duda, “é um tema urgente que deveria ser colocado na centralidade de todos os mandatos desta e de todas as cidades de Minas Gerais”.

Para a vereadora de BH, Duda Salabert, a luta por um ambiente equilibrado e sadio deve estar na centralidade de todo mandato político. Representante do segmento municipal no CBH, a presidenta Poliana Valgas cobra maior envolvimento das prefeituras na gestão hídrica.

Para a vereadora de BH, Duda Salabert (esq.), a luta por um ambiente equilibrado e sadio deve estar na centralidade de todo mandato político. Já a representante do segmento municipal no CBH, a presidenta Poliana Valgas (dir.) cobra maior envolvimento das prefeituras na gestão hídrica.

 

Vintém por vintém

 

Copasa diz ter investido mais de R$ 680 milhões na bacia do Velhas, entre 2018 e 2022. Instituto Trata Brasil considera números “aquém do necessário”.

Copasa diz ter investido mais de R$ 680 milhões na bacia do Velhas, entre 2018 e 2022. Instituto Trata Brasil considera números “aquém do necessário”.

A Copasa, empresa estadual de saneamento, garante ter investido mais de R$ 680 milhões de 2018 a 2022 somente na bacia do Rio das Velhas. No entanto, dos 44 municípios com sedes urbanas dentro dos limites da bacia, apenas 21 tem ETEs em funcionamento, ou 47,7%. Mesmo onde o primeiro olhar inspira alívio – casos, para citar alguns, de Nova Lima e Lagoa Santa, com tratamento de 100% do esgoto coletado –, nada é o que parece. Nova Lima tem ralos 22% de domicílios atendidos por coleta e, Lagoa Santa, menos da metade.

Solicitado pelo CBH a analisar os números do setor, o Instituto Trata Brasil (ITB) afirma: “os investimentos nos últimos anos estão muito aquém do necessário para cumprir as metas de universalização”. Conforme o ITB, “os investimentos em água e esgoto ficaram em R$ 15 bilhões em 2020, enquanto o ideal seria triplicar esse valor”.

 

Depressa com o andar

Renato Constâncio, engenheiro da Cemig e vice-presidente do CBH, integra ainda o Convazão (Grupo Gestor de Vazão do Alto Rio das Velhas), coletivo encarregado de pensar soluções para a segurança hídrica da RMBH e, por isso mesmo, boa balança do peso que de fato se dá à proteção das águas.

“Precisamos de mais pressa”, diz Constâncio. “O Comitê tem que ser ‘chato’, provocar essa pauta permanentemente, pois a insegurança hídrica já bateu à porta e entrou. Precisamos sensibilizar as autoridades, as lideranças políticas. O único fio de esperança veio da Meta 2010, dessa tradição de mobilizar e obter resultados”.

Vice-presidente do CBH Rio das Velhas, Renato Constâncio enaltece o papel da entidade em sensibilizar as autoridades, especialmente em meio ao contexto de insegurança hídrica vivido.

Vice-presidente do CBH Rio das Velhas, Renato Constâncio enaltece o papel da entidade em sensibilizar as autoridades, especialmente em meio ao contexto de insegurança hídrica vivido.

 

A voz do dono

 

Ex-presidente do Comitê, Rogério Sepúlveda crê que a mudança deve vir da base.

Ex-presidente do Comitê, Rogério Sepúlveda crê que a mudança deve vir da base.

Rogério Sepúlveda, com a experiência de quem esteve à frente da mobilização social do CBH, não mede palavras: “É preciso remodelar tudo, fazer a verdadeira gestão das águas, não fingir que faz. Enfrentar os conflitos, a discussão da mineração. Assumir que o sistema de recursos hídricos está falido”.

“A sociedade tem que se representar de fato, pois hoje o parlamento joga contra o povo”, cutuca Sepúlveda, que segue: “O CBH faz coisas muito boas, mas ainda é muito pouco perto do necessário”. E receita: “Tem que investir para que a população cuide de seus territórios”.

Para Diogo de Castro, do Lei. A, “a mobilização em torno das Serras da Moeda e do Curral, como também no caso da cervejaria que pretendia se instalar sobre o Carste de Lagoa Santa, mostra que a sociedade tem os meios de se fazer ouvir”.

Secretário do CBH Rio das Velhas, Marcus Vinícius Polignano, em audiência pública na ALMG sobre a revitalização dos rios de Minas.

Secretário do CBH Rio das Velhas, Marcus Vinícius Polignano, em audiência pública na ALMG sobre a revitalização dos rios de Minas.

 


Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala
Fotos: Bianca Aun, Léo Boi, Lucas Ávila, Lucas Nishimoto,
Marcelo Andrê, Michelle Parron, Ohana Padilha, Robson Oliveira e Vitor Oliveira