Revista Velhas nº18: Mil quilômetros no dorso da Cordilheira

10/01/2024 - 10:00

Trilha Transespinhaço abrange 53 áreas protegidas em 41 municípios e dialoga com história, cultura, renda para as comunidades locais e preservação do meio ambiente


O Espinhaço é a única cadeia de montanhas em solo brasileiro a merecer a designação de cordilheira. Com mais de cerca de 1.500 km de extensão e entre 50 e 100 km de largura, rasga o interior do país desde a região central mineira até quase a divisa da Bahia com Pernambuco.

Pontilhado de picos agudos como o do Sol, na Serra do Caraça (2.072 metros acima do nível do mar), o do Itambé (2.052 metros), próximo ao município do Serro, ou o do Itacolomi (1.772 metros), marco da antiga Vila Rica de Ouro Preto, ostenta paisagens grandiosas.

Perde-se a conta das dezenas de cachoeiras e rios exuberantes, espetáculo particular da profusão de águas que faz do maciço o manancial das principais bacias hidrográficas que correm para o Atlântico.

No entrecorte de vales profundos, grutas e cavernas guardam vestígios de tempos imemoriais. Ponto de encontro de Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga, carrega em suas alturas uma flora endêmica, com espécies que só ali se desenvolvem e o distinguem do resto do mundo, nos vastos Campos Rupestres, ecossistema extremamente frágil, singular e complexo.
Os estudos florísticos atuais estimam que existam entre 2 mil e 3 mil espécies, das quais cerca de 350 ameaçadas de extinção.

Em poucas palavras, para além da intensa beleza, a Cordilheira é guardiã da biodiversidade nacional.


Espinhaço e nova trilha atravessam pontos icônicos da bacia do Rio das Velhas, como Ouro Preto, a Serra do Cipó e a Serra do Cabral.


Conexão pela trilha

“Endemismo sem tamanho, a necessidade muito grande de conservação, as riquezas, a flora endêmica, a espeleologia, altitudes, água, cachoeiras, culturas, história, comunidades tradicionais, arqueologia”: esse conjunto de atributos despertou a ideia de criação da Trilha Transespinhaço (TESP), inicialmente contida no território mineiro, abrangendo 53 áreas protegidas e 42 municípios. Quem explica os objetivos é Giselle Melo, coordenadora geral da Comissão Provisória da Trilha: “resgate histórico-cultural, geração de renda e conservação ambiental, que depende da interação com a natureza e os valores locais”.

O professor Hebert Salgado, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), doutor em Geografia e parceiro do projeto, confirma o valor imenso, que vai além – e vem de antes – da Minas colonial, da corrida do ouro e dos tropeiros: “Temos lá muitos testemunhos arqueológicos, sítios com painéis de pintura rupestre. O Laboratório de Arqueologia e Estudo da Paisagem da UFVJM (LAEP) está estudando esse patrimônio”.

A TESP foi oficialmente criada em 2018, no “1º Seminário da Trilha de Longo Curso Mineira Transespinhaço”, realizado no Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais (IGC/UFMG).


Em agosto, membros dos Subcomitês Rio Paraúna e Rio Cipó realizaram travessia para buscar consolidar trecho entre o distrito de Fechados, em Santana do Pirapama, e a localidade de Cemitério do Peixe, em Conceição do Mato Dentro.


A academia se junta ao projeto. “Falamos de um universo multidisciplinar e multidimensional” diz Salgado, também vice-presidente da Rede Brasileira de Observatórios de Turismo. As “universidades [UFVJM, UFMG e PUC Minas] colaboram para olhar os conflitos e as complexidades, mas também para revelar o potencial, valorizar a imagem, auxiliar a planejar e produzir dados”.

É uma “relação institucional com trabalho de pesquisa vinculado”, continua. A Trilha é “ferramenta de conservação; opção de lazer e saúde e, pelo potencial turístico e esportivo, instrumento de geração de emprego, renda e desenvolvimento”. As trilhas de longo curso cumprem papel de grande importância nas três vertentes”, assegura.


Com passagens pelo Subcomitê Rio Cipó, Priscila Martins (esq.) e Lívia Pacheco (dir.) desenham propostas de governança para a TESP.


Giselle Melo, que é engenheira de produção com mestrado em Meio Ambiente, dá o estado da arte: “Estamos em pleno desenvolvimento da Trilha, uma iniciativa da sociedade civil com órgãos de governo, universidades e comunidades, e temos projeto aprovado no âmbito do Plano de Ação Territorial – PAT Espinhaço (parte do Programa Pró-Espécies, do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima – MMA)”. Os Subcomitês do CBH Rio das Velhas também têm sido espaços de discussão sobre a iniciativa

O amor pela natureza e pelas caminhadas começou cedo para Melo: “Na primeira viagem de ônibus sozinha, de Belo Horizonte a Juiz de Fora, com sete, oito anos, fiquei olhando as montanhas e me perguntando: o que tem lá atrás? Depois vieram o camping, as cachoeiras e o mosquito do montanhismo me picou”.

As trilhas de longo curso fazem parte de uma diretriz federal [Portaria 407, editada em conjunto pelos Ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima e do Turismo e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio], que visa fomentar a estruturação de corredores ecológicos e atividades de turismo de natureza, gerando renda para comunidades situadas em áreas biologicamente sensíveis.

No Brasil, o conceito ganhou força nos últimos anos, tendo como marco a inauguração da Transcarioca, em fevereiro de 2017. Outras diversas iniciativas em andamento contribuíram para a instituição da Rede Nacional de Trilhas de Longo Curso e Conectividade.



O projeto

“Uma trilha não se faz sozinha” é o lema que anima os montanhistas e demais amantes das descobertas e da vida na natureza. Por isso “é necessário um esforço conjunto entre caminhantes, moradores e representantes de unidades de conservação, prefeituras e instituições de pesquisa, para finalizar o traçado, engajar as comunidades, monitorar as espécies, implantar e manter a sinalização”, diz Lívia Pacheco, turismóloga e moradora de Santana do Riacho, na Serra do Cipó, ex-conselheira do Subcomitê Rio Cipó.

Sócia da Macaúba Desenvolvimento Local, empresa vencedora do edital que licitou propostas de governança da TESP, destaca: “precisamos de uma governança muito bem estruturada, quem representa na comunidade, no território, na prefeitura, como conversam entre si”. Buscamos “uma cola que una interesses diversos. O trabalho é estruturar a rede de pessoas, é ela que vai construir o produto turístico”, define.

Priscila Martins, também da Macaúba e atual conselheira do Subcomitê Rio Cipó do CBH Rio das Velhas, resume: “Estamos na fase de espalhar a palavra, fizemos contato com mais de 300 pessoas, com o poder público, Unidades de Conservação (UCs) e sociedade civil. As pessoas precisam se sentir integradas desde o início”.

Muito caminho foi andado desde 2018, com a gestão informal por um grupo de voluntários do Centro Excursionista Mineiro (CEM) e da Federação de Montanhismo e Escalada do Estado de Minas Gerais (FEMEMG). O esforço conjunto já logrou sinalizar diversos trechos da Trilha.

Quatro Grupos de Trabalho se debruçam sobre as mil tarefas, distribuídos pelos grandes trechos: o primeiro vai da região de Ouro Preto até a Serra da Piedade; o segundo, da Serra dos Alves e Serra do Cipó à cidade de Gouveia; o terceiro cuida do percurso até Diamantina e, o quarto, do Parque Nacional das Sempre-Vivas até os arredores de Grão Mogol, no norte do estado.

Priscila compara: “O modelo dos Comitês de Bacia, dos Subcomitês e das Unidades Territoriais Estratégicas (UTEs) do CBH Rio das Velhas inspira a metodologia de trabalho”.


Vilmar da Silva é condutor ambiental e promove a “Travessia com Causo e Cantoria” entre Lapinha da Serra e Tabuleiro.


Reserva da Biosfera

Em 2005, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) conferiu o estatuto de Reserva Mundial da Biosfera à Serra do Espinhaço, com área de 10 milhões de hectares, por ser uma das regiões mais ricas do planeta, graças a sua grande diversidade biológica, além do “valioso significado cultural e histórico”. Para o professor Hebert, a “chancela da Unesco traz outras perspectivas”, como possibilidades de financiamento externo.

A denominação “Espinhaço” remonta ao Barão Wilhelm Ludwig von Eschwege, que a cunhou em 1822, em referência a uma espinha dorsal.


Estudos indicam que na Serra do Espinhaço existem entre 2 mil e 3 mil espécies de flores, das quais cerca de 350 ameaçadas de extinção. Em 2005, a Unesco conferiu o estatuto de Reserva Mundial da Biosfera ao Espinhaço.


Os atores

Pela metodologia participativa, foram realizadas mais de dez reuniões com a participação de cerca de 100 atores locais. Vilmar Aparecido da Silva é um deles. Nascido em Lapinha da Serra, localidade de Santana do Riacho, na Serra do Cipó, bacia do Rio das Velhas, é condutor ambiental na caminhada de 40 km e dois dias até Tabuleiro, em Conceição do Mato Dentro.

A “Travessia com Causo e Cantoria”, já que Vilmar também é músico profissional, faz sucesso entre os turistas, que recebem orientações de preservação e conscientização ambiental.

“Participei das reuniões e outros condutores daqui também participaram. A TESP vai cortar todo o mosaico de UCs”. Na opinião do Vilmar da Lapinha, como é conhecido, as comunidades vão aderir. “Vai envolver sim. A trilha vai passar em UCs, RPPNs, Parque Nacional e estaduais. É necessário abranger as comunidades”.

Segundo Giselle, a proposta de governança será entregue agora e, em seguida, o Plano de Trabalho”. O desejo “é ter a governança a partir de 2025, após dois anos de transição”.


Atualmente, quatro grupos de trabalho se debruçam na consolidação dos quatro principais grandes trechos da TESP.


A alma da ideia

Lívia e Priscila observam: “A construção e preservação da Trilha proporcionam corredores ecológicos e a possibilidade de deslocamento de espécies em território maior. Junto vem a sensibilização dos turistas, percebendo que a água que eles bebem na cidade vem dali. Tem ainda o foco na própria comunidade do entorno, demonstrando que preservar gera mais renda do que botar fogo para fazer pasto”.

No alicerce do projeto está a concepção de Turismo de Base Comunitária (TBC), que inclui a agricultura familiar, a pesca tradicional e a comercialização de produtos nativos da biodiversidade, do artesanato, a gastronomia local e os arranjos produtivos de base sustentável. Tais atividades favorecem a dinamização socioeconômica do Espinhaço, resultando em novas alternativas de geração de renda para essas populações.

Vilmar concorda: “O que tem que ser trabalhado é o TBC, capacitar os moradores, conhecer quem mora no trajeto, um turismo de qualidade, de experiência, que vai agregar valor”.

Ele, que já pensa em “estender ao Espinhaço a travessia com a cantoria, levar a questão cultural, falar dos tropeiros, da história”, lembra que “famílias de moradores que estão aqui há mais de 70 anos oferecem alimentação a grupos de 15 a 18 pessoas, que podem acampar ou encontrar pouso nas moradias”.

Hebert Salgado fala em ida e volta: “É um processo pedagógico para que habitantes da região compreendam a potência da proposta e, na outra mão, que emprestem seu conhecimento, seus saberes e fazeres, sua relação com a natureza, muito mais próxima do modelo sustentável”. “Se está preservado”, aponta, “é porque alguém preservou até hoje”. Como diz Giselle Melo, é preciso “conhecer para conservar”.



Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala