Revista Velhas nº20: Não olhe para cima

23/10/2024 - 10:00

Quando emergências climáticas são a pauta do dia, é preciso ouvir a Ciência


No fim de abril, o Rio Grande do Sul foi atingido por fortes chuvas em quase todo o estado. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), em certas localidades choveu em um dia o que, na média histórica, choveria em dois meses. Juntou-se a isso desmatamento, urbanização não planejada, inércia do poder público, e o que vimos foi o caos: centenas de mortos, milhares de desabrigados, milhões de impactados.

Não se pode dizer, no entanto, que fomos “surpreendidos” pela precipitação. Ainda que o volume tenha sido grande em todo o estado gaúcho, os avisos haviam sido dados. Não é de hoje que cientistas de todo o mundo estão avisando que eventos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes. Fortes chuvas, longos períodos de seca, ondas de calor, tufões… Além disso, há uma infinidade de estudos e plataformas que alertam para os riscos de que desastres naturais podem causar mais danos do que o esperado.

Uma dessas plataformas, o Sistema de Informações e Análises sobre Impactos das Mudanças do Clima (AdaptaBrasil MCTI), desenvolvido por meio de uma cooperação entre o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e a Rede Nacional de Pesquisa e Ensino (RNP), possui um mapeamento extenso sobre o clima e os riscos de diversos impactos no Brasil, como disponibilidade de recursos hídricos, segurança alimentar, segurança energética, desastres geo-hidrológicos entre outros. É possível acessar dados sobre a situação presente de todas as cidades do país, bem como projeções para 2030 e 2050.

Na era da informação, é difícil se falar em “surpresa”. E se aconteceu no Rio Grande do Sul, é possível que aconteça em outros lugares do Brasil, como em Minas Gerais.

Algumas cidades gaúchas receberam de 500 a 700 mm de chuva, equivalendo a um terço da média histórica de precipitação para todo um ano. Em destaque a capital Porto Alegre.

O (novo) ciclo hidrológico

É preciso entender como ocorre o ciclo hidrológico e por que temos tido eventos de chuvas concentradas em poucas horas. Quem explica o fenômeno é Euler Cruz, engenheiro mecânico e presidente do Fórum Permanente São Francisco. “De maneira bem resumida, os oceanos são a fonte mais importante de chuva. São da superfície da Terra. De lá, a água evapora, acumula-se na atmosfera e, em determinadas condições de temperatura e pressão, ela se condensa e cai como chuva, nos próprios oceanos como também nos continentes”.

Euler também conta por que eventos extremos têm acontecido com mais frequência. “Agora, o que tem acontecido ultimamente é devido ao que a gente chama de mudanças climáticas. Já há uns dois séculos de fumaça de carros, de fábricas e de outros gases de efeito estufa acumulados na atmosfera”, explica.

A partir daí, a “estufa” que se transformou a atmosfera por causa do acúmulo desses gases permite que o calor atinja a superfície da Terra, mas dificulta sua saída. “O carbono deixa a radiação do sol entrar. Ela entra, mas não sai. Isso causa o aquecimento dos mares, o que vai gerar mais vapor na atmosfera. Essa água vai ter de cair uma hora…”, alerta. Segundo ele, foi isso o que aconteceu nas terras gaúchas, potencializado pelo fato de que o estado mais ao sul do Brasil se tornou uma zona de convergência da umidade vinda das regiões mais quentes do país. “No Rio Grande do Sul se formou uma zona de convergência, a meio caminho entre o Equador e o Polo Sul, transformando-se numa barreira – a atmosfera fria do sul não consegue passar para o norte e o calor do norte não consegue passar para o sul naquele momento”, relata.

Ou seja: enquanto houver aquecimento global haverá maior evaporação dos oceanos. E enquanto houver maior evaporação dos oceanos, haverá chuvas concentradas.

Enchentes e enxurradas no RS deixaram mais de 4 mil desalojados, 173 mortos e 38 desaparecidos. Em destaque o município de Arroio do Meio, no Vale do Rio Taquari.

O Rio Grande e as Minas

O que aconteceu no Rio Grande do Sul, mais cedo ou mais tarde, acontecerá em Minas Gerais. No entanto, Minas Gerais não é um estado como o Rio Grande do Sul. Além da diferença entre biomas – lá, terra dos Pampas, aqui, predominantemente Cerrado e Mata Atlântica –, o nome de ambos os estados apontam também para suas peculiaridades. O panorama em terras mineiras é preocupante. Dados extraídos da AdaptaBrasil revelam que há 19 cidades com risco muito alto de enfrentarem inundações destruidoras como as do Rio Grande do Sul. A plataforma classifica os riscos entre muito baixo, baixo, médio, alto e muito alto. Já entre as de risco alto são 227.

Para a AdaptaBrasil, “riscos relacionados a desastres geo-hidrológicos são os efeitos sobre vidas, meios de subsistência, saúde, ecossistemas, economias, sociedades, culturas, serviços e infraestrutura, devido a alterações climáticas ou eventos climáticos que se dão dentro de períodos específicos de tempo, de vulnerabilidade e de exposição da sociedade ou sistema, relacionados aos desastres geo-hidrológicos.

Consideram-se como desastres ‘séria interrupção no funcionamento de uma comunidade ou sociedade que ocasiona grande quantidade de mortes, perdas e impactos materiais, econômicos e ambientais que excedem a capacidade da comunidade ou sociedade afetada para enfrentar a situação, mediante uso de seus próprios recursos. O desastre se caracteriza por ser imediato e localizado, mas frequentemente possui efeito indireto geográfico e temporal de maiores dimensões’”.

 

Enquanto os gaúchos precisam se preocupar com os grandes rios, os mineiros não podem se esquecer da mineração. São 260 barragens cadastradas na Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM), nenhuma delas dimensionada para suportar o volume de chuvas que atingiu o Rio Grande do Sul. “Se uma chuva daquelas cair por aqui em Minas Gerais, ela vai provocar o rompimento provavelmente simultâneo de muitas barragens. Porque se ela cair concentrada numa região aqui no Quadrilátero Ferrífero, há muitas barragens e pilhas de rejeito de minério, e as nossas barragens foram dimensionadas para aguentar até 350 milímetros de chuva num dia, a partir de um cálculo da Resolução 95/2022 da Agência Nacional de Mineração [ANM]”, aponta Julio Grillo, engenheiro civil e ex-superintendente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Julio Grillo aponta risco de rompimento de várias barragens simultâneas em Minas, caso chova aqui o mesmo que choveu no Sul.

 

Índice de risco para inundações, enxurradas e alagamento na Bacia do Rio das Velhas

 

Rio das Velhas sob ameaça

Se grandes enchentes não são exatamente novidade na bacia do Rio das Velhas, é também verdade que muitas delas causam estragos nas cidades do Quadrilátero Ferrífero. Sabará, Nova Lima e Raposos, Ribeirão das Neves e Santa Luzia são as cidades de alto risco de desastres ocasionados por chuvas segundo o AdaptaBrasil, totalizando 50% dos municípios da bacia nesse nível.

Já vimos grandes inundações nessas cidades, e a tendência é que elas se repitam mais frequentemente. “Por exemplo, no dia 8 de janeiro de 2022 houve uma chuva muito grande no Quadrilátero que inundou Raposos, e o Rio das Velhas subiu ao máximo já registrado. Houve vazão de 630 metros cúbicos por segundo registrado em Raposos, e só não registrou mais porque a água subiu tanto que afogou o pluviômetro. Nos 45 anos em que eu estou lá, eu nunca tinha visto uma quantidade de chuva tão grande”, relembra Euler. E ele continua: “historicamente, o Quadrilátero, das regiões de Minas Gerais, é a que mais chove. E isso vai aumentar. Além disso, é a região que tem mais barragens e mais gente vivendo. Então, uma chuva intensa pode levar várias barragens. Aí, nós vamos perder o Rio das Velhas, como já perdemos o Paraopeba e o Doce “, avisa.

A diferença entre as tragédias que aconteceram com as barragens da Vale e da Samarco e a que pode acontecer no Rio das Velhas é que, no caso de ocorrer um grande volume de chuva concentrada que venha a romper uma ou mais barragens, a água da precipitação se juntaria aos rejeitos de minérios, carregando metais pesados até o Rio São Francisco. “As zonas de autossalvamento e as manchas de inundação foram calculadas em cima do volume que há no reservatório de rejeitos. Se esse reservatório se rompe por um problema de chuvas extremas, a lama que sairá vai descer acrescida desse volume de chuvas. Ela vai ficar mais fluida, deixando as manchas de inundação mais largas, e a velocidade de descida do rejeito será muito maior”, previne Júlio.

Minas tem 260 barragens de rejeito cadastradas na FEAM, como a de Maravilhas II, em Itabirito.

Olhe para cima

Ao El Niño, que causou as fortes chuvas no Sul, precederá a La Niña, que deve trazer tempestades para o Sudeste no verão. Alertas como esses que deram Julio Grillo e Euler Cruz podem ser vistos como exageros. Afinal, pessoas como eles frequentemente são chamadas de “ambientalistas xiitas” ou “cientistas malucos”. No entanto, como na frase vista um dia numa manifestação, “no começo de todo filme de desastre tem cientista sendo ignorado”.

No filme “Não olhe para cima”, um grupo de cientistas alerta para um imenso meteoro que fatalmente se chocará com o planeta. Ninguém lhes dá ouvidos. Diferentemente de um pedaço de rocha atingindo a superfície da Terra e extinguindo a vida em instantes, a destruição causada por crescentes eventos climáticos nos empurraria para um fim que levaria décadas, durante as quais passaríamos anos tentando negar o inevitável. Adaptar-se à emergência climática e proteger o meio ambiente é uma decisão urgente. Tomemos essa decisão enquanto há tempo.

Em 2020, enchente inundou a Avenida Tereza Cristina, em BH. Naquele janeiro choveu 974 mm, o mês mais chuvoso da história da cidade.

 


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Leonardo Ramos