Revista Velhas nº 19: Para evitar o fim

17/04/2024 - 17:24

Cidades correm contra o tempo para se adaptarem aos eventos extremos enquanto o planeta busca meios para superar o modelo que os criou


Não foi preciso chegar ao verão brasileiro para lamentar acontecimentos trágicos relacionados ao clima. Da seca histórica da Amazônia às inundações do Sul, está demonstrado que entramos em crescente risco decorrente dos efeitos das mudanças climáticas.

José Carlos Carvalho, ex-ministro do Meio Ambiente, vê nisso “uma questão que se tornou crucial”. “No plano global estamos tendo as maiores temperaturas dos últimos 125 mil anos” e “a maioria dos países, o Brasil entre eles, não está preparada”.

COP 28

A 28ª Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas (COP 28), encerrada em Dubai em 12 de dezembro, foi atrás de respostas ao gravíssimo quadro. Segundo organizações ambientalistas ouvidas pela Agência Brasil, o encontro “trouxe avanços, mas deixou a desejar por não ter estabelecido metas mais rígidas para enfrentar a crise climática”.

Todos, no entanto, reconhecem que a edição da COP estabeleceu um acordo histórico, registrando em seu documento final, pela primeira vez, o compromisso de transição dos combustíveis fósseis para fontes energéticas alternativas.

Os países signatários terão até 2025 para apresentar novos planos nacionais e cumprir as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês). A NDC do Brasil, atualizada em 2023, fixa a redução de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) em 48% até 2025 e em 53% até 2030.

O ex-ministro destaca “a mudança do governo anterior para o atual, com uma atuação de acordo com as grandes preocupações internacionais”. “A posição nacional”, analisa, “tem um peso muito grande porque participamos das negociações com a autoridade de ter o maior ativo ambiental do mundo, com a maior diversidade biológica”.

Em sua 28ª edição, a COP estabeleceu, pela primeira vez, compromisso por transição dos combustíveis fósseis.

Plano para o desastre

Júlio Pedrassoli, coordenador de Áreas Urbanas do MapBiomas, rede formada por ONGs, universidades e empresas de tecnologia, condena “a ocupação em áreas de risco nos centros urbanos”. Segundo Pedrassoli, “de 1,2 milhões de hectares de área urbanizada em 1985, passamos a 3,7 milhões em 2022, mas a área de favelas quadruplicou e a ocupação em alta declividade quintuplicou”.

No Brasil, “16,5% do crescimento em área urbana se deu em cima de áreas de várzea, de 1985 pra cá”. “A forma como as cidades são ocupadas continua a criar situações de risco”, constata.

Na maioria das principais cidades da bacia do Rio das Velhas, o percentual das áreas de risco sobre o total da zona urbana é mais do que preocupante: 14,1% em BH, 18,1% em Nova Lima, 18,5% em Santa Luzia, 27,9% em Sabará e 32,9% em Vespasiano, conforme dados do MapBiomas.

Para o ex-ministro do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, a maioria dos países, dentre eles o Brasil, não está preparada para a emergência climática.

Carvalho vai no x do problema: “Por razões históricas, nossas cidades foram planejadas para não serem resilientes.
A urbanização tradicionalmente se deu nos fundos de vale inundáveis e nos morros com risco geológico”. Os “custos de adaptação são altíssimos”, assinala, “com um mal adicional: os problemas urbanos são desigualmente distribuídos, na imensa maioria quem está nos vales e nos morros é a pobreza”.

Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e criador do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), resgata estudo em conjunto com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2010 sobre “825 cidades com as maiores áreas de risco”. Nelas “10 milhões de pessoas viviam em áreas de risco e, 2 milhões, de altíssimo risco”.

 

Ondas de calor

O pesquisador do IEA alerta que a “imprensa divulga muito mais os desastres que matam” de uma vez só, mas sustenta: “A mudança climática que mais mata é pelas ondas de calor”. Para comprovar, evoca as “61 mil pessoas mortas na Europa em 2022” por essa causa. “Infelizmente”, diz, “não temos estatísticas precisas no Brasil a respeito”.

Nobre traz outro fato assustador: “Nas grandes cidades, há outro agente, o efeito ‘ilha urbana de calor’, quando se retira toda a vegetação e o clima local muda fortemente”. Na capital paulista, “só esse efeito responde por algo em torno de 2,5 a 3 graus a mais, sem contar o aquecimento global”, dispara

Pesquisador da USP, Carlos Nobre chama a atenção para efeitos mortais das ondas de calor.

O campo e o clima

Cerca de 54% da população mundial moram em áreas urbanas, percentual que deve chegar a 66% em 2050. No Brasil, 84% vivem na zona urbana. Mesmo assim, as cidades cobrem apenas uma pequena parte da superfície terrestre. Não podem, pois, ser resilientes isoladamente.

Para Pedrassoli, “as áreas urbanas se beneficiariam muito do desmatamento zero e sofrem com a diminuição da superfície hídrica, que perdeu 15% de 1985 a 2022 no país e 60% no Pantanal, pelo uso intensivo da agricultura, do pivô central, das outorgas mal concebidas”. “O rebatimento”, diz, “é direto nas cidades. Crise climática e escassez hídrica não se resolvem no âmbito da política urbana sem política ambiental integrada”.

 

Gustavo Malacco destaca contribuições negativas do desmatamento no Cerrado e Mata Atlântica.

>Gustavo Malacco, ativista da rede Observatório do Clima pela Associação Angá, de Uberlândia, calcula que “mais de 98% do desmatamento no Cerrado é de responsabilidade dos estados” e seus processos de licenciamento.

Para Nobre, o setor onde mais viceja o negacionismo climático é o agrário, que responde por algo como 25% da emissão de GEE. “Técnicas restaurativas são muito mais produtivas e usam menos área”, compara, mas “convencer esse setor tem sido um grande desafio, a política que vem de séculos é de pura expansão”.

Para o ex-ministro Carvalho, “faz parte do esforço de adaptação mudar a política de uso da terra e o modelo de desenvolvimento rural”. De acordo com ele, “o Brasil tem hoje em torno de 70 milhões de hectares de pastagens degradadas, quase uma Inglaterra inteira”. “Estimulamos a expansão das fronteiras agrícolas, mormente na Amazônia, e deixamos 700 mil km2 de terras degradadas subutilizadas ou inutilizadas”.

Pedrassoli exalta a diretriz adotada pelo governo federal, que orientou o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] e o Banco do Brasil a “usarem dados do MapBiomas para concessão de créditos”. Malacco complementa: “O Plano Safra [plano de financiamento da agricultura e da pecuária empresarial no país] já incorpora variáveis ambientais”.

 

As cidades

O Escritório das Nações Unidas para a Redução de Riscos de Desastre (UNDRR, na sigla em inglês) comanda a iniciativa “Construindo Cidades Resilientes”, em apoio aos municípios na preparação para a redução de riscos e para o desenvolvimento de resiliência urbana.

A primeira versão (2010 a 2020) reuniu mais de 4 mil cidades, 1.078 do Brasil, mas apenas 10 da bacia do Rio das Velhas. Na nova versão, 2021/2030, havia, até o fechamento desta matéria, 326 cidades brasileiras, apenas duas da bacia: Belo Horizonte e Contagem, que já figuravam na primeira lista.

Carlos Nobre vê como “muito positivos esses arranjos porque eles vão até as cidades e demonstram a viabilidade dos projetos, mas não passam de projetos-piloto demonstrativos”. “Depende de nós, dos níveis de governo e do setor privado, dar escala a esses projetos”.

Dany Amaral, diretor de Gestão Ambiental da Secretaria de Ambiente de Belo Horizonte, confirma que “a ONU tem ajudado na organização de áreas vulneráveis, no aporte de recurso e equipes técnicas, na construção de projetos e no engajamento social nas comunidades”.

Remetendo a “estudo de 2016 de vulnerabilidade climática”, com projeção para 2030 sobre “o que BH enfrentaria se nada fosse feito”, relaciona “deslizamentos, ondas de calor, explosão de dengue e inundações” como destaques.

Conforme o diretor, “70% dos eventos extremos” na capital “ocorreram nos últimos cinco anos”, numa série histórica que vem desde os anos 1940. Quase 60% dos GEE vêm das operações relacionadas à mobilidade urbana.

Na lista de tarefas, estão “a implantação do transporte elétrico, de ciclovias, o aumento da eficiência energética, o incremento da energia fotovoltaica, a troca de iluminação pública e a produção de energia nas unidades de tratamento de resíduos”, elenca Amaral. Para a adaptação da cidade, a bússola é o Plano de Ação Climática, “construído com a sociedade civil e a Academia”, segundo o diretor.

Dany Amaral cita “as 10 agroflorestas e as 12 miniflorestas já implantadas” como exemplos das ações em curso, mas frisa a centralidade da “integração com outros municípios, em toda a bacia, pois só a ação local é limitada”.

A realidade em Contagem é semelhante. Maria Thereza Mesquita, Secretária Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, que já foi conselheira do CBH Rio das Velhas, informa que “acabamos de fazer a contratação da conformidade climática junto ao ICLEI [associação internacional de governos locais e organizações governamentais]” e estamos no rumo do Plano Local de Enfrentamento às Mudanças Climáticas, uma construção coletiva, o que reforça a adesão desde o início”.

O novo Plano Diretor da cidade oferece ferramentas para a empreitada, do “incentivo aos empreendimentos com aproveitamento de águas de chuva à regulamentação do IPTU verde”. O Plano Municipal de Arborização Urbana será lançado no primeiro semestre de 2024, com a meta de duas novas árvores a cada supressão.

Com o governo do estado, a secretária diz: “temos interlocução, mas os recursos são municipais ou federais”. A iniciativa da Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte para uma ação climática em toda a Grande BH também “ainda não prosperou”.

Para Gustavo Malacco, o governo mineiro é “tímido e distante desse debate, num estado com “uma pegada de carbono muito alta e crescente”. Em matéria de desmatamento, “é sempre campeão, no caso da Mata Atlântica” e ”precisa urgentemente colocar em prática, no seu planejamento, quanto vai reduzir daqui a quatro, cinco anos”. Começar “a fazer política de financiamento para os municípios que arregacem as mangas para enfrentar” é um bom caminho, receita.

Na maioria das principais cidades da bacia do Rio das Velhas, o percentual das áreas de risco sobre o total da zona urbana é preocupante. Em destaque, Ribeirão Onça no bairro Ribeiro de Abreu, em BH.

Inimigos do fim

José Carlos Carvalho estica o olho para um futuro que está logo ali: “Vai aumentar o número de habitantes nas cidades e, mais ainda, o percentual que vive nas áreas litorâneas”. Com o aquecimento global e a projeção do nível do mar até o fim deste século “boa parte dessas regiões se tornará inabitável, e isso não é catastrofismo”.

A prefeitura de Nova York, diz ter “estudos que mostram que, já em 2050, mantidos os atuais índices de emissão de GEE, todo o sistema de metrô vai para o brejo, aliás, para o mar”.

Pedrassoli concorda: “A catástrofe é uma hipótese plausível”, mas “as soluções existem”. Tudo depende “da escala que conseguirmos dar” às medidas de mitigação, transição energética e cuidado ambiental.

O professor Carlos Nobre pede pressa: “O Fundo Climático só alcançou os US$ 100 bilhões em 2023. Os países em desenvolvimento falavam, já na COP de 2021, que seriam necessários US$ 700 bilhões. Hoje já se fala em trilhões de dólares”.

Nobre sabe que os países pobres “não têm condições de bancar. Só o Brasil precisa de mais de US$ 100 bilhões por ano para a transição”. “Se os países ricos não entenderem que precisam aportar recursos”, assevera, “vamos mesmo para o fim do mundo”.

 

Fonte: MapBiomas

 


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala