Revista Velhas nº 12: Narradores da natureza

28/12/2020 - 12:05

Histórias de ribeirinhos e do Rio das Velhas se transformam em podcasts


“Era bonito aquele vulcãozinho soltando água em qualquer beiradinha de muro”. É assim que a Maria José Zeferino Vieira, a Majô, olha para uma nascente. Moradora próxima às margens do córrego Nossa Senhora da Piedade, no bairro Guarani, em Belo Horizonte, ela traz um olhar terno de uma mulher que dedicou a vida a ensinar, que passou 30 anos atuando como educadora a despertar o olhar das crianças para ver o quanto esse mundo à nossa volta nos ensina, para a natureza em cada cantinho e porque os rios, as árvores, os animais, as nascentes e a terra em que pisamos são partes de nós. Uma pessoa que, com alguns professores da Escola Municipal Hélio Pellegrino, foi além dos muros da escola, percorreu as ruas do próprio bairro e mostrou para as crianças que o quintal da casa delas também é uma sala de aula.

Histórias como a de Majô Zeferino integram o Narrar é Resistir, projeto online de narrativas de ribeirinhos.

Majô apoiou a ida dos alunos até para a Argentina, mas foi com ela e outros professores que eles descobriram que, pertinho de casa, um córrego poluído precisava de cuidado e atenção. A desconfiança de que os problemas de saúde das crianças estavam ligados à poluição do córrego fez Majô mover os alunos nessa missão de recuperar e preservar o córrego. No final dos anos 1990 ela ajudou a formar um grupo de 50 crianças que era chamado de “Amigos do Córrego”. Esse trabalho promovia atividades como visitas aos cursos d’água, ações de preservação e identificação de nascentes.

Os vulcãozinhos das nascentes são parte da vida da Majô, assim como o córrego que ela estava tentando salvar com a ajuda dos alunos. Majô lembra com saudosismo dos tempos em que brincava e nadava na água, que já foi limpa. De quando ela tinha que atravessar o rio para ver os amigos e estudar na escola que ficava do outro lado da margem. Longe das salas de aula, hoje ela continua a lutar pela preservação do meio ambiente como mobilizadora social do Ribeirão Onça, Subcomitê que atua no território da capital mineira e que faz parte do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. Ela também luta pela preservação ambiental com a sua história, que é uma forma de valorizar o passado, resistir no presente e olhar com determinação para o futuro que ela deseja para o seu córrego, para o seu bairro, para o Ribeirão Onça e para o Rio das Velhas.

"Era bonito aquele vulcãozinho soltando água em qualquer beiradinha de muro” Majô Moradora próxima às margens do córrego Nossa Senhora da Piedade

Esse meio ambiente que encontra na educação seu lugar de respiro e esperança também é parte da vida da Cláudia Andrade de Barros. Ela conta que sua relação com a natureza começou quando ainda era criança e via a preocupação da sua mãe e de seu pai com os recursos naturais. Mas foi na adolescência que Cláudia percebeu que cuidar do meio ambiente era uma necessidade. “Aos 15 anos, quando o professor de biologia levou a minha turma para a beira da Lagoa da Pampulha e explicou que lá estava sendo iniciado um processo de assoreamento devido ao despejo de esgoto, percebi o quanto devíamos cuidar uns dos outros e da nossa mãe terra”. Desde então, a educadora não parou mais. Hoje ela está na linha de frente de proteção da Matinha, uma área permeável de mata nativa a montante do córrego Vilarinho, estratégica na redução dos impactos da chuva. Estratégica porque o córrego Vilarinho, que corta a região de Venda Nova, em Belo Horizonte, na Bacia do Ribeirão Onça, está quase todo canalizado. Volta e meia a região é atingida por fortes inundações e a Matinha ajuda a absorver parte da água. Também funciona como um corredor ecológico, proporcionando a reprodução de pássaros, exercendo o papel de área de preservação da fauna e da flora na região.

Além de atuar na proteção da Matinha, Cláudia montou uma biblioteca para estimular o conhecimento e a preservação ambiental. “É na biblioteca que eu mostro para os frequentadores a relação e interação do meio ambiente com o nosso bem-estar. Muitos destroem ou tratam mal a natureza por não se colocarem no lugar dela. Quando eu falo que a flora e a fauna são seres vivos que sentem, adoecem e morrem, assim como o ser humano, vejo o brilho no olhar do público como que se estivessem despertando para a relevância que eles têm no meio em que vivem. A mudança de pequenos atos no seu dia a dia faz muita diferença para o meio ambiente”, conta.

Espaço Ambiental Matinha e Córrego Vilarinho, em Venda Nova

O projeto nos leva a trilhar os caminhos, cenários e pessoas que moram no território da bacia do rio das Velhas, através da fala e da vivência de ribeirinhos que se transformam em exemplos nos lugares onde moram, promovendo e estimulando a mudança. Para além de contar histórias, Narrar é Resistir se tornou uma ferramenta de mobilização e educação ambiental do coletivo Orla. Um trabalho que sempre foi feito presencialmente na comunidade, batendo na porta das casas das pessoas, produzindo eventos, agora ultrapassa as fronteiras da região de Venda Nova através das histórias gravadas.

“A narrativa é essa forma milenar de resistência que faz com que as histórias se mantenham, que a cultura se mantenha. Tem o poder de resgatar essas memórias individuais, coletivas e de afirmar o pertencimento”, explica Clarice Flores, estudante de arquitetura, moradora da microbacia do Córrego do Capão e uma das idealizadoras do projeto.

Clarice também é ribeirinha e percorre um caminho de envolvimento com as causas ambientais. Narrar é Resistir é o resultado da ressignificação da sua própria história com as águas. De como ela passou a olhar de outra forma para o córrego do Capão, curso d’água que fez parte da sua infância, mas que foi negado por Clarice até que ela entendesse a importância daquela água que corria perto dela. “Desde criança eu atravessava a pontinha de madeira que passava pelo córrego do Capão, um afluente do córrego Vilarinho. A presença do córrego em leito aberto muito perto da minha casa me incomodava muito.

"A narrativa é essa forma milenar de resistência que faz com que as histórias se mantenham, que a cultura se mantenha. Tem o poder de resgatar essas memórias individuais, coletivas e de afirmar o pertencimento” Clarice Flores Moradora da microbacia do Córrego do Capão e uma das idealizadoras do projeto

A degradação muito aparente, mau cheiro, o aparecimento de animais em casa, tudo isso me fez viver um processo longo de negação daquele lugar. Eu não me senti pertencente ao meu bairro muito por causa do rio que fedia e me dava vergonha. Foi só quando mais velha, aos 20 anos, que fui entrar na faculdade e comecei a estudar os rios urbanos. Foi aí que eu entendi a situação toda da relação dos rios em Belo Horizonte”.

As histórias da Majô e da Cláudia são parte das narrativas daqueles que querem e lutam por uma cidade melhor. Uma cidade que respeita e preserva os seus rios. Elas são personagens do Narrar é Resistir, projeto online de narrativas de ribeirinhos criado pelo coletivo Orla, que reúne o Núcleo do Capão, o Espaço Cultural da Orla e a Associação Habitacional do Bairro Lagoa. Juntos eles atuam nas causas sociais e ambientais da região de Venda Nova, em Belo Horizonte.

Narrar é Resistir usa a narrativa como ferramenta de luta ambiental. Suas histórias, contadas por diferentes pessoas, valorizaram a relação com espaço ocupado nas cidades e com rios sufocados por baixo do asfalto ou que lutam por sobrevivência a céu aberto. Para Cláudia é uma forma de perpetuação da história de uma comunidade. “Ao compartilhar a minha história eu mostro ao outro que ele também pode mudar a história onde ele vive. Todos temos potencial para fazer a diferença, lutando pela melhoria de vida dos seres vivos. Narrar é uma forma de resistência.”

Córrego do Capão nasce no bairro Céu Azul e percorre os bairros Lagoa, Piratininga e Lagoinha, desaguando no Córrego Vilarinho, que foi transformado em avenida sanitária na década de 1970.

O olhar desperto da Clarice, que passou a entender que vivemos em meio aos rios, mesmo em uma cidade intensamente urbanizada e asfaltada como Belo Horizonte, se cruzou com quem ainda não havia visto sua própria cidade com a lente das águas. Durante a fase de criação do Narrar é Resistir, o coletivo Orla contou com a ajuda de profissionais dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, pessoas de outras bacias, de outras realidades. Isso aconteceu por meio de um edital promovido pelo Instituto Procomum e Silo – Arte e latitude rural, que buscavam projetos com soluções para os impactos causados pela pandemia. Narrar é Resistir foi uma das 16 propostas vencedoras das 235 concorrentes inscritas do mundo todo. Como prêmio, o Orla recebeu a ajuda da equipe técnica de voluntários do Laboratório de Emergência Covid–19 Reconfigurando o Futuro para criação do site do projeto e apoio na produção dos podcasts.

Foi nesse momento que os ribeirinhos do Orla entraram em contato com outras pessoas que trouxeram suas ideias e foram impactadas pela proposta do projeto. Uma das provocações feita pela própria Clarice aos voluntários foi o pedido para que eles se apresentassem no site, enquanto equipe, dizendo de qual bacia eles faziam parte. Um delas é a Letícia Deidone que descobriu, na provocação da Clarice, que era moradora da Bacia do Alto Tietê, em São Paulo. E nesse mergulho pelas águas do entorno, Letícia também descobriu que vive ao lado do Córrego Sumaré, hoje “invisível” para dar lugar à avenida Sumaré, que passa seu asfalto por cima dele. “Eu nunca tinha parado para pensar sobre isso. Estudei gestão pública, mas os estudos sobre as bacias hidrográficas nunca fizeram parte do meu repertório. Fui pesquisar e descobri que boa parte do território da cidade de São Paulo está na Bacia do Alto Tietê. Eu sempre imaginei que a Avenida Sumaré, que passa perto da minha casa, fosse uma área de rio, mas nunca tinha buscado pensar mais a fundo. Foi então que descobri que realmente era uma área que passava um rio e que antes era praticamente um bosque. Acho que eu nunca tinha olhado para as águas como referência. Foi bem interessante mudar esse olhar do nome do bairro para o nome da bacia”, conta.

Assim como a Bacia do Alto Tietê, que está na maior cidade do país, enfrenta suas dificuldades, esconde as suas riquezas e é o lar de muitos ribeirinhos, a Bacia do Rio das Velhas também está repleta de diversidade. Saindo do Alto, passando pelo Médio e chegando no Baixo Velhas, são muitos cenários, paisagens e histórias de lutas e resistências. Em Belo Horizonte, por exemplo, que é de onde o projeto Narrar é Resistir se inicia, as pessoas se relacionam com a água de uma forma diferente das que estão no Baixo Velhas, que tem cidades menores e mais gente vivendo na zona rural. “A gente começou pelo lugar de onde a gente saiu. Começamos pela zona norte de Belo Horizonte com narrativas de ribeirinhos urbanos. Estamos passando pelo Ribeirão Onça, depois vamos para o Arrudas e seguiremos pelo caminho que as narrativas vão nos levar”, conta Clarice. Que o Narrar é Resistir nos leve a navegar por muitos desses rios, a bordo das memórias dos narradores da natureza.

Projeto impactou também Letícia Deidone, de São Paulo, que se descobriu moradora da Bacia do Alto Tietê. Abaixo, notícia do jornal Estado de São Paulo de 25 de janeiro de 1945

 

Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Michelle Parron