Falar sobre o Ribeirão Onça é narrar a história de mais de um milhão de pessoas que vivem e convivem com ele. É lembrar das crianças que brincam nas poças de chuvas, dos avós que águam suas pequenas hortas e ouvir histórias sobre os antigos que lavavam suas roupas no rio que passava, logo ali, grande e forte.
“Eu não me vejo como ribeirinha [mesmo morando no entorno do Vilarinho] porque o rio é invisível e tampado. Quando eu era pequena, o Vilarinho não era todo coberto e a única memória que eu tenho é das enchentes. Minha mãe, certa vez, me contou que quando era criança lavou roupa numa mina que vai para o Vilarinho e ela lembra que, quando tinha enchente, as pessoas sofriam com aquilo”, conta Sabrina Celeste, moradora do entorno do curso d’água.
O relato demonstra que viver em uma cidade com os rios escondidos e as nascentes soterradas nos desconecta da natureza. Isso porque a paisagem urbana tatuada por asfalto e grandes prédios não nos deixa ver as sutilezas da folha que cai e nem da água que escorre. Com o rio escondido, tampado e, como dito pela moradora, invisível, não permite que nos vejamos como ribeirinhos.
Ninguém sabe ao certo porque o Ribeirão tem o nome de Onça. Uns dizem que foi por causa de um ‘senhor bravo que nem uma onça’ que vivia às margens do rio. Outros dizem que foi por causa das onças pintadas que habitavam os arredores. Há até quem diga que foi por causa da antiga unidade de medida, que pesava o ouro extraído no ribeirão.
O fato é que as onças pintadas já não habitam mais a região e nem se encontra mais ouro no ribeirão. Hoje, as construções e ocupações colocaram o curso d´água em uma nova paisagem. “As belezas do Onça começam nas nascentes em Contagem, e no Parque Fernão Dias, um espaço bem interessante para o turismo e que vem sendo recuperado. Tem a Avenida Sarandi, que em suas laterais possuem áreas verdes, e a Praça do Sol, que é um parque aberto e linear”, conta Eric Machado, fiscal ambiental da prefeitura de Contagem, historiador e coordenador do Subcomitê Ribeirão Onça, vinculado ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas).
É em Contagem que surgem as primeiras nascentes que formam o Ribeirão Onça, as quais vão formando os córregos Sarandi e o Bom Jesus. Navegando para o município de Belo Horizonte outros córregos se juntam, formando o Ribeirão Pampulha, onde as águas são represadas no lago artificial da Pampulha.
A Lagoa da Pampulha
O Conjunto Arquitetônico da Pampulha foi construído na década de 1940, pelo então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek. O local foi declarado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) como Patrimônio da Humanidade e é um verdadeiro ponto de encontro para moradores e visitantes da cidade. À época de sua construção, a Lagoa da Pampulha tinha o objetivo de amenizar as enchentes na região, aumentar o abastecimento de água, além de ser um lugar para recreação, natação e canoagem. A estética do lugar conta com a talentosa arquitetura de Oscar Niemeyer, com o paisagismo de Burle Marx e pintura de Cândido Portinari.
“Descendo para a Pampulha que é um patrimônio cultural da humanidade e com todo o seu complexo com a parte verde, o curso d’água vai passando para a sua parte mais baixa, chegando na ETE [Estação de Tratamento de Esgoto] Ribeirão Onça, no Quilombo Mangueiras, no bairro Ribeiro de Abreu, até as cachoeiras”, completou Eric.
Depois da Lagoa da Pampulha, o curso d’água continua a receber muitos outros afluentes e vai seguindo seu caminho. Próximo à estação do metrô Primeiro de Maio, na Avenida Cristiano Machado, o curso d’água se encontra com o córrego Primeiro de Maio e, nas redondezas da estação do São Gabriel, com o córrego Cachoeirinha, quando então passa a se chamar Ribeirão Onça.
Até este ponto o curso d´água está quase todo tampado, mas a partir daí segue em canal aberto margeando a Via 240, recebendo os córregos Nossa Senhora da Piedade, Saramenha e outros. Ao longo da rodovia MG-020, após a cachoeira do Novo Aarão Reis, preservado em seu leito natural, recebe os córregos Isidoro e seus afluentes: Baleares, Vilarinho, Nado, Serra Verde, Bacuraus, Embira, Tamboril, Terra Vermelha e Floresta. Seguindo seu rumo, vai então ao encontro do Rio das Velhas no município de Santa Luzia.
Parque Ciliar do Onça
A construção do Parque Ciliar do Onça é uma demanda da comunidade local e da sociedade civil organizada – como o Conselho Comunitário Unidos pelo Ribeiro de Abreu (Comupra) e o movimento ‘Deixem o Onça Beber Água Limpa’ – à prefeitura de Belo Horizonte. O parque estava previsto para ser realizado ao longo de 2016, mas até hoje os moradores aguardam a viabilização da demanda. Enquanto isso, a comunidade vem fazendo a sua parte: organizando debates, oficinas, mutirões e outros eventos sociais para planejar, construir e ocupar o espaço destinado ao parque.
De acordo com Carla Wstane, novos estudos da macrodrenagem da Bacia do Ribeirão Onça apontam que a mancha de inundação das áreas que seriam do parque se ampliou, o que obrigará a prefeitura de Belo Horizonte a investir mais na realocação das populações.
Falar sobre o Ribeirão Onça também é destacar sua beleza em forma de nascentes. Existem inúmeras minas d’água nas cidades, as quais não enxergamos por conta de toda a dinâmica urbana há anos em vigor. “A área urbana possui lindas nascentes com minas de diferentes formas, de perspectivas pontuais e difusas e de grandes brejos. São áreas lindas que podem ser trabalhadas para um turismo produtivo e interessante para crianças e adolescentes que não conhecem a área ambiental”, explica Eric Machado.
Devido à importância das nascentes urbanas, nos últimos anos o CBH Rio das Velhas investiu recursos para a catalogação e valorização dos olhos d’água encontrados no meio urbano. Até hoje, somente na Bacia do Ribeirão Onça já foram investidos mais de R$ 2 milhões em projetos voltados para as nascentes urbanas.
Uma coletânea de problemas
Segundo o Plano Diretor de Recursos Hídricos (PDRH) do CBH Rio das Velhas, os principais agentes de degradação das águas superficiais do Ribeirão Onça são o lançamento de esgotos domésticos e os efluentes industriais.
No que se refere aos efluentes, o Ribeirão Onça possui seis ETEs em operação, com índice de tratamento de 73% – superior à média da Bacia do Rio das Velhas como um todo. Entretanto, o grande adensamento populacional, aliado às inúmeras indústrias, geram uma alta carga poluidora.
Segundo Eric Machado, o desafio mais óbvio do território do Onça e que está bem diante da nossa realidade é a questão do esgotamento sanitário. “Por ser uma área extremamente urbana, o lançamento e tratamento desse esgoto têm sido um problema histórico e com grandes dificuldades de resolução. Um choque eterno entre Copasa [Companhia de Saneamento de Minas Gerais], estado e a comunidade”.
Ele destaca ainda que Belo Horizonte e Contagem já possuem Planos Municipais de Saneamento Básico, mas que a implementação deste instrumento é que é o grande gargalo. “A realização do tratamento está muito ligada à gestão dos municípios e também à Copasa, e falar disso é tocar numa ferida. O que é apresentado [pela Copasa] como rede implementada para o esgoto recolhido e tratado é o que eu acho que é o maior choque existente hoje na questão do saneamento na Bacia do Ribeirão Onça. Essa diferença brutal entre o que é falado, o que tem de rede instalada, para aquilo que é recolhido e tratado é que tem que diminuir”.
A Bacia Hidrográfica do Ribeirão Onça compreende quatro estações de amostragem de qualidade das águas operadas pelo Instituto Mineiro das Águas (IGAM) localizadas no Rio das Velhas, Ribeirão Isidoro e Ribeirão Onça (uma antes e outra após a ETE Onça). As águas das estações são enquadradas como de Classe 3, a segunda pior numa classificação entre cinco diferentes níveis.
A ocupação irregular do território começou a partir de 1960 com a implantação do parque industrial em Contagem, que contribuiu ativamente para a degradação dos córregos afluentes. O parque industrial, com suas inúmeras empresas de setores automobilístico, alimentício e têxtil, é uma grande fonte de desenvolvimento econômico para os municípios de Belo Horizonte e Contagem, mas não deixa de impactar a região.
Para Eric Machado, a ocupação desordenada no território não deve ser atribuída somente à população de baixa renda. “Falo também de ocupações regulares de todo o tipo e também da classe média alta, que ocupa as APPs [Áreas de Preservação Permanente] dos córregos e das nascentes, dificultando toda a questão de permeabilidade e qualidade ambiental e da água”, ressaltou.
Aliado à ocupação desordenada do território, à canalização dos cursos d’água e à impermeabilização do solo, há sempre o risco de transbordamento dos córregos na regional de Venda Nova durante a época das chuvas, que conta com 20 pontos de inundação.
A Avenida Vilarinho, que abriga o córrego de mesmo nome, ganha espaço nas manchetes dos jornais no período chuvoso, já que é uma das principais áreas de inundação histórica da cidade. “Fico preocupada com as enchentes e vejo que é um problema ambiental e da organização urbana da cidade. A menina que faleceu na Avenida 12 de Outubro [em decorrência das inundações, ao final de 2018] era da minha comunidade, e quando vejo vidas se perdendo e prejuízos na natureza me causa uma indignação”, destacou Celeste, moradora no entorno do Vilarinho.
“Perto de muita água tudo é mais feliz”
A célebre frase do escritor mineiro Guimarães Rosa reflete sobre como a água é essencial para nossa vida, para nossa existência e até para a nossa felicidade. Nesse sentido, é válido ressaltar que em meio desse mais de um milhão de pessoas que vivem do e no Ribeirão Onça, e que dependem dele de alguma forma para viver, existem muitas pessoas lutando e sonhando para recuperar a água de qualidade do curso d’água.
É o caso do Subcomitê do Ribeirão Onça, vinculado ao CBH Rio das Velhas, que conta com diversos atores sociais que têm um objetivo comum: ver o Ribeirão Onça cheio de vida. Assim, de forma coletiva e participativa, o Subcomitê discute maneiras de compatibilizar o equilíbrio ecológico com o desenvolvimento econômico e socioambiental do território.
Para Eric Machado, coordenador-geral do Subcomitê Ribeirão Onça, a mobilização é fundamental para a aventura que é recuperar o curso d’água. “Sem a comunidade, sem o mobilizador e sem os conselheiros com seus conhecimentos de território e de demandas, não conseguimos caminhar. Aquele que realmente conhece o território nos ajuda a transformar os sonhos e vontades em realidade”.
Revitalizar, transformar e recriar o Ribeirão Onça com certeza não é e não será uma tarefa fácil, mas há muitas pessoas que chamam esse rio de seu.
Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Ohana Padilha
*Fotos: Bianca Aun, Michelle Parron e Ohana Padilha