Revista Velhas nº15: Quando a universidade encontra-se com a comunidade

02/05/2022 - 13:05

Professores, estudantes e moradores se unem para projetar a vida nos bairros de Belo Horizonte


 

“EU VEJO A VIDA MELHOR NO FUTURO…”

Tempos Modernos, Lulu Santos

Jardim Felicidade, em 1993, era um lugar bem diferente de um jardim e estava longe de despertar no Cleiton Henriques da Silva algum sentimento de alegria. Com 13 anos de idade, no dia da sua mudança para lá, uma das primeiras imagens que viu foi a de um córrego sujo, um esgoto a céu aberto. Era o córrego Tamboril, conhecido também como Fazenda Velha. Diante daquela cena, Cleiton lamentou: “não acredito que vou morar perto desse córrego”.

Localizado na bacia do Ribeirão Onça, região Norte de Belo Horizonte, o bairro Jardim Felicidade foi loteado em 1980. Os moradores foram os responsáveis por erguer suas próprias casas, além das primeiras obras de infraestrutura, tudo no sistema de mutirão. Na época, o córrego Tamboril era limpo, o que permitia aos moradores usarem sua água, e cada lar tinha sua própria fossa. Com a chegada da rede de esgoto da Copasa, sem interceptores, o córrego passou a ser poluído. A partir daí, a população deixou de ter uma relação de cuidado e hoje o Tamboril não está como o Cleiton o encontrou em 1993, mas ainda precisa de cuidados e da retirada de esgoto e entulho, despejados pelos próprios moradores.

Cleiton é um jovem ativista que batalha pelas melhorias no bairro. O despertar da consciência ambiental e social surgiu a partir do contato com o grupo de teatro do Jardim Felicidade. Hoje, ele participa de uma série de ações do Núcleo Tamboril, ligado ao Projeto Manuelzão. “Eu sou um dos fundadores da Associação Coletiva da Juventude, uma associação de jovens criada em 2011 pelo interesse em trazer melhorias ao bairro. Agora chamamos de Associação Coletiva, porque não são só mais jovens que participam. Na época, levantamos as pautas prioritárias do coletivo, algumas delas ambientais, como o Parque Izidoro e a preservação e revitalização do córrego Tamboril”.

Cleiton Henriques da Silva integra coletivos comunitários e luta pela revitalização do córrego Tamboril, na região Norte de BH.

Cleiton Henriques da Silva integra coletivos comunitários e luta pela revitalização do córrego Tamboril, na região Norte de BH.

 

A união dos moradores, que marcou a história dos primeiros anos do Jardim Felicidade, foi fundamental para que, em 2017, a comunidade barrasse um projeto para a região apresentado pela Prefeitura de Belo Horizonte em audiência pública, que envolvia uma série de modificações, inclusive a desapropriação de várias casas. “A prefeitura apresentou um projeto para revitalizar o córrego, mas se tratava de um projeto viário com a ampliação de uma via principal, uma avenida às margens do córrego.

O projeto deixou nítido que, a partir dali, seriam necessários dois passos para cobrir o córrego Tamboril. E a comunidade se uniu e negou o projeto. A partir disso, criou-se a vontade da população de dizer o que ela queria”, conta a arquiteta Elisa Marques, que iniciou, com outros alunos e com o professor de arquitetura da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Roberto Andrés, uma colaboração com os moradores para elaboração de um outro caminho possível para o córrego e para o bairro, bem diferente daquele apresentado pela prefeitura.

Em três meses foi construído um projeto que conciliava os aspectos urbanísticos e ambientais do Jardim Felicidade, que incluía a recuperação do Córrego. Foram realizadas práticas de discussão e análise dos desejos e das necessidades da população, com o intuito de estabelecer diretrizes de melhorias para o córrego e seus arredores.

Arquiteta Elisa Marques, da UFMG, ajudou a desenvolver projeto que conciliava aspectos urbanísticos e ambientais para o Jardim Felicidade, incluindo a recuperação do córrego Tamboril.

Arquiteta Elisa Marques, da UFMG, ajudou a desenvolver projeto que conciliava aspectos urbanísticos e ambientais para o Jardim Felicidade, incluindo a recuperação do córrego Tamboril.

 

A proposta valoriza o convívio, como calçadas mais largas, pontos de travessia do córrego, redução da velocidade dos veículos, espaços de lazer, praças, alamedas e hortas comunitárias. Apresenta elementos de cuidado ambiental e infraestrutura, como a recuperação de nascentes, interceptação de esgoto, drenagem de água de chuva e tratamento das margens. Dessa forma, ressignifica a presença do córrego no bairro e torna positivo o convívio entre ele e os moradores.

“Por mais que a gente tenha um senso crítico avançado, muitas vezes estamos ali emaranhados de tantos problemas e algumas coisas vão passando batido. Da mesma forma que a gente resolve algumas coisas, é importante ter gente que vem de fora, inclusive com energia e com conhecimento, e a presença da universidade sempre nos anima e encoraja”, explica Cleiton ao relembrar o processo participativo que resultou na criação do projeto de revitalização do córrego com os professores e alunos da UFMG.

Mas o primeiro contato do Jardim Felicidade com a universidade começa antes disso. Cleiton conheceu Roberto Andrés, professor de arquitetura, durante o projeto da Rua de Lazer. A Associação Coletiva já queria criar uma área de lazer no bairro. Ao encontro desse desejo, o professor elaborou um projeto com os alunos de arquitetura que criava um espaço próximo às bicas de água que haviam passado por um processo de recuperação.

Essa revitalização da nascente foi fruto da iniciativa ‘Valorização das Nascentes Urbanas’, promovida pelo CBH Rio das Velhas e Subcomitê Ribeirão Onça a partir dos recursos da cobrança pelo uso da água na bacia. No local, foi realizada a limpeza e o plantio de mudas e grama, contenção de barranco em madeira, construção e melhoria dos reservatórios de água e das bicas. Com a comunidade, foi feita uma campanha para arrecadar materiais e realizar um mutirão para a criação do espaço de lazer.

Para Roberto, o contato dos estudantes com os moradores fez com que eles entrassem em contato com o mundo real. “Faz parte do processo acadêmico tomar distância de algumas coisas, mas a gente também precisa se aproximar para ficar próximo das pessoas, do real, dos problemas reais. Eu acho que a universidade ganha muito, não só pela experiência do real, mas pelas trocas de saberes. Aproximar-se, fazer as coisas juntos, permite formar profissionais mais atentos ao que está se passando, que papel eles podem ter e como podem contribuir. Acho que é pensar a cidade como uma escola. E todos têm a ganhar com isso.”

Meses depois, a Rua de Lazer, quarteirão que concentra as principais nascentes do córrego Tamboril, recebeu a colaboração dos estudantes da Faculdade Izabela Hendrix, que construíram um projeto arquitetônico para o espaço coletivo. O projeto foi apresentado para a prefeitura, que não deu retorno. Assim como fez com o projeto de revitalização do córrego Tamboril.

Córrego Tamboril, pertencente à bacia do Ribeirão Onça, atravessa o bairro Jardim Felicidade.

Córrego Tamboril, pertencente à bacia do Ribeirão Onça, atravessa o bairro Jardim Felicidade.

 

Porém, o Cleiton carrega com ele um tipo de esperança que aprendeu com o Paulo Freire. A esperança de esperançar. “São muitos desafios, quando eu passo na beira do córrego, eu fico chateado cada vez que eu vejo um ponto de entulho novo. Mas, enquanto a gente ficar quieto, isso nunca vai mudar.

A gente costuma dizer que só a luta transforma. A gente está em uma época de pouca escuta, e isso está se refletindo na gestão pública. Mas eu acredito em tempos melhores, tempos em que as pessoas vão voltar a discutir mais coletivamente, dar atenção às comunidades, escutar mais. Estamos retomando os trabalhos para colocar em pauta essas pendências e a gente espera alcançar um futuro em que de fato essa água seja vista pelos moradores e pela prefeitura como uma fonte de vida, de lazer, com um meio ambiente protegido, onde o ecossistema seja estabelecido.”

Em 2017, o CBH Rio das Velhas e o Subcomitê Ribeirão Onça somaram forças aos coletivos comunitários e à Faculdade de Arquitetura da UFMG e promoveram a revitalização de uma nascente no bairro Jardim Felicidade.

Em 2017, o CBH Rio das Velhas e o Subcomitê Ribeirão Onça somaram forças aos coletivos comunitários e à Faculdade de Arquitetura da UFMG e promoveram a revitalização de uma nascente no bairro Jardim Felicidade.

 

Núcleo Capão

Ainda na bacia do Ribeirão Onça, o pessoal do Núcleo Capão, ligado ao Projeto Manuelzão, mantém uma relação intensa com diversas universidades além da UFMG, como Izabela Hendrix, Fumec, Una e o IFMG (Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Minas Gerais). Uma das lideranças à frente do Núcleo é a Roseli Correia da Silva, coordenadora-geral do Subcomitê Ribeirão Onça e professora da rede municipal de ensino que, junto a outros voluntários, luta por melhorias tanto na qualidade da água do córrego do Capão, quanto na qualidade de vida da população na região de Venda Nova.

“Desde que a gente começou a se envolver com o território, ouvíamos falar que o córrego Capão ia virar uma avenida. Tivemos acesso a um projeto enorme da prefeitura, com avenida com três pistas de cada lado. A ideia era ligar a Cidade Administrativa, passando por Venda Nova e finalizando em Betim. A comunidade se apropriou dessa ideia e até hoje muita gente espera essa avenida. Era preciso criar um novo imaginário para a comunidade, mostrar que aquilo poderia virar outra coisa, como um parque ciliar, por exemplo.”

Dito e feito. A estudante Priscila Melo, do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade Izabela Hendrix, criou o projeto do Parque Linear do Córrego Capão. “Ela pensou no Capão como um parque com 2 km e meio de extensão, desde a nascente até a foz, com vários equipamentos, recomposição da mata ciliar integrando a comunidade cigana que vive dentro da área”, conta Roseli. Além desse projeto, outros estudantes elaboraram planos de mobilidade urbana e habitação para a região. Juntas, essas propostas integraram um dossiê apresentado para a Prefeitura de Belo Horizonte durante uma reunião do Subcomitê Ribeirão Onça, ainda sem retorno.

Recentemente, estudantes de paisagismo do IFMG – Campus Santa Luzia elaboraram outro projeto que inclui a proposta da horta comunitária no sistema de Agrofloresta. Fizeram o levantamento de dados e vegetação adequada e conseguiram 1.500 mudas para o reflorestamento. O plantio deve acontecer ainda no primeiro semestre de 2022.

Em parceria com diversas universidades, Núcleo Capão anseia pela criação do Parque Linear do Córrego do Capão e por resposta da Prefeitura de Belo Horizonte.

Em parceria com diversas universidades, Núcleo Capão anseia pela criação do Parque Linear do Córrego do Capão e por resposta da Prefeitura de Belo Horizonte.

 

Cercadinho Vivo

Márcia Marques atualmente coordena o Subcomitê Ribeirão Arrudas, vinculado ao CBH Rio das Velhas.

Márcia Marques atualmente coordena o Subcomitê Ribeirão Arrudas, vinculado ao CBH Rio das Velhas.

Em outro ponto da cidade, na Bacia do Ribeirão Arrudas, a mestre em geografia e análise ambiental, Márcia Marques, foi uma das responsáveis por criar pontes entre a UNI-BH e os moradores dos bairros Buritis e Havaí, próximos ao córrego Cercadinho.

Elaborado como um projeto de extensão, o Cercadinho Vivo foi realizado entre 2015 e 2019 com o objetivo de divulgar para as pessoas a Lei das Águas e a oportunidade que os moradores têm de participar da solução dos problemas da região por meio dos Comitês de Bacias. “A gente fazia, ao mesmo tempo, o monitoramento da bacia do Cercadinho e divulgava os resultados em eventos, realizava ações socioambientais e mostramos que existe como buscar soluções para os problemas da bacia. Era, ao mesmo tempo, um trabalho educativo e técnico/acadêmico”, explica Márcia, hoje coordenadora-geral do Subcomitê Ribeirão Arrudas.

Atualmente, o projeto está caminhando para se transformar em uma associação que atue na resolução de problemas ambientais dentro da bacia. Os ex-alunos continuaram atuantes e o projeto se transformou em um movimento em prol da bacia do cercadinho, com a participação de pessoas de frentes políticas, sociais, ambientais, além da equipe técnica formada por ex-alunos.

 


Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Michelle Parron
Fotos: Bianca Aun, Fernando Piancastelli, Léo Boi e Ohana Padilha
Ilustração: Clermont Cintra