De estagiário do Projeto Manuelzão a Conselheiro do Conama: duas décadas em defesa dos recursos hídricos
Rodrigo Silva Lemos nasceu em Belo Horizonte há 40 anos. Geógrafo graduado pelo Instituto de Geociências da UFMG, é mestre e doutor em Geografia e Análise Ambiental e leciona na pós-graduação da PUC Minas.
Com participação ativa na Câmara Técnica de Outorga e Cobrança (CTOC) do CBH Rio das Velhas nos últimos anos, Rodrigo começou sua militância ambiental como estagiário do Projeto Manuelzão, concebido na Faculdade de Medicina da mesma universidade onde estudou. Foi também da primeira equipe de Mobilização do Comitê, um dos primeiros funcionários da Agência Peixe Vivo, conselheiro e coordenador do Subcomitê Ribeirão Arrudas.
Essa experiência juvenil “permitiu uma leitura política da realidade, acionando uma dinâmica de prática política e militância ambiental combinadas com a lógica técnica da pesquisa”, recorda.
Se “o Manuelzão trouxe a perspectiva do processo e do movimento ambiental”, o CBH Rio das Velhas, que vê “como o mais avançado na dinâmica da gestão de bacias”, “acrescentou outra dimensão: a lógica da participação popular nas estruturas de governança, num conceito tripartite, que reúne sociedade, usuário de água e poder público na mesma mesa de negociação”.
Nesta entrevista à Revista Velhas, Lemos fala do retorno do Instituto Guaicuy ao Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), instituição que representa no órgão máximo da área e, ainda, da questão hídrica, da política ambiental e seus desafios, de participação social, dos 25 anos do CBH Rio das Velhas e das perspectivas da Câmara Técnica da qual é membro.
Rodrigo foi também dos primeiros a compor a equipe de mobilização social e educação ambiental do comitê
O que significa o fato de o Instituto Guaicuy voltar a ocupar uma cadeira no Conama depois de ter sido cassado pelo governo anterior, em 2019, no processo de desmonte do colegiado?
O Conama foi criado junto com a Política Nacional de Meio Ambiente, em 1981, numa perspectiva muito clara de que o desenvolvimento sustentável – e os limites necessários para um tipo de crescimento cada vez mais danoso – não conseguiria ser implementado só pelo Estado. Retomar o Conama é retomar a pauta ambiental e afirmar que ela é decisão da sociedade, não de uns poucos detentores de poder nem de um poder totalitário e centralizador, como vivemos há pouco. É muito importante essa retomada, principalmente porque o Conama pauta o debate ambiental e a forma como ele vai se dar em nível nacional, tanto nas lógicas de estados quanto na de municípios.
Eu acho que a responsabilidade é conseguir representar a diversidade em que estamos inseridos. Para a sociedade civil, essa representação é uma forma de diálogo. As demais instituições estão em contato cotidiano com a gente, pensando nas melhores formas de orientação e de construção. O Guaicuy não se representa, representa uma pauta de um conjunto de perspectivas que vêm dos movimentos ambientais, que a gente tenta construir de forma bem espraiada.
Como a sua já longa experiência na defesa dos recursos hídricos vai orientar sua atuação no órgão colegiado?
Foram criados dois modelos, o Conama e o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, dois sistemas paralelos de gestão. A pauta ambiental não anda junto com a questão do licenciamento, não anda junto com a proteção dos recursos hídricos. O licenciamento é instrumento da política ambiental, a outorga é um instrumento da política de recursos hídricos, mas os dois dialogarem é muito difícil. Porém, é claro que a interface entre recursos hídricos e meio ambiente é muito grande. Rio não é água, peixe e pessoas. São todas essas coisas misturadas e isso é a definição de meio ambiente.
Uma das experiências que a gente tenta trazer é a de pensar os recursos hídricos nessa escala continental que é o Brasil, seus custos como um recurso ameaçado, finito. Ainda que sob diferentes perspectivas e contextos, o que vemos são formas de desenvolvimento muito pouco sensíveis à dinâmica hídrica, e essa não é uma realidade apenas do Sudeste. O povo lá do Sul informa que os arroios estão secando. No Norte, onde tem lugar que chove 2.500 mm por ano, está acontecendo também. Essa dimensão a gente catalisa, provoca, e ela é percebida pelas outras instituições também.
Como você vê a retomada da política ambiental no Brasil e em que terreno essa retomada se dá?
O governo Bolsonaro, na verdade, promoveu a retomada de um padrão recorrente, um modelo de desenvolvimento de grande exportador, muito dependente tecnologicamente do exterior e muito perverso com as pessoas. Tivemos foi um suspiro, aí do início de 2000 até 2015, mais ou menos, de falar que as coisas poderiam ser diferentes, mas o que a gente teve no governo Bolsonaro foi a replicação, perversa e violenta, de um modelo de desenvolvimento que vem desde 1500 e que se viu de alguma forma ameaçado nos anos anteriores.
Acho que o que temos que entender é que a pauta ambiental não foi sucateada pelo interesse de um governo, mas por interesses de setores econômicos e por uma baixa adesão em termos de prioridade social mesmo. Não passou o inverno e chegou a primavera, com as coisas todas bonitas. Não. O desafio é tão grande ou pior do que foi no período do Bolsonaro, porque todos esses setores se entendem empoderados e validados. A gente retrocedeu nos níveis político e ético. É um modelo que se afirmou muito forte, de um crescimento econômico a todo custo. Esses setores nunca dormiram. Não é a ação do governo Bolsonaro que explica, por exemplo, o aumento recorde do desmatamento na Mata Atlântica em Minas Gerais. O que eu acho que é muito importante refletir é sobre o que queremos construir enquanto política de Estado, como ressignificar tudo isso.
Quais são os principais desafios da agenda de políticas públicas para a questão ambiental, hídrica e climática?
O Brasil está decidindo para onde vai, qual a sua agenda dos próximos 30 anos. Os olhos do mundo estão voltados para nós porque somos um dos poucos países no fiel da balança de todo o equilíbrio da dinâmica global, principalmente com as mudanças climáticas. Todo mundo olhou com muita apreensão o aumento do desmatamento no Brasil e vai continuar olhando. Isso pode ser uma oportunidade, em nível de negócios também. Mas, principalmente, a gente tem que rever a nossa elite produtiva, porque ela só consegue pensar em atividades de baixo poder de transformação e com baixo valor agregado. Querem exportar ferro, mas não aço. O agropop encontrou o seu limite, não consegue mais se desenvolver, alguma coisa tem que ser feita.
A maior centralidade, hoje, ao discutir meio ambiente, é discutir modelo de desenvolvimento e qualidade de vida, como as pessoas são sujeitas a padrões ambientais e impactos diferenciados. Então você traz a discussão sobre racismo ambiental. Por que a população que está nas áreas mais vulneráveis e com maior nível de risco é normalmente de baixa renda e preta?
Dona Ivana Eva, lá do Barreiro [bairro de Belo Horizonte], uma das grandes referências ambientais minhas e do Projeto Manuelzão, tinha uma frase que eu nunca esqueci: “Não existe desenvolvimento sustentável enquanto tiver uma criança com fome”. É exatamente esse o grande desafio: construir uma forma de desenvolvimento que compartilhe os benefícios e garanta maior equidade ambiental entre as pessoas, um modelo sustentável. Discutir desenvolvimento é discutir as nossas formas produtivas e para quem esse recurso é distribuído e de que forma, tanto nos benefícios do crescimento como nos seus impactos.
Como membro da CTOC, integrou visitas técnicas a empreendimentos que solicitaram outorga perante o CBH
Qual é a importância da participação social na promoção de mais efetividade nas políticas ambientais?
As decisões têm que ser tomadas cada vez mais perto do indivíduo, pelo princípio de subsidiariedade [pelo qual as questões sociais ou políticas devem ser resolvidas no plano local mais imediato capaz de resolvê-las], está na Constituição Federal. A minha realidade, a sua, são individuais. A participação social surge não como compartilhamento cego de poder, mas como necessidade para a efetividade da política pública. Nessa trajetória, a primeira luta foi pela institucionalização da participação. Aí vieram o Conama, os Comitês de Bacia, o Copam [Conselho Estadual de Política Ambiental], todas essas instâncias. Depois, a luta foi para construir a voz dentro dos espaços. E a voz muitas vezes encontra uma barreira técnica. Parece que você tem que ser técnico, mas a participação popular tem que responder também a outros conhecimentos e leituras que não são técnicas.
Principalmente depois de 2010, muito do que havia de construção participativa foi enfraquecido. Um exemplo é a grande centralização de decisões em Minas, com a concentração nas Câmaras Técnicas Especializadas, na reformulação do Copam. Outro problema é que a grande maioria dos jovens está em outras dimensões da sociedade civil porque não vê nesses um espaço de mudança. E Conselho de Política Pública tem que ser espaço de mudança, senão não faz sentido.
Como você resumiria o papel desempenhado pelo CBH Rio das Velhas nesses 25 anos de existência?
O CBH Velhas é considerado um dos Comitês estaduais com maior nível de envolvimento da sociedade civil, é referência nacional. Nesses 25 anos, o Comitê construiu maturidade e respeito institucional, mas penso que hoje a maior complexidade é garantir que suas diretrizes sejam atendidas. Nosso Plano Diretor conseguiu atingir poucas metas. Temos uma realidade arcaica na bacia, de lançamento de esgotos domésticos e de poluição difusa da Região Metropolitana, coisas que já têm solução, mas que andam a passos muito lentos.
Não adianta o CBH falar “tal curso d’água é enquadrado como Classe 1”, porque o município vai lá e coloca um distrito industrial em cima do curso d’água. O Comitê tem uma responsabilidade muito grande e uma responsabilização baixa. São competências muito expressivas e recursos insuficientes. Se não tem o recurso, tem que construir articulação.
Se tem que construir articulação, tem que ter autoridade. Um dos grandes desafios é integrar essas dimensões, usos, formas municipais, políticas de Estado, tudo isso dentro de algo menos danoso, mais sensível para a dinâmica hídrica. Como lidar com isso ao longo do tempo é uma questão que o Comitê do Velhas e todos os Comitês de Bacia vão ter que se debruçar bastante. E isso passa pelo reconhecimento de uma autoridade institucional que vejo enfraquecida.
Você recentemente foi coordenador e secretário da CTOC do CBH Rio das Velhas. Qual o seu balanço sobre esses anos de atuação da câmara técnica?
Minas Gerais é o único estado, pelo menos até 2015 e que eu saiba, que submetia seus processos de outorga de grande porte aos Comitês de Bacia. O que isso significa? A outorga, no Comitê do Velhas, é a possibilidade de discussão política das ações, do que está sendo feito na bacia. Penso que deveríamos discutir mais a regulação de processos, um desafio muito forte que só é possível se houver diálogo e articulação institucional com os outros entes associados na gestão territorial. Seria um empoderamento inédito. Pelo PDRH, o Comitê pode estabelecer instrumentos de regulação de uso da terra. Mas se fala “não pode isso aqui”, o município diz: “eu vou fazer”. E qual é a responsabilidade do município? Nenhuma.
Percebo, no cotidiano, uma tentativa cada vez maior de diminuir o processo de outorga para torná-lo uma forma quase que afirmativa, quase equiparada a uma licença. Creio que essa é uma reflexão que a CTOC vai ter que fazer. A Câmara tem que ser fortalecida ao ponto de dizer não. Dizer não, consequentemente, a uma atividade econômica, com o prejuízo econômico que isso gera. Dizer não percebendo que aquele prejuízo não se equipara a um prejuízo maior que é coletivo e que é ambiental.
Geógrafo Rodrigo Lemos coleciona passagens por quase todas as esferas ligadas ao CBH Rio das Velhas
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Por Paulo Barcala