Revista Velhas nº 20: Somos todos ribeirinhos

05/12/2024 - 16:39

Mais de 30 anos em defesa do rio vivo fazem da trajetória de Marcus Vinícius Polignano uma bússola a orientar caminhos

 

Presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas por sete anos, secretário por outros dois e atual vice-presidente do CBH do Rio São Francisco, Marcus Vinícius Polignano, professor da Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e um dos fundadores do Projeto Manuelzão, sabe onde mora: “O nosso endereço na Terra não é a rua, não é o CEP, mas é o rio”.

Acompanhe a seguir, mais do que uma entrevista, uma contação de história, uma narrativa, uma interpretação do mundo do ponto de vista de quem sabe o valor dessa morada.

 

Depois de tantos anos à frente do CBH Rio das Velhas, que balanço você faz e o que apontaria como os principais marcos dessa trajetória?

Eu gostaria de começar por uma reflexão mais geral sobre em que ponto a gente está na questão ambiental. Estamos num momento muito complexo da nossa história. Nunca tivemos tanta tecnologia, conhecimento e informação, mas estamos cuidando muito mal das condições naturais do planeta. Vivemos um cataclismo climático. Nesta exata hora da entrevista, temos a imagem clara de tudo que aconteceu no Rio Grande do Sul (e a gente deixa aqui a nossa profunda solidariedade ao povo gaúcho), demonstrando o quanto a gente está desregulado do ponto de vista climático e como essas coisas impactam a vida das pessoas nos mais diversos territórios e países.

Sobre marcos e balanços, essa questão dos rios comecei a trabalhar ali por 1996, quando criamos o Projeto Manuelzão. A gente percebia, então, que as águas refletiam essa dualidade de caminhos: de um lado, a gente quer e necessita de água limpa e disponível em quantidade e qualidade; mas, do outro, trabalha-se exatamente na contramão, degradando, contaminando os cursos d’água, destruindo as áreas de recarga. Por isso a gente investiu muito nessa proposta dos Comitês de Bacia como uma forma de organização cujo arcabouço legal trazia parâmetros importantes, como o que estabelecia que a água é um bem público dotado de valor econômico, que tem que ser compartilhado através da participação de todos os segmentos da sociedade em favor de uma bacia equilibrada, que abarque os usos múltiplos, dentro das possibilidades e limitações que ela tem.

A gente procurou, do ponto de vista do Comitê, realçar que o caminho passa pela participação social, e uma coisa inovadora que a gente trouxe, e que até hoje é inovadora em termos de Brasil, foi a ideia dos Subcomitês por sub-bacia. Hoje temos 21 Subcomitês no CBH Rio das Velhas, formados por pessoas de um dado território, da comunidade, dos usuários e do poder público local, para que exista essa percepção da realidade de cada lugar. Trabalhamos, ao longo desse tempo, para consolidar os Subcomitês, fazer com que eles pensassem em projetos locais, em mobilização e articulação, atuassem pela revitalização e pela proteção de nascentes, pela recuperação de áreas degradadas, mapeando áreas prioritárias para conservação, fazer planos de saneamento, ação fundamental dada a escassez de recursos dos municípios, e o CBH Velhas fez mais de 20 planos para os municípios, possibilitando-lhes um instrumento legal para buscarem financiamento para cuidar da água e tratar os esgotos.

Polignano ao lado de outras lideranças do Projeto Manuelzão, ao qual ajudou a fundar no final dos anos 1990.

Como ampliar a percepção popular sobre a questão hídrica e ambiental e atrair apoio para as medidas que se tornam cada dia mais urgentes?

Fomos o primeiro Comitê a estabelecer uma estratégia para a revitalização. Em 2005, após a grande mobilização da Expedição 2003, criamos a meta de nadar, pescar e navegar no Rio das Velhas até 2010 – algo totalmente audacioso, mas a gente sabe que, se tivéssemos feito tudo que estava previsto, teríamos alcançado essa meta. É inegável, porém, que tivemos resultados que dificilmente alcançaríamos sem essa estratégia. A Estação [de Tratamento de Esgotos] do Onça foi construída em tempo recorde. A gente não conseguiu nadar, evidentemente, porque não conseguimos interceptar todos os esgotos, mas você imagina que uma capital que não tratava nem 10% do seu esgoto passou a tratar de 60 a 70%. Isso significou a volta dos peixes, que foram como que um símbolo de que é possível a humanidade reverter processos de degradação.

Através da comunicação, procuramos socializar a informação e motivar as pessoas. Independente do ponto do rio em que elas estejam, somos membros de uma grande família chamada Rio das Velhas, e o Velhas reflete a complexidade e a capacidade de resposta de cada um dos seus afluentes. Além do mais, o Rio das Velhas não morre em si mesmo, ele é São Francisco, ou seja, o que fazemos aqui é uma mensagem que a gente leva para o Rio São Francisco. Esse movimento chamado “Eu viro carranca para defender o Velho Chico” [campanha institucional do CBH do Rio São Francisco] é exatamente para que todo mundo sinta que tem um endereço na Terra que não é a rua, não é o CEP, mas é o rio. Somos todos, vamos dizer, ribeirinhos, e fazemos parte da família são-franciscana e, mais especificamente, do Rio das Velhas.

A gente sempre realçou a visão de que Comitê de Bacia é para trabalhar com rio vivo, um rio que tenha não só a capacidade de abastecer, de servir aos vários usos para o ser humano, para os animais, para a indústria e a agricultura, mas que também seja vivo na sua biodiversidade, que tenha peixe, vida aquática, e que também seja um lugar de lazer, onde seja possível nadar, pescar, navegar.

 

“O Rio das Velhas não morre em si mesmo, ele é São Francisco, ou seja, o que fazemos aqui é uma mensagem que a gente leva para o São Francisco”

 

Você já tem planos para depois desse mandato de vice-presidente do CBH do Rio São Francisco?

Eu acho que tem que ir construindo a vida como ela é. Às vezes se tem essa prepotência de dizer: “Olha, vamos mudar o rumo da história, amanhã estaremos noutro patamar, noutra situação”. Uma coisa é certa: vamos continuar na nossa plataforma de lançamento, o Projeto Manuelzão, que é onde a gente acumula, reflete, tem liberdade para pensar, refletir e se posicionar sem as limitações que às vezes a representação institucional impõe.

No CBH do Rio São Francisco tem sido esse trabalho de buscar fortalecer [a proteção do patrimônio hídrico] num momento muito difícil, em que a gente sempre está às voltas com projetos tramitando no Congresso Nacional que tentam minar as políticas das águas, as áreas de proteção e até o financiamento dos projetos de revitalização.

Eu acho que o projeto que a gente tem e sempre teve nunca foi personalista. A perspectiva é trabalhar pelo bem coletivo e da melhor forma possível, e isso depende de cada momento, de cada situação, de como você vai poder contribuir. Não é construção de projeção pessoal, é a projeção de um futuro melhor, seja para a bacia do Velhas, seja para a bacia do São Francisco ou do ambiente todo. Essa perspectiva não é pessoal, é uma construção política de processos.

Presidente do CBH Rio das Velhas por sete anos, Polignano agora é vice do CBH do Rio São Francisco.

Os Comitês cuidam da gestão das águas, mas o uso e ocupação do solo ficam a cargo do município e o licenciamento por conta do Estado. Como é possível superar essa dispersão?

A gente consegue fazer uma coisa que a natureza não consegue, que é compartimentalizar o mundo, separar solo de rio, vegetação de água, passarinho de natureza. A natureza não é assim. Quando aquece a água do Pacífico, isso provoca uma distorção climática no planeta inteiro.

Tem coisas que efetivamente não estão sob o domínio do poder humano e uma delas se chama clima. O que nós temos controle é exatamente sobre aquilo que a gente deve fazer para entrar num caminho da resiliência. O grande desafio sempre foi fazer com que isso se traduza em políticas públicas. Porque nós temos uma limitação: se a Lei nº 9.433/97 permitiu que o Comitê fizesse a gestão das águas, e para isso previu o Plano [Diretor] da Bacia, o Enquadramento, as Outorgas e a Cobrança [pelo uso da água], por outro lado a bacia hidrográfica não é simplesmente água – ela é água e todo o conjunto de terras por ela drenadas. Ou seja, você tem aí uma questão de dominialidade do solo. A questão do uso e ocupação do solo está no Plano Diretor dos municípios, e é fundamental que essas coisas dialoguem entre si.

Às vezes o Comitê determina suas prioridades de uso e produção de água e os Planos Diretores [municipais] caminham na direção oposta. Você define, por exemplo, que determinadas regiões teriam que ser protegidas porque são APPs [Áreas de Preservação Permanentes], como as margens dos rios urbanos, as nascentes etc., e o que a gente assiste é que os Planos Diretores desconsideram quase qualquer questão em relação às águas e produzem efeitos absolutamente desastrosos, como a canalização em massa, sem critérios. Isso traz efeitos como o aumento da força e da velocidade, o que provoca esses impactos relacionados às inundações. E nisso o Comitê não tem dominialidade, então cria uma frustração. Tem que entender também que licenciamento ambiental e outorga têm que caminhar juntos. Você não pode autorizar empreendimentos que demandam extrema quantidade de água em lugares que já tem alta demanda. Isso é estupidez, e vai dar conflito com certeza! Não faz o menor sentido separar gestão hídrica e gestão ambiental. As ferramentas até existem, mas elas não se comunicam politicamente, não existe interesse que elas se comuniquem. E aí, é como diz aquela história: quem semeia vento colhe tempestade.

 

“É preciso redesenhar a cidade e, para redesenhar a cidade, temos que redesenhar a cabeça dos homens.”

 

Como aliviar essa situação de tensão hídrica e ambiental de BH e Região Metropolitana?

A humanidade que destrói é também a humanidade que pode reverter isso. Basta um ato político, deputados dizendo: “Tais e tais áreas são de preservação permanente, ponto”. Pela própria lei ambiental já deveriam ser automaticamente preservadas. Mais do que obras, a vontade política pode ter um resultado para o futuro muito mais direto e definitivo. Se definirmos que o Gandarela vai ser uma área de servidão ambiental permanente, acabou! Ali não se pode fazer esse tipo de exploração porque é uma área que tem condições excepcionais para ser um Patrimônio da Humanidade. Há quanto tempo estamos pedindo o tombamento da Serra do Curral, exatamente pela preservação de áreas de enorme potencial, tanto do ponto de vista de recarga para a bacia, quanto de amortecimento dos efeitos da chuva!?

Temos que pensar a cidade em convivência com o ambiente natural. Esse modelo de cidade toda asfaltada, cimentada, concretada, não serve. A China, que com razão foi muito criticada por sua carga poluidora muito pesada, tem procurado mostrar alternativas como as chamadas cidades-esponja, que se adaptam a essa questão da água, de resiliência à água, porque o que a gente precisa é ter resiliência e não resistência à água. Nós construímos cidades com fobia de água, que impermeabilizam tudo, aumentando a força da água.

Eu diria que, na maioria das vezes, a ação política, em sentido amplo, tem um poder destruidor muito maior do que qualquer outra ação. Você permite ao cara desmatar 1 mil hectares de Mata Atlântica e depois fica sugerindo aos cidadãos que plantem uma árvore. Não tem matemática que feche essa conta. Saber o que pode e o que não pode ser feito, onde se pode ter uma certa atividade e onde não se pode são critérios que a sociedade tem o direito de escolher e, os políticos, o dever de executar. Culpar a natureza pelas tragédias é ocultar o poder de fogo que esses poderes têm sobre os ambientes naturais. O modelo de cidade que nós temos é do tamanho da cabeça que a gente tem, da mentalidade que a gente tem. Se o rio é esgoto, é porque nós fizemos isso. Se inunda, se destrói, é porque nós fizemos. Sem mudança de mentalidade não tem civilização que sobreviva.

 

Tombamento da Serra do Curral é uma das bandeiras do professor da UFMG.

Ainda dá tempo de acreditar no futuro?

A gente está gastando por conta o nosso cheque especial. Há quem diga que passamos do ponto possível de reversão. E o que é pior é que as políticas continuam indo para cima de territórios que são áreas de recarga, que são áreas verdes – a gente está destruindo por conta sem saber o futuro que nos espera. Você imagina, além de todo o sofrimento do Rio Grande do Sul, os prejuízos de toda ordem, físicos, de capacidade de produção, do quanto as pessoas perderam, perde empresa, perde o pequeno, perde o cara as poucas coisas que construiu durante uma vida. Então, nós não podemos submeter todos a esse risco. Nós já tivemos aqui, em vários anos, enchentes no Velhas que também provocaram sérias perdas e consequências. Enquanto a gente continuar brigando com a natureza, não respeitando aquilo que lhe é próprio, a gente vai sofrer muito duramente as consequências dessa falta de compreensão.

Conflitos, porém, geram oportunidades. Por exemplo, até há pouco não se tinha nenhuma alternativa ao combustível fóssil. Era petróleo e petróleo, todos os carros a petróleo. Agora você tem toda uma disputa comercial mundial por motores que tenham outro tipo de funcionamento, elétricos ou híbridos, e agora até a hidrogênio. Isso é para dizer que a espécie humana tem capacidade intelectual e tecnológica de fazer com que as coisas sejam possíveis, no sentido da transformação. Não existe a impossibilidade de que se evolua, mas volto a insistir: nada substitui a necessidade básica de preservação da natureza. Nada substituirá o que a biodiversidade faz pelo planeta, o que as áreas verdes produzem. É bom lembrar que toda a nossa capacidade de descarbonizar vem, na verdade, de um processo básico que é a fotossíntese que as plantas fazem sem cobrar, de uma forma automática. Nós temos que entender que a natureza cumpre funções absolutamente essenciais ao funcionamento desse grande, vamos chamar assim, empreendimento chamado Planeta Terra. Se você for pensar até do ponto de vista do capital, a Terra é um grande empreendimento, um empreendimento fantástico que deu certo sem o homem, não dependeu de um dedo do ser humano, e agora o ser humano está fazendo uma força colossal, num período mínimo de 100 anos, para destruir o que levou milhões de anos para ser feito.

 

“A gente consegue fazer uma coisa que a natureza não consegue, que é compartimentalizar o mundo, separar solo de rio, vegetação de água, passarinho de natureza.”

 

 

 


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala