Você poderia imaginar que a construção de uma linha de trem na Bacia do Rio das Velhas pudesse nos levar a uma importante contribuição da medicina brasileira para o mundo? A descoberta da Doença de Chagas, que aconteceu há 110 anos na pequena cidade de Lassance, no Norte de Minas, se transformou em um marco ao revelar a visão integrada do doutor Carlos Chagas. Anos depois, precisamente entre 2000 e 2011, a enfermidade chegou a tirar a vida de 58.928 brasileiros, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Para entender melhor a história, contamos com os estudos, a memória e a capacidade do médico, idealizador e fundador do Projeto Manuelzão, Apolo Heringer Lisboa, de nos transportar ao início do século XX. “Oswaldo Cruz entregou a Carlos Chagas a missão de combater o surto de malária que impedia a construção do ramal ferroviário entre Corinto e Pirapora. Era 1907, no local de São Gonçalo das Tabocas, atual Lassance, chegou e instalou o laboratório/consultório num vagão ferroviário, se juntando a operários e engenheiros. Seu grande auxiliar era o velho microscópio”, conta Apolo.
Carlos Chagas era um médico mineiro, nascido em Oliveira (MG). Perdeu o pai aos cinco anos e aos sete foi enviado pela mãe para estudar em um seminário em São Paulo. Já no Rio de Janeiro, como médico diplomado, foi trabalhar com o também médico Oswaldo Cruz nas campanhas contra a varíola, malária e febre amarela.
Chagas não sabia que, anos depois, no compromisso de combater a doença transmitida pela fêmea do mosquito Anopheles (mosquito prego) no estado em que nasceu, uma descoberta o tornaria mundialmente conhecido. No combate à malária, Chagas “ouviu relatos de um inseto que picava o rosto das pessoas dormindo e coçava muito, provocava inchaço perto dos olhos, notado de manhã. Foi ver essas pessoas cedinho, colheu material do local das picadas e ao microscópio viu que o tal chupão ou barbeiro defecava e urinava perto do inchaço do rosto. Viu ao microscópio que aí estavam os micróbios e que o coçar poderia fazê-los penetrar no orifício da picada indo ao sangue. Examinando o intestino do barbeiro descobriu um Trypanosoma e enviou alguns insetos infectados ao Instituto de Manguinhos/RJ, para estudar o ciclo em mamíferos de laboratório. E confirmou a descoberta no sangue dos animais desta espécie, que denominou Trypanosoma cruzi, homenageando Oswaldo Cruz”, conta o fundador do projeto Manuelzão. A data da descoberta foi 14 de abril de 1909.
No ano passado, durante a 72ª Assembleia Mundial de Saúde, foi instituído 14 de abril como Dia Mundial de Doença de Chagas.
A doença no mundo e no Brasil
Crônica e endêmica em 21 países das Américas, a doença afeta, aproximadamente, 6 milhões de pessoas, com incidência anual de 30 mil casos novos nesses países, provocando uma média de 14 mil mortes por ano e 8 mil recém-nascidos infectados durante a gestação. Os dados são do Boletim Epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, publicado em novembro de 2019. Segundo o documento, cerca de 70 milhões de pessoas vivem em áreas de exposição nas Américas e correm o risco de contrair a doença.
No Brasil, foram notificados 4.685 indivíduos suspeitos com doença de Chagas em fase aguda (DCA) só em 2018. Destes, 380 foram confirmados. Os casos foram registrados em residentes de 66 municípios do território brasileiro, sendo que 76,3% residiam do estado do Pará. A maioria dos casos ocorreu em indivíduos do sexo masculino e média de idade de 32,9 anos, conforme apontam os dados do Ministério da Saúde apresentados no boletim.
Atualmente em Lassance, cidade onde a doença foi descoberta e que integra a Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, a prefeitura mantém um trabalho de prevenção para combater o aumento da Chagas. Agentes de endemias percorrem localidades todos os anos. Quando são encontrados barbeiros é feita a borrifação da residência e dos anexos, como galinheiro e chiqueiro. Também são feitas ações educativas com alunos e moradores para esclarecer sobre a causa da doença, sintomas e formas de prevenção. Na cidade, segundo a prefeitura, os portadores da doença estão acima dos 40 anos de idade.
Lassance também ganhou o Memorial Carlos Chagas, um espaço que foi reinaugurado em 2019 onde é possível ter acesso às informações sobre o médico, as ferramentas que ele utilizava e documentos da época.
Veja as fotos do Museu Carlos Chagas em Lassance:
Um mal que se prolifera na pobreza
A vulnerabilidade social aumenta o risco de contrair a doença, fato que coloca a pobreza como uma proliferadora da Doença de Chagas entre a população. “O nosso barbeiro é um inseto que vive nas gretas da parede das casas de sopapo, ou taipa, não rebocadas, nem pintadas, entre o barro e os varais da estrutura”, explica Apolo. O médico conta que a falta de luz elétrica e as condições de moradia facilitaram a transmissão da doença pelo inseto. “Nas casas de alvenaria dos proprietários das terras, mais bem construídas e conservadas, a doença era mais rara. Antes dos desmatamentos os barbeiros se alimentavam de gambás, macacos, tatus etc. Mas se adaptaram às moradias humanas ali construídas e aos galinheiros, a doença tem a ver com a ecologia, a pobreza e a falta de escolaridade”, explica Apolo.
Ainda que o controle do barbeiro seja um passo para combater a doença, ele não é o único transmissor. A Doença de Chagas pode ser transmitida pela transfusão de sangue, de mãe para filho e pelo consumo de alimentos contaminados pelas fezes do barbeiro.
Barbeiro transmissor da Doença de Chagas
A ciência e a visão integrada da saúde
A ciência, por meio de estudos e descobertas, salva muitas vidas e pode erradicar doenças pelo mundo. Essa mesma ciência também pode ser vista na vida e obra de Carlos Chagas. “A Saúde Pública brasileira, hoje representada pelo SUS [Sistema único de Saúde], e a Saúde Coletiva Ecossistêmica, ainda fora da concepção assistencialista do SUS, têm muito a ver com a visão integrada de Carlos Chagas. A ciência descobre coisas camufladas por aparências enganosas. Descobre que saúde está ligada a questões diversas, como política, guerras, economia, religião, meio ambiente, desmatamento, falta de saneamento, pobreza, tipo de moradias, poluição. Hoje o Brasil sofre com a terrível pandemia COVID-19, com milhares de mortos em meio a campanhas desvalorizando os cientistas, cortando verbas de pesquisas, das universidades, do ensino fundamental e do SUS”.
Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Michelle Parron
*Fotos: Lucas Nishimoto