Inundações, devastação e uma estranha lama atingem cidades do Alto Rio das Velhas

02/02/2022 - 10:55

Mais de 400 cidades mineiras em situação de emergência, com 8 mil desabrigados e 57 mil desalojados após o dilúvio que despencou em Minas nos primeiros dias de janeiro. O volume incomum de precipitação faz parte de uma nova era dos extremos que vem se tornando usual em decorrência das mudanças climáticas, filhas do aquecimento global. Das cabeceiras do Rio das Velhas à Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), municípios como Ouro Preto, Itabirito, Rio Acima, Nova Lima e Raposos foram fortemente afetados pelas enchentes.


Além da intensidade das chuvas, outra coisa atraiu a preocupação das cidades atingidas: a lama que cobriu casas, quintas, ruas, pontes e até telhados. “Muito estranha, espessa, viscosa, homogênea, que parece processada”, notou Glauco Gonçalves Dias, da ONG Casa de Gentil, morador de Raposos e ex-coordenador do Subcomitê Águas do Gandarela, vinculado ao Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas).

De acordo com dados fornecidos pela prefeitura de Raposos, os números da Estação Água Limpa, do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, acusaram aproximadamente 400 mm de chuva entre 4 e 10 de janeiro, acima da metade concentrada em apenas 48 horas, em 8 e 9/1.

Mais de 20 dias depois do pico das cheias, a lama continua nos bairros Vila Bela e Matadouro. Já em Itabirito, após os dias de sol forte e limpeza, adquiriu a forma de “poeira com particulado muito fino, característica de minério”, conta Heloísa França, do Subcomitê Rio Itabirito e gerente técnica do Serviço Autônomo de Saneamento Básico (SAAE) da cidade – que também sofreu com a lama densa de até “um metro de altura” e gastou máquinas, caminhões e retroescavadeiras para limpar a sujeira, tal a consistência do material acumulado.

Pelo levantamento inicial, estima França, “os prejuízos, só do SAAE, incluem sistemas de esgotamento avariados, parte da rede de interceptação rompida, danos em elevatórias e vários sistemas de drenagem obstruídos pelo enorme volume de lama”.


Cheia do Rio das Velhas, em janeiro de 2022, inundou o município, transformando ruas em verdadeiros rios


Glauco lembra também a cheia de 2020, “muito grande”, mas garante: “Em 2022 foi um metro mais alta e com uma diferença muito grande”. Ele compara os resíduos normais de uma enchente de um rio preservado, como o Ribeirão da Prata, que nasce no Parque Nacional Serra do Gandarela e cai no Velhas em Raposos, no bairro Várzea do Sítio, com o que veio diretamente pelo Rio das Velhas: “Em Raposos não tem mineradora, mas as águas vêm de Rio Acima, Nova Lima, Itabirito e Ouro Preto”, região povoada de minas, pilhas de rejeito e barragens.

O cálculo dos danos ainda está longe de fechar a conta. “Na beira do Velhas muitas casas caíram, foram encobertas, ainda hoje os quintais estão tomados de lama. Esse pessoal saiu todo de casa, gente fugindo pro terceiro andar e a água subindo. Hoje estão abrigados em escolas ou casas de parentes. Tem gente que ainda não conseguiu voltar e nem vai, porque acabou tudo”, desfia o ativista Glauco o rosário de penas que desceu o rio.

De acordo com a prefeitura, prosseguem os trabalhos de limpeza com caminhões-pipa, basculantes, retroescavadeiras, pás carregadeiras e escavadeiras de esteira. O cômputo oficial chega a nove mil pessoas afetadas diretamente em duas mil moradias. “Estamos ainda levantando os prejuízos, mas estimamos que, para questões habitacionais, o valor ultrapasse os oito milhões de reais, mais cerca de um milhão em instalações públicas e acima de 3 milhões de reais em obras de infraestrutura”, assegura a Assessoria de Imprensa da Prefeitura.

Robson de Oliveira Barbosa, fotógrafo e morador de Raposos, descreve uma visita que tinha acabado de fazer, na tarde de 31/1, a uma residência, “invadida pela água até agora, foi na metade da parede, perderam tudo, estão só com a roupa do corpo”.

Luís Bicalho, o Seu Lulu, aposentado e morador do bairro Morro das Bicas, perto do encontro do Velhas e do Ribeirão da Prata, garante que a água só não entrou em sua casa “porque ela é muito alta”. A filha, que mora em frente à Estação Ferroviária, perdeu móveis, geladeira, fogão. Teve que juntar umas 20 pessoas pra ajudar a limpar”. Seu Lulu, que lamenta que “muitos vizinhos não voltarão mais pra casa”, também destaca a “lama esquisita”: “é uma lama escura, brilhante. Separa com a pá uns três minutos, ela já agarra, dá liga, é minério puro”. Para ele, as “prefeituras devem se unir e ver essa questão das mineradoras, que se aproveitam quando dá enchente e soltam os rejeitos alegando risco”.


Altura da água assustou moradores, e voluntários ajudam na limpeza de casas e estabelecimentos comerciais na cidade


Solidariedade

“Quando o bicho pega, quem ajuda é o povo”, registra Glauco Gonçalves Dias, da ONG Casa de Gentil, que organizou mutirões de limpeza e arrecadação de doações. “As pessoas ajudaram muito, veio gente de todo canto”.

O fotógrafo Robson Oliveira, na linha de frente da solidariedade, testemunhou a devastação na rua principal de Raposos, a Herval Silva, que tem cerca de 3 a 4 km às margens do Rio das Velhas: “ela foi toda atingida, o comércio em geral perdeu mercadoria, maquinário de oficinas, depósito de material de construção, armazéns, supermercado fechado até hoje”. Em opinião particular, como frisou, “a lama vem da região de Itabirito, Ouro Preto, Nova Lima, das minas no topo dos morros, a chuva lava as montanhas e sobrecarregou demais o rio”. Com a experiência de quem documentou o crime de Brumadinho, ocorrido há três anos, recorda: “parece muito a lama de lá, um barro avermelhado e pesado, pastoso e grudento”.

Robson fala do “ponto de apoio no Matadouro”, que recebeu “doações de muita gente, moradores dos condomínios de Nova Lima”, e constata, com certo alívio: “Conseguimos estabilizar a emergência, limpar as casas, distribuir as doações de higiene, água, comida”.

Marcos Neves, também fotógrafo e cinegrafista local, ficou ilhado do outro lado da cidade. Tinha ido cobrir um casamento em Ribeirão das Neves. Na volta, não havia “como cruzar o rio, dormimos na Van”. Ele concorda com a avaliação dos demais: “Não era uma lama que geralmente vem do rio, é uma coisa bem diferente, o lugar afetado só pelo Ribeirão da Prata foi muito mais fácil limpar, mas o que veio pelo Velhas é uma coisa densa e começou a brilhar quando bateu sol, tem uma cor bem diferente”. Ele se pergunta: “Será que ano que vem vamos passar pelo mesmo problema? Antes as enchentes levavam cinco, seis anos pra voltar. Agora foram só dois anos. E a questão dessa lama. Meu pai falou que isso é coisa de rejeito. Teve gente que perdeu a casa toda. A água chegou a subir nos telhados. Perderam tudo”.

Força-tarefa

Logo após o auge da cheia, já em 13 de janeiro foi constituída uma força-tarefa de coletores voluntários, inicialmente em Raposos, Nova Lima, Rio Acima, Itabirito e Ouro Preto, para recolher amostras de águas, sedimentos, solos e lama que atingiram o Quadrilátero Ferrífero e seu entorno.

Na outra ponta, uma rede de instituições e pesquisadores se pôs em movimento para coordenar a coleta e prosseguir com a investigação. O Grupo de Pesquisa em Educação, Mineração e Território, os laboratórios de Educação Ambiental e Pesquisas da UFOP e de Solos e Meio Ambiente da UFMG, o Movimento pelas Serras e Águas de Minas (MovSAM) e o Projeto Manuelzão se uniram e já tinham cadastradas, até a última segunda-feira, 55 amostras, sendo 16 de água e 39 de lama. Em breve, um informe com a distribuição geográfica e a situação de todos os pontos da amostragem será divulgado.

O passo atual, segundo Paulo Rodrigues, geólogo do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear (CDTN) e ativista do MovSAM, é “contactar organizações idôneas, independentes e tecnicamente capacitadas para analisar a lama da enchente, nosso foco principal neste momento”.

Glauco Gonçalves Dias afirma que a Polícia Civil esteve em Raposos para investigar e questiona: “Queremos saber se essa lama tem dona”. A prefeitura confirma: “Realmente estamos solicitando uma investigação da lama encontrada no município. Na última enchente a quantidade de lama foi bem menor. Já nesta última enchente, a lama atingiu de forma intensa ruas e moradias. Assim o município entende ser necessária uma análise mais criteriosa do ocorrido”.

Marcus Vinícius Polignano, secretário do CBH Rio das Velhas, avalia: “No que tange à mineração, é sempre uma preocupação no Alto Velhas, onde temos várias extrações de minério, várias empresas, e grande parte delas, além do problema das barragens, tem pilhas de rejeitos que deveriam ser contidas. Numa cava aberta, principalmente nas fortes declividades dessa região, a chuva sai lavando, cada chuva vai dar um processo de lixiviação, levando sedimentos. Por mais controle que teoricamente se tenha, isso não resolve”.

Ele ainda frisa que “todo mundo chamou atenção para essa lama. Não é a lama barrenta, mas de consistência, nem com enxada tira, é uma coisa mais densa. Isso leva a crer em rejeito de mineração, o minério depois de tratado, seco, faz esse processo de sedimentação, quase uma pavimentação”. E adverte; “Estamos fazendo análises para apurar a situação que, se confirmada, abre espaço para comprovar um dano coletivo a ser discutido e reparado pelas mineradoras”.


Veja mais fotos dos desdobramentos da cheia do Rio das Velhas em Raposos:

Fotos: Robson Oliveira


Natureza Sábia

O secretário do CBH salienta: “Desde que o mundo é mundo, o rio tem o tempo da seca e o tempo da cheia, e é muito bom que tenha. Para isso existe a planície de inundação. Antigamente, o povo era sábio. Fazia campo de várzea. No tempo da seca jogava bola, no tempo da chuva era um lago”.

Polignano considera que a “enchente cumpre papel fundamental para o rio. Quando vem com força e intensidade, ela vem lavar, limpar o leito da tranqueira que a gente colocou ali, sedimentos, lixo. É uma autolimpeza, até nisso a natureza é sábia”. E explica o drama que se repete de tempos em tempos: “O que foi acontecendo no processo de urbanização sem controle é que as planícies de inundação foram sendo ocupadas, as casas estão literalmente dentro da mancha de inundação. É uma briga que sempre vamos perder, não dá para revogar as forças da natureza.”

Para enfrentar com ciência e método o problema, O CBH Rio das Velhas vai financiar, com recursos próprios, um plano de contingência para as cheias, de curto, médio e longo prazos. O projeto será licitado “em caráter emergencial, da forma mais rápida possível, para que no próximo ano já tenhamos o mapeamento e orientações, medidas que possam nortear esse plano. Vamos discutir tudo com prefeituras e estado, construindo juntos esse processo”, diz Polignano.

“Vamos mapear as manchas de inundação em cada município e entregar para o poder público pensar políticas urbanas e habitacionais para realocar essas populações, pois quem paga o preço são os mais pobres, que vivem nessas áreas de maior risco, sujeitas a todas essas perdas”, aponta o secretário do CBH Velhas, que faz um apelo: “Os planos diretores precisam ordenar as cidades baseados nessas manchas de inundação, que poderão ser parques, campos, mas jamais áreas de habitação”. E ressalta a importância do monitoramento, “para saber o nível de alerta, preparar as pessoas e fazer gestão de risco, não gestão de crise. A inundação normalmente não se dá da noite pro dia, há tempo para que as pessoas se preparem, removam seus bens, sejam disponibilizados abrigos”.


Confira o vídeo, produzido pelo fotógrafo Marcos Neves, sobre os desdobramentos da cheia na região de Raposos:

Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala
Fotos: Robson Oliveira; Marcos Neves
Vídeo: Marcos Neves – Marcos Produções