Processo de concessão de Unidades de Conservação avança e gera polêmica

16/01/2023 - 10:25

20 Unidades de Conservação (UCs) integram a lista do Programa de Concessão de Parques Estaduais (PARC) do Governo do Estado de Minas Gerais. Dessas, cinco estão situadas na bacia do Rio das Velhas: o Parque do Sumidouro e os Monumentos Naturais Peter Lund e Gruta Rei do Mato (os três integrantes da chamada Rota das Grutas), já concedidos em 2021, o Parque Estadual da Serra do Rola-Moça, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), e a Floresta do Uaimií, no distrito ouro-pretano de São Bartolomeu, ambas em processo de concessão.


Sob gestão federal, o Parque Nacional da Serra do Cipó foi incluído em fevereiro do ano passado no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), que tem a mesma finalidade de transferir à iniciativa privada a exploração econômica de atividades de ecoturismo e visitação.

O governo de Minas esclarece que o objetivo do PARC é promover o desenvolvimento regional por meio do turismo, já que a fiscalização das UCs continuará sob responsabilidade do Estado.


Serra do Cipó também foi incluída, pelo poder federal, em programa de investimento privado


Novas concessões

Fora da área do Rio das Velhas, outras dois destacados santuários naturais, os Parques Estaduais do Itacolomi, em Ouro Preto e Mariana, na bacia do Rio Doce, e Ibitipoca, em Lima Duarte e Santa Rita do Ibitipoca, na bacia dos Rios Preto e Paraibuna, acabam de ser leiloados na Bolsa de Valores de São Paulo, arrematados pela empresa Parques Fundo de Investimento em Participações em Infraestrutura, única empresa julgada apta a apresentar seu lance, uma outorga fixa de R$ 3,5 milhões a ser paga ao Estado por 30 anos de concessão.

De acordo com professor Altair Pivoto, da Universidade Federal de Juiz de Fora, turismólogo, doutor em Geografia e membro do Observatório de Parcerias em Áreas Protegidas, “as condicionantes para participar do leilão do Parque de Ibitipoca [a unidade de conservação estadual campeã de visitação, com 84.381 visitantes em 2019, segundo o Observatório de Turismo de Minas Gerais], como a experiência anterior de atendimento a pelo menos 25% do público, capacidade financeira para aportes vultosos, construção de espaços instagramáveis, novas instalações e equipamentos de lazer reduziram o número de possíveis candidatos”.

Ele se pergunta: “O que eu quero? Um visitante pontual ou um local que modifique a relação homem-natureza? A proposta reforça a natureza enquanto mercadoria, um parque com muitos atrativos acessórios. Só a natureza não basta?”.



Sua colega Felisa Anaya, doutora em Sociologia e professora da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), avalia que “essa política é complexa e temerária, pois o foco é o turismo, não a preservação”.

Elitização

Outro aspecto polêmico, comenta Anaya, é que “as empresas terão liberdade tarifária, elitizando o acesso, que passa a ser do público que pode pagar mais caro, e excluindo a população local”.

Pivoto concorda: “O espaço público deveria continuar a ser gerido pelo Estado. Faltam estratégias para promover e ampliar o acesso, por exemplo para pessoas do Bolsa Família”. E cita um exemplo: “Nos cânions de Cambará do Sul [no Rio Grande do Sul, administrados pela Urbia Parques], o ingresso custa R$ 94 por pessoa. Donos de pousadas, restaurantes e pessoas ligadas ao segmento de turismo reclamam de redução drástica na quantidade de turistas na cidade”.

Esse “modelo cada vez mais elitista no ecoturismo brasileiro fragiliza as oportunidades de desenvolvimento local, com menos gente visitando e, portanto, menos recursos girando nas comunidades no entorno”, diz.

Em Ouro Preto, o secretário municipal de Meio Ambiente, Chiquinho de Assis, expressa preocupação: “O Parque do Itacolomi é a caixa d’água de abastecimento da Estação de Tratamento de Água (ETA) do Itacolomi e da ETA da Serrinha, que abastecem consideravelmente as comunidades de Ouro Preto e Mariana”. Para ele, os parques naturais “devem ser destinados para uso da sua população, para pertencimento”, como a Cachoeira das Andorinhas, nascente do Rio das Velhas, sob gestão municipal e de livre acesso a moradores e turistas.


A Gruta Rei do Mato, a Serra do Rola-Moça e o Parque do Sumidouro, todas localizadas na bacia do Rio das Velhas, estão na lista do PARC


Comunidades

Pivoto aponta que “a temática das parcerias não é nova”. Autorizações, Termos de Fomento ou de Colaboração, Parcerias Público-Privadas ou com fundações existem há tempos, como no caso do Parque da Bocaina (entre Rio e São Paulo), “cujo serviço de acesso pelo litoral é prestado por associação de barqueiros e pescadores da região”.

Segundo ele, o modelo de concessão, “típico de rodovias e aeroportos”, veio “de cima para baixo em Minas. Não houve construção nem debates sobre alternativas”, reclama. E completa: “As comunidades são desconsideradas. Só foi possível criar as UCs porque eram áreas preservadas pelo manejo sustentável dos moradores do entorno. Por que não pensar em parcerias público-comunitárias?”.

Anaya critica “a falta de informação” e “a invisibilização dos povos tradicionais” que habitam as UCs e seu entorno: “o IEF [Instituto Estadual de Florestas] já tem uma trajetória de gestão permeada por diversos conflitos com as comunidades locais. Muitas UCs foram sobrepostas a comunidades tradicionais ou estão em área contígua a essas comunidades, e os parques são criados à revelia delas”.

A professora da Unimontes, que compõe o Comitê de Povos Tradicionais e Meio Ambiente da Associação Brasileira de Antropologia, evoca o caso do Parque Nacional da Serra do Cipó, onde “mais de 100 famílias foram expulsas na criação da unidade, e veio junto um turismo desordenado, com falta de respeito e uma multidão nos finais de semana”.

“A natureza é vista como ativo econômico. Estudos sobre população local e conflitos não existem. A Convenção 169 [que trata de processos envolvendo povos tradicionais] da OIT (Organização Internacional do Trabalho) é completamente desconsiderada”, emenda.



Pinga-fogo

O Governo do Estado argumenta que lhe faltam expertise e recursos para a gestão do turismo nas UCs. Para Pivoto, isso é “uma contradição, porque historicamente é o setor púbico que vem construindo políticas de uso público, por meio de seus analistas ambientais do IEF, do ICMBio, junto com universidades, com a sociedade civil e ambientalistas. São extremamente capacitados nisso”, sustenta.

Outra debilidade nesse processo pode ser a “falta de experiência no trabalho com concessões”, observa Anaya. Pivoto complementa: “O órgão ambiental passou a ter muito trabalho para monitorar os contratos de concessão”, em possível detrimento das funções de conservação. “Temos notícias de que novos funcionários públicos do setor ambiental têm sido direcionados para esse acompanhamento”.

Jussara Rocha, consultora de projetos turísticos e governança em rede com mais de 20 anos de experiência no setor, vê de outro ângulo: “A demanda é crescente pelo turismo em UCs no mundo todo, há mais de 15 anos. O turista acredita que ali terá mais segurança, informação, opções”. E compara: “Nas UCs há deficiências estruturais para cuidar da conservação, imagina para o processo de gestão turística”.

Quanto ao risco de exclusão dos habitantes vizinhos, diz: “Depende de como a concessão é feita, se a empresa enxerga e escuta as comunidades, inclusive na contratação dos serviços, quando a prioridade tem que ser as populações do entorno”.


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Paulo Barcala
*Fotos: Bianca Aun; Leonardo Ramos; Arquivo pessoal – Felisa Anya e Altair Pivoto; Arquivo IEF