Algo como 21 km separam o distrito de Fechados, em Santana de Pirapama, às margens do Rio das Velhas, da localidade de Cemitério do Peixe, pertencente a Conceição do Mato Dentro, na bacia do Rio Doce. É nessa fatia de chão, no alto da serra que divide as águas desses dois rios vitais e sofridos, que uma força-tarefa de muitos atores está trabalhando sem cessar.
A dedicação integra um projeto imenso: a consolidação da Trilha Transespinhaço (TESP), com cerca de 1 mil quilômetros somente em terras mineiras. Dois Subcomitês ligados ao Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), do Rio Cipó e Rio Paraúna, participam ativamente das atividades de afirmação desse trecho – parte dos 180 km a cargo de um dos Grupos de Trabalho da TESP, o GT 2, que cuida do percurso que vai da Serra dos Alves (Itabira) até a localidade de Cemitério do Peixe.
Trata-se de um laborioso passo a passo, arte na qual são virtuoses os caminhantes. Além dos Subcomitês, o trabalho “envolve municípios, órgãos de governo, entidades da sociedade civil, comunidades e proprietários de terras”, explica Marcos Santos, gerente do Parque Estadual Serra do Intendente, que prossegue: “Estamos na etapa de prospecção e já avançamos bastante na articulação, com a adesão das prefeituras, e na definição do traçado, sempre em consonância com os demais trechos”.
Dando forma
O percurso Fechados/Cemitério do Peixe, cuja incorporação oficial à TESP ainda será apreciada pela coordenação geral da Trilha, teve um marco importante nos dias últimos 11 e 12, quando aconteceu reunião de alinhamento, seguida de visita de campo e caminhada por todo o itinerário.
Em pauta, afora os debates pelo reconhecimento, duas outras iniciativas de peso: o processo de tombamento do traçado pelo município de Santana de Pirapama e a solicitação de apoio, pelos dois Subcomitês, ao CBH Rio das Velhas, a ser formalizado nas próximas reuniões desses coletivos, ao cadastramento e à elaboração de Planos de Manejo de duas Áreas de Proteção Ambiental (APA) Municipal, ambas com o mesmo nome de Serra Talhada, em Santana do Pirapama e Congonhas do Norte.
Marcos comemorou o encontro: “Foi superimportante para aparar arestas e dar encaminhamentos, chancelar o traçado e progredir na articulação para o tombamento, do qual o trabalho de campo tem nosso apoio, e fazer a proposta para o CBH Velhas para o cadastramento das duas APAs junto ao IEF, com vistas ao ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] Ecológico, e seus Planos de Manejo, pois essas duas coisas dão existência concreta às APAs”.
Tombamento
Santana de Pirapama, para concretizar sua inscrição no ICMS Cultural, começou “um plano de inventário participativo, mais todo o trabalho documental, criação do Fundo do Patrimônio e ações de educação patrimonial”, conta Valéria Matos, gestora cultural e consultora da Secretaria Municipal de Cultura.
“Estamos fazendo os primeiros inventários, de conhecimento das celebrações, que, muito mais do que festa, é também o local, as comidas típicas, os ritos, a riqueza imaterial e material”, explica e garante: “É diretriz da Secretaria tombar o trecho”, mas o processo “demora dois a três anos”.
“Hoje todo mundo está sedento para conhecer história e cultura”, diz Valéria, que vê nessa sede o poder de “atrair um turista mais consciente e que dá retorno de renda às comunidades”.
Confira algumas fotos da região e da travessia realizada este mês:
TBC
Marcos Santos vai na mesma toada: “a consolidação do trecho pode contribuir para a preservação e para a geração de renda sustentável, segundo os conceitos do Turismo de Base Comunitária [TBC], com serviços diretos aos caminhantes, como alimentação, hospedagem condução e apoio geral, e retorno indireto para as cidades não só em arrecadação, mas também ao melhorar a percepção de seus habitantes do território onde vivem”.
Sobre a tarefa de angariar adeptos à rede de apoio, diz: “É um objetivo, mas, até para não criar expectativa, fica para a segunda etapa, quando pretendemos trabalhar com capacitação e fomento”.
José Geraldo Silvério, o Zezinho, verdadeira “biblioteca humana”, como diz seu sobrinho Pedro Silvério, advogado, analista ambiental e membro da equipe de Mobilização do CBH Rio das Velhas, confirma: “O ponto de vista da TESP é o TBC. O cerne desse esforço é justamente preservar a história e o meio ambiente e abrir perspectivas para as comunidades tradicionais, combatendo a migração e o inchaço das grandes cidades”.
Zezinho, produtor rural que vive às margens do Rio Cipó, no distrito do Fechados, acredita no potencial: “Hoje vemos o movimento de mais pessoas para formar pontos de apoio, adequando a infraestrutura e se alinhando à Trilha, inclusive em Cemitério do Peixe, que já tem mais três moradores” [até há pouco tempo, o lugar era habitado permanentemente apenas por Dona Lotinha].
Essa expansão é essencial para retirar o produtor rural Valter Miranda Saraiva, o Valtinho, da solidão de único prestador de serviços ao caminhante nesse trecho. “Se entrar mais gente vai ser bom demais. O movimento tá só aumentando. Vai ficando puxado”, diz quem começou nessa lida lá em 2006. “Temos outras rendas, mas sempre é preciso completar”. A Casa do Valtinho, a coisa de cinco quilômetros de Fechados montanha acima, oferece quartos e “almoço, janta, café da manhã, tudo com coisas que a gente produz aqui mesmo: café, feijão, hortaliças, carne de porco, de boi”.
Espetáculos, assim no plural
Silvério, que nasceu em Santana de Pirapama e foi Secretário Municipal de Desenvolvimento Rural e Meio Ambiente até outubro passado, perde a conta dos encantos do trajeto: “Tem a Lapa do Índio, com pinturas rupestres, as cachoeiras do Horizonte e do Fulô, a Caverna da Mangabeira e outras, vistas deslumbrantes”. E muita história, ensina: “É uma trilha feita no braço, ligando as cidades serranas de Ouro Preto, Diamantina e Serro, rota de contrabando de ouro, caminho de tropeiros, e até hoje usada por alunos, pelas comunidades para buscar remédios, levar e trazer produtos”.
Ninguém melhor que Zezinho para atestar. Coordenador do grupo de caminhada “Marcha Lenta”, com o inspirado lema de “não agitar o sangue”, percorre o trecho há mais de 50 anos, com “sentimento cultural e quase fraternal com a trilha”.
“Além de servir o comércio da época”, destaca as “caravanas religiosas para a celebração de São Miguel e Almas, em Cemitério do Peixe, de Santana, em Congonhas do Norte, e do Jubileu do Bom Jesus, em Conceição do Mato Dentro”, tradições que recuam séculos no tempo.
Ao lado de admirar e usufruir, perfila-se a preservação ambiental e dos recursos hídricos. Os cerca de 180 km sob responsabilidade do GT 2 da TESP ostentam uma gama de Unidades de Conservação (UCs), como o Parque Natural Municipal do Rio do Tanque, o Parque Nacional da Serra do Cipó, a APA Federal Morro da Pedreira, o Parque Natural Municipal do Tabuleiro, o Parque Estadual da Serra do Intendente e as APAs Serra Talhada de Congonhas do Norte e de Santana do Pirapama. “Todo o trecho do GT 2 será dentro de Unidades de Conservação e do Mosaico de Áreas Protegidas da Serra do Cipó, caixa d´água do Velhas e do Doce”, ressalta Marcos Santos.
Para ele, as Trilha e as UCs “se complementam, porque tudo isso envolve a mobilização para a conservação. À medida que as pessoas conhecem e utilizam, elas cuidam”.
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Paulo Barcala
*Fotos: Gustavo Abah