Revista Velhas nº 14: Zezinho é um homem que cuida de rio e de gente

22/12/2021 - 17:47

Ribeirinho faz da poesia, da prosa boa e do ambientalismo seus instrumentos para proteger as belezas da Serra do Cipó


Ele diz que aprendeu a pescar ainda na barriga da Ana, sua mãe. Foi com ela que descobriu a poesia e fez rima com a água, as flores, as árvores, as cachoeiras e os animais. Menino nascido e criado nas barrancas do Rio Cipó, em Minas Gerais, José Geraldo Silvério, o Zezinho, desde pequeno não saía de dentro da água. Sua infância foi igual a de toda criança ribeirinha que vive feito bicho solto e transforma o rio em piscina e a mata no quintal de casa.

Pescar, ele também pescava. Aprendeu com Pedro, seu pai. Já para aprender a nadar, Zezinho seguiu o costume da região e mandou ver nas “piabinhas” vivas goela abaixo. Dizem que quem come o tal peixe vivo aprende a nadar igual ele. “Isso é perigoso porque as piabinhas têm dente, né?”, conta rindo do tempo de criança.

Companheiro de pescaria do pai, Zezinho via seu velho protegendo com bravura o pedaço da terra da família às margens do Rio Cipó. Pedro protegia a barranca do rio como se fosse a sua cria e peitava pescador armado que praticava pesca predatória. “Meu pai morreu em 1999, antes da proibição da pesca predatória no Rio Cipó. Na época de criança eu via que, mesmo com a humilhação que o meu pai passava, ele nunca desprotegeu a barranca dos pescadores. Com ele fui criando coragem e interesse pela defesa do rio também”. Para quem não sabe, a pesca predatória no Rio Cipó foi proibida em 2004 e atualmente só é permitido pescar para subsistência.

A vontade de defender o rio apareceu primeiro na forma de verso. Para falar o que sentia sem arrumar inimigo, a mãe do Zezinho, professora rural por 25 anos, aconselhou o menino a usar a poesia para denunciar os problemas. “Minha mãe não ensinava a técnica, mas a essência das palavras para a gente conseguir alcançar a consciência das pessoas. Com uns 10 anos eu fui me destacando e venci um concurso da sala sobre a bandeira nacional.”

Fechados, distrito de Santana de Pirapama

A poesia do ribeirinho foi além da sala de aula. No meio dos anos 1980, incentivado pelas professoras da escola, participou do concurso “A nova poesia brasileira” da editora Shogun Arte, do escritor Paulo Coelho. Dos três poemas inscritos por Zezinho, dois foram publicados no livro da editora. Anos mais tarde, ele teve notícia de que seus versos foram parar também em uma prova de vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e se encheu de orgulho.

A inspiração do Zezinho é a Serra do Cipó, quintal da sua casa que foi chamado de “Jardim do Brasil” pelo paisagista Roberto Burle Marx. Quem não conhece já pode imaginar o tamanho da beleza da região. “Para mim toda essa bacia é como um santuário ecológico. Com a poesia, eu procuro detalhar as belezas e as fragilidades do Cipó, já que aqui hoje é um lugar muito cobiçado por várias frentes de exploração de recurso”.

Mas por um tempo esse olhar de proteção do Cipó estava adormecido na “cegueira ambiental” que ele vivia, como Zezinho mesmo diz. Antes de entender o seu papel de protetor do meio ambiente, ele passou anos trabalhando como carvoeiro. Incomodado com aquela situação, no início dos anos 1980 escreveu o projeto “Cipó sem fumaça”, para que as pessoas largassem o carvão de lado. O projeto sugeria que o carvoeiro recebesse uma ajuda financeira até conseguir migrar de profissão. “Eu caminhei com esse projeto e fui em alguns gabinetes de políticos. Cheguei a ir até a Assembleia Legislativa de Minas Gerais tentando arrumar algum padrinho. Nessa época eu comecei a contabilizar alguns inimigos, mas a minha ideia também foi entrando no ouvido de um e de outro”.

Esse sonho de ver o Cipó protegido foi de encontro com a passagem da “Expedição pelo Velhas de 2009: encontros de um povo com sua bacia” por Santana do Pirapama. “Naquela época eu enxergava o rio só pelo peixe e não pela água e muita gente que participou do encontro não sabia que morava em uma bacia. Depois disso, a gente vai criando consciência de que a defesa do rio não se dá só pela propriedade, mas essencialmente pela quantidade e qualidade da água que é o nosso bem mais precioso. Isso significa que não basta só vigiar a barranca, mas é preciso também vigiar as nascentes.”

Na expedição, ele foi convidado pelo CBH Rio das Velhas e pelo Projeto Manuelzão a descer o rio até Barra do Guaicuí, representando o município. Para Zezinho foi a melhor viagem que ele fez na vida, pois teve a oportunidade de testemunhar o abraço de dois gigantes: o Rio das Velhas e o Velho Chico. “Naquela hora eu pensei: por que é que o ser humano, em pleno século 21, ainda mexe um cisco para destruir uma beleza dessa e não preserva os mananciais?”.

A descida do rio foi só o primeiro capítulo que Zezinho escreveu ao lado do Comitê ao longo desses 12 anos. Depois do encontro com a expedição, a vontade do ribeirinho em defender o rio ganhou mais conhecimento e se fortaleceu na organização social.

Em 2012 ele foi chamado para ajudar a criar o Subcomitê Rio Cipó. Ajudou a mobilizar a prefeitura, as pessoas e foi responsável por trazer para o Subcomitê aquela que chegou como estagiária, representando a prefeitura de Santana de Pirapama, e hoje ocupa o cargo de presidenta do CBH Rio das Velhas: Poliana Valgas.

De lá para cá, algumas alegrias e lutas foram sendo vivenciadas, como a aprovação do primeiro Projeto Hidroambiental. As reuniões, oficinas e os seminários são encontros que o produtor rural e poeta do Cipó sente alegria em participar. Mas tem um momento para ele que é o mais especial: o Encontro dos Subcomitês. “Eu vivo assim meio amedrontado, porque eu recebo ameaças. Quando eu redigi o projeto contra o carvão nos anos 1980, eu ganhei alguns inimigos, mas eu não intimidei. Mas quando a gente realiza um encontro dos Subcomitês é como se fosse um antídoto, um remédio, uma injeção de ânimo. A gente vê que tem região que tem companheiros com a situação muito mais difícil”.

Integrante do Amigo do Rio, programa de monitoramento ambiental participativo do Projeto Manuelzão que conta com o apoio dos ribeirinhos, Zezinho ajuda a fazer coleta da água do Rio Cipó. Para ele, ser amigo do rio é como ser um mensageiro. “A gente ajuda a analisar a mortandade de peixes e a turbidez da água. Dá uma tristeza danada quando o espelho d’água vai virando aquele tapete verde. Aí é só questão de dias ou horas para o peixe se deitar por cima do rio”. Esse tapete verde que ele diz é a eutrofização, resultado de um processo de poluição das águas que reduz o oxigênio, aumenta o número de cianobactérias e impacta a vida aquática.

No caminho dos tropeiros em Fechados, distrito de Santana de Pirapama, transporte do capim-andrequicé ainda se dá como há séculos passados.

Amigo de gente, Zezinho é um voluntário pela saúde das pessoas doentes, principalmente as acamadas que a família não consegue mais cuidar.

Produtor rural, no seu pedaço de terra ele planta cana e feijão, que é o que consegue dar um sustento para a família.

Mas seu sonho mesmo é ainda se firmar na literatura, apesar de achar que vai demorar um tempo. “Acho que vou ter que esperar o próximo século. Eu até que tenho certo conhecimento, mas a escolaridade que precisa, não”.

Zezinho se considera um semianalfabeto e se coloca como um estudante vitalício, pois nunca conseguiu concluir os estudos. Ele talvez não saiba, mas o conteúdo que ele busca para se firmar na literatura já está dentro dele, que é esse olhar sensível para a natureza que ele carrega desde criança.

Consciência para cuidar da natureza ele tem de sobra e sabe que tudo o que for feito em defesa do seu território ainda é pouco. “Para mim, a região do Cipó é um patrimônio da humanidade. A nossa responsabilidade sobre essa dádiva de Deus é muito grande e vai aumentando a cada dia, ao passo que vai degradando. Tem gente que não consegue enxergar a natureza como uma mãe. Que só enxerga a terra como um campo de extração do recurso natural. Eu diria ao povo do Cipó que tudo o que a gente fizer em defesa da preservação daquele vale ainda é pouco”, conclui esse ribeirinho amigo do rio, cuidador do meio ambiente e de quem vive perto dele.

Zezinho se tornou símbolo da preservação da Serra do Cipó, região que mais contribui em qualidade ambiental para o Rio das Velhas.



 

Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Michelle Parron
Fotos: Fernando Piancastelli