Terminal de minério pode afetar patrimônio histórico e natural de distrito setecentista

15/06/2022 - 14:55

Uma batalha que vem de 2018. Um terminal ferroviário de minério capaz de embarcar milhões de toneladas/ano, conectado à malha da Ferrovia MRS, a antiga Ferrovia do Aço do regime militar. Algo como 450 carretas de 30 toneladas 24 horas por dia transitando em estradas vicinais. No meio do furacão, 600 habitantes de um distrito do século XVIII, rico em patrimônio histórico, cercado por cachoeiras, nascentes, ribeirões, fauna e flora variadas e típicas da transição entre Cerrado e Mata Atlântica.


Há quatro anos, a Bação Logística S/A (BL) – fundada como sociedade anônima de capital fechado em 2014 – tenta implantar o terminal. Há quatro anos, a Associação Comunitária de São Gonçalo do Bação luta para evitar.

Elias de Rezende, morador da localidade desde 2003, membro da Associação Comunitária e produtor de cachaça, explica: “as primeiras intervenções promovidas pela empresa já causaram o assoreamento de nascente, além do despejo de lama diretamente no ribeirão Carioca e nas cachoeiras”.

A comunidade teme outros efeitos previsíveis, diz Rezende, como “o elevado consumo de água para mitigar a poeira”, estimado pela Associação em até 380 mil litros/dia – volume que abasteceria uma cidade com mais de três mil pessoas –, e ainda os riscos de “aumento e agravamento de doenças respiratórias causadas pela poeira, acidentes (face ao trânsito intenso de carretas), perda acentuada da qualidade de vida, evasão de visitantes e turistas, redução das atividades de bares, pousadas, restaurantes, mercado de suprimento e construção e perda de empregos”.

A BL promete “geração de 100 empregos diretos e dezenas de indiretos e de uma arrecadação de ISS da ordem de R$ 2 milhões” anuais. Além disso, anuncia “constante investimento na melhoria da qualidade de vida da população do entorno, que é bastante carente”, entre os quais, aportes “em resgate e preservação de bens históricos e culturais, capacitação profissional e fomento da economia local”.

A empresa, que calcula movimentação de 3,6 milhões de toneladas de minério por ano, afirma que só utilizará água para consumo humano e aspersão das vias internas, fornecida na totalidade pelo SAE municipal, “não havendo nenhuma forma de captação ou intervenção direta em cursos d’água”, e que “o projeto contempla sistema de drenagem com capacidade muito superior à necessária, impedindo, de maneira altamente segura, qualquer carreamento de material particulado para o exterior do empreendimento”.

Linha do tempo

As obras do terminal foram iniciadas em junho de 2018, mas os embates com a comunidade e a entrada em cena do Ministério Público (MP) levaram à paralisação das obras breves dois meses mais tarde.

Em setembro, vistoria da área ambiental do estado, requerida pela Promotoria de Justiça de Itabirito, constatou operação sem o licenciamento adequado, captação de água em níveis superiores ao permitido nas Certidão de Uso Insignificante em posse da empresa e supressão vegetal de espécimes do Bioma Mata Atlântica sem autorização.

Em março do ano seguinte, o MP instaura Inquérito Civil Público para apurar a regularidade ambiental do empreendimento. Instada pelo MP, a Superintendência Regional de Meio Ambiente Central Metropolitana (SUPRAM-CM) convoca a empresa a formalizar requerimento do licenciamento. Em maio, a BL entra com processo de Licenciamento Ambiental Concomitante (LAC 2), na modalidade Licença de Instalação Corretiva simultânea à Licença de Operação (LIC + LO) – pequeno porte e grande potencial poluidor/degradador.

Em julho, firma Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a SUPRAM-CM para adequação à legislação ambiental. O documento foi duramente questionado pela Associação Comunitária do Bação, dentre vários motivos, por permitir que prosseguissem as obras de instalação antes mesmo de deferido o licenciamento, que até hoje se encontra sob análise.

Ainda em julho de 2019, o município concede Declaração de Conformidade ao terminal, fruto de anuência do Conselho Municipal de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente de Itabirito (CODEMA), que se tornou alvo de mandado de segurança impetrado pela Associação.

No mesmo mês, os promotores Marianna da Silva e Francisco Generoso requisitam a instauração de inquérito policial para “investigar eventual prática de crimes ambientais”, dentre outras providências.

Já em 2020, o MP expede o ofício 753 recomendando à SUPRAM-CM que “se abstenha de pautar, conceder e/ou emitir qualquer licença ambiental” sem “a devida apresentação” pela BL de Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA). O processo de licenciamento, porém, encontra-se em análise, contra a recomendação do MP. Quanto ao EIA/RIMA, a BL solicitou ao órgão ambiental estadual dispensa de apresentação, pedido que também se encontra sob exame da SUPRAM-CM. A BL sustenta que “o porte do empreendimento, bem como o seu baixo potencial de intervenções determinam como estudos pertinentes o RCA (Relatório de Controle Ambiental) e o PCA (Plano de Controle Ambiental), já elaborados”.

A opinião do MP é taxativa: “para além da efetivação do licenciamento ambiental, a Constituição Federal e a lei determinam, em casos como o presente, a apresentação de Estudo de Impacto Ambiental”.


Obras do terminal foram iniciadas no ano de 2018


Placar invertido

O caso foi parar numa audiência pública convocada pelo Conselho Consultivo e Deliberativo do Patrimônio Cultural e Natural de Itabirito (CONPATRI), realizada em São Gonçalo do Bação em julho de 2021, quando foram ouvidos representantes da CERN – Consultoria e Empreendimentos de Recursos Naturais –, contratada pela BL, da própria Bação Logística S.A., da Associação dos Moradores, de outros líderes comunitários e cidadãos em geral.

Em agosto, chamado a se pronunciar, o CONPATRI negou, por 8 votos a 2, anuência à instalação do terminal, com a ampla maioria dos conselheiros seguindo o voto do relator, desembargador aposentado e itabiritense José Antônio Braga.

Em sua manifestação, Braga assinalou: “Não se deixa em plano secundário, em razão de interesses econômicos, a história, os costumes e os usos correntes de uma comunidade”. E acrescentou: “Emprego e renda, como também recolhimento de tributos para o Município, não se sobrepõem às regras mínimas para a manutenção de qualidade de vida de pessoas de comunidade que vivem no entorno do pretendido empreendimento”.

O relator vaticina: “A primeira vítima do lamaçal será a belíssima Cachoeira da Benvinda, sequenciada pela Cachoeira de Três Quedas e pela Cachoeira Cocho de Pedra, as quais não sobreviverão no mar de impurezas”. Para ele, “permitir a instalação, no local escolhido, representará uma agressão aos usos, costumes, valores e qualidade de vida de um povo simples, pacato e ordeiro, que cuida de seu patrimônio e mantém a paz social”.

Na reunião, a BL apresentou o Estudo Prévio de Impacto Cultural e o Relatório de Impacto no Patrimônio Cultural (EPIC/RIPC), e alguns de seus trechos mereceram grifos do relator, como o que atestava que “o trânsito de caminhões nas vias de acesso ao Terminal de Cargas Bação (…) será intenso, podendo promover significativa emissão atmosférica” e o que reconhecia que “a operação do empreendimento, movimentação de máquinas e vagões, bem como a disposição de produtos em pilhas, poderão gerar poeira, ruído e vibração, podendo provocar incômodos à população do entorno do empreendimento”.

Oito meses mais tarde, em recurso apresentado pela BL, o mesmo Conselho decidiu contra o relator e anuiu ao pedido da empresa. Sob esse âmbito, o assunto ainda será levado ao exame do IEPHA-MG (Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais). O também elástico placar de 7 x 3 conformou uma reviravolta que ainda hoje provoca estranheza em muitos moradores do Bação.

No entanto, o secretário de Meio Ambiente do município, Frederico Leite, vê o resultado do CONPATRI como fruto de uma “análise estritamente técnica”. “Meu entendimento”, prossegue, “é que o projeto sofreu inúmeras críticas, inclusive do município. Em setembro de 2019, quando virei secretário, foi o primeiro caso que peguei. O empreendimento tinha acabado de assinar TAC com a Semad que garantia o retorno das obras. O gabinete do prefeito criou um comitê para avaliar e vimos que precisava detalhar mais. Mandamos correspondência à Supram com várias solicitações e falando da necessidade de avaliar com mais cuidado os impactos hídricos, florestais e de tráfego”.

Leite garante que “não há estratégia de dar carta branca para as empresas” e avalia que o cenário hoje é outro: “Mudaram os proprietários da empresa. Os antigos não entraram pela porta da frente, não participavam das reuniões com a comunidade, não tinham sensibilidade. Um novo grupo assumiu com equipe técnica muito mais robusta e tomando a iniciativa de abrir o diálogo e a adequar os projetos aos anseios da comunidade” [na verdade, segundo informações da própria BL, “a empresa é uma sociedade anônima que tem acionistas comuns com empresas do Grupo Cedro. Esses acionistas, ligados ao Grupo Cedro, passaram, recentemente, a atuar ativamente na gestão e assumiram a representação da companhia perante o Município de Itabirito”].

De acordo com o secretário, a BL apresentou “soluções para a questão viária, com a promessa de priorizar acessos exclusivos para as carretas, terceiras faixas e alça viária. Não vai ter carreta parada na estrada. Considerando o impacto ambiental, garantem que não haverá circulação simultânea de mais de 200 carretas”.


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Atrás da orelha

Márcio Ziviani, atual vice-presidente da Associação Comunitária, é proprietário no Bação há 42 anos e morador permanente há cerca de quatro. Sobre a votação do CONPATRI, diz: “É uma dúvida que a gente tem. À boca miúda, falam de uma pressão muito grande sobre os conselheiros, porque não houve fato novo, era um recurso da decisão inicial. As promessas de mudança são isso, promessas, porque nada está escrito”.

Ziviani conta que está prevista reunião com a BL em breve: “Vamos ouvir o que eles têm a apresentar. Que bom que estão com essa disposição, antes entraram tentando dividir a comunidade”. Só não se conforma com o carro adiante dos bois: “Se há perspectiva de que a coisa vá melhorar, por que já votaram a favor? Só pela perspectiva, antes de ter os compromissos assinados? Não seria melhor esperar que tudo estivesse acertado para então dar a anuência? Basear-se em probabilidade é conveniente a um agente público?”

Rodrigo Matta Machado, que tem propriedade nas proximidades do distrito desde 1975, destaca que se trata de “muito mais do que o turismo na região, importante também, mas muito mais que isso”. Professor aposentado da UFMG e especialista em Ecologia Humana e Agroecologia, Matta Machado chama atenção para o Ribeirão Carioca, sub-bacia onde se localiza o terminal, “importantíssimo para o Rio Itabirito cujo volume e qualidade de águas vai refletir até no Velhas e no abastecimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte”. Não foi à toa, salienta, que o “Subcomitê Itabirito escolheu, entre todas as sub-bacias da região, justamente essa como modelo de conservação e destino da primeira experiência de pagamento por serviços ambientais a agricultores familiares, e agora vamos sofrer todos os impactos”. Para ele, o caminho seria “transformar o entorno do Bação em Monumento Natural”, uma categoria de Unidade de Conservação Ambiental.

CBH Rio das Velhas

Reunião conjunta de dois dos Subcomitês do comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), o Rio Itabirito e o Nascentes, aprovou documento, ainda em 2021, solicitando ao Instituto Mineiro de Gestão das Águas que requeira à SUPRAM a recusa ao “licenciamento do terminal de minério naquele local”; à Secretaria de Meio Ambiente de Itabirito “o cancelamento do Termo de Conformidade” e ao Ministério Público que envide “esforços par evitar a instalação”. O manifesto foi acolhido pela diretoria do CBH, chancelado pela presidenta Poliana Valgas e encaminhado aos órgãos destinatários. O Comitê continua atento, acompanhando de perto os desdobramentos dessa história.



Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala
Fotos: Fernando Piancastelli