A (in)segurança hídrica na ordem do dia

25/05/2022 - 17:25

“Acesso sustentável à água de qualidade, em quantidade adequada à manutenção dos meios de vida, do bem-estar humano e do desenvolvimento socioeconômico”, garantindo “proteção contra a poluição hídrica e desastres relacionados à água” e preservando “os ecossistemas em um clima de paz e estabilidade política”. Assim a Organização das Nações Unidas (ONU) define segurança hídrica.


No entanto, fatores como o aumento populacional, a superurbanização e o crescimento econômico sem lastro ambiental, com ampliação crescente e contínua da demanda por água, somam-se à realidade das mudanças climáticas e seus eventos hidrológicos extremos.

Acrescente falta de planejamento, de ações institucionais coordenadas e de investimentos em infraestrutura hídrica e saneamento: eis a receita infalível para o desastre hídrico, que não se cansa de enviar sinais mais do que contundentes à bacia hidrográfica do Rio das Velhas, ao Brasil e ao mundo.

Redução da superfície de água

A rede colaborativa Mapbiomas, composta por ONGs, universidades e startups de tecnologia para produzir mapeamento anual da cobertura e uso da terra e monitorar a superfície de água e cicatrizes de fogo desde 1985, mostra que o Brasil perdeu mais de 3 milhões de hectares (ha) de superfície de água entre 1991 e 2020, 15,7% do total, afetando 54 das 76 sub-bacias hidrográficas e 70% dos municípios.

Lá de cima, os dois satélites do Projeto Grace, parceria da NASA (sigla em inglês da Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço, dos Estados Unidos) com sua equivalente alemã DLR, flagraram, em cerca de 15 anos orbitando o planeta, a redução da quantidade de água disponível nas latitudes médias, principalmente entre os trópicos.

Segundo o engenheiro Euler de Carvalho Cruz, integrante do Fórum Permanente do Rio São Francisco e do Gabinete de Crise – Sociedade Civil, que apresentou esses estudos em vídeo de março deste ano, “mais da metade dos principais aquíferos do mundo já passaram do ponto de inflexão de sustentabilidade, com taxas de retirada das águas subterrâneas muito acima das taxas de reabastecimento”.

Cruz assinala que os “padrões do úmido ficando mais úmido e do seco ficando mais seco estavam previstos pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), organização ligada à ONU, para ocorrerem até o final do século XXI, mas os estudos da Missão Grace mostram que estão acontecendo agora”.

O engenheiro ainda chama a atenção para o drama de 2 bilhões de pessoas, que já não tinham acesso à água potável em casa em 2019, situação que vai piorar, e muito, até 2025, quando mais da metade da população mundial viverá na escassez de água.

O diabo mora ao lado

Pelos dados da Grace, é possível saber que a região do “Quadrilátero Aquífero”, como Cruz prefere designar o chamado Quadrilátero Ferrífero, perdeu de seis a oito polegadas de altura de água em apenas 14 anos (de 15 a 20 cm, aproximadamente) e a tendência é seguir secando.

Nesse contexto, diz, “projetos como o 8 da SAM (Sul Americana de Metais, subsidiária da mineradora chinesa Honbridge Holdings) em Grão Mogol, norte de Minas, que prevê o transporte por mineroduto, são inviáveis”. “Como implantar isso numa região que perde água de forma tão clara e rápida?”, pergunta.

Cruz cita também explorações semelhantes, como das empresas Herculano e Onix, na região do Serro, e da Anglo-American, em Conceição do Mato Dentro, e constata: “a mineração, com o rebaixamento dos lençóis freáticos, e a monocultura do eucalipto, coincidem com as áreas que mais secam”.

Na vizinhança da capital mineira, a Serra do Gandarela é, segundo Cruz, “praticamente a última grande reserva de água bem preservada aqui da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Será que terão coragem de licenciar a mineração lá? Em nome de quê? Contra todas as provas que apresentamos? Se me perguntam ‘e a economia?’, respondo: se as pessoas morrerem de fome e de sede, e a sociedade for desestruturada por uma crônica falta de água, não haverá economia”.


Serra do Gandarela é uma das últimas reservas preservadas de água da RMBH, segundo especialista


Rio das Velhas

Em 2019, o Rio das Velhas, responsável por 70% do abastecimento de água de Belo Horizonte e por metade da água tratada da RMBH, enfrentou uma de suas piores crises hídricas. No período da estiagem, o rio, no ponto de captação da Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) no Sistema Bela Fama, em Nova Lima, atingiu a vazão de 8 m³/s, a menor da história, abaixo do recorde negativo anterior, em 2017, com 9,2 m³/s.

“O Rio das Velhas está sendo sacrificado desde que o Paraopeba, onde a Copasa fazia captação, foi devastado pelo rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho. Essa situação traz uma insegurança hídrica muito grande. Além de BH, Nova Lima, Raposos, Sabará, Santa Luzia e Sete Lagoas têm uma dependência crítica do Rio das Velhas”, frisou à época o secretário do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), Marcus Vinícius Polignano.


Estação de tratamento de Bela Fama enfrentou escassez hídrica


Para enfrentar o problema, o governo do estado anunciou, em fevereiro de 2021, a destinação de R$ 2,05 bilhões oriundos do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) Segurança Hídrica, firmado com o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e a Vale, para investimentos nos sistemas Paraopeba e Velhas. Os recursos financiarão uma série de intervenções, entre elas as novas captações a fio d’água no Ribeirão da Prata, na região denominada “Ponte de Arame do Rio das Velhas” e no Ribeirão Macaúbas, a ampliação do Sistema Rio Manso e a construção de nova adutora de transferência entre os Sistemas do Paraopeba e do Rio das Velhas.

Sete meses depois, em setembro, durante webinário promovido pelo CBH Rio das Velhas, a engenheira da Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais), Núbia Nolli, informou que o consumo médio da RMBH era de 15 m3/s ou 91% de toda a água captada – segundo noticiou a imprensa de BH por ocasião do Dia Mundial da Água. Não há de ser por outro motivo que Nolli reconheceu: “A gente convive com a possibilidade de declaração de conflito hídrico na bacia”.

De fato, em 2019, o CBH Rio das Velhas solicitou ao Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM) que declarasse três pontos da bacia como áreas de conflito pelo uso de recursos hídricos: o Alto Rio das Velhas, que produz a água que chega à RMBH, além das Unidades Territoriais Estratégicas (UTEs) Rio Bicudo e Ribeirão Picão, no Médio e Baixo Rio das Velhas.

O instrumento, utilizado em bacias onde se verifica que a disponibilidade hídrica é menor que a demanda dos usuários, determina a elaboração de um processo único de outorga que contemple a alocação negociada da água entre os outorgados.

A solicitação de declaração de conflito foi motivada por um estudo encomendado pelo Comitê que analisou os usos de recursos hídricos sobre as vazões disponíveis em toda a bacia. Por meio do levantamento de usuários de água e dos usos outorgados, o trabalho concluiu que a demanda concedida pelo estado excede a oferta de água do rio em mais de 500% na UTE Rio Bicudo, em quase 300% na UTE Ribeirão Picão e em 59% na região do Alto Rio das Velhas.

Ainda durante o webinário promovido pelo CBH Rio das Velhas, a Copasa admitiu o risco de rompimento de barragens e seu efeito desastroso sobre o sistema Rio das Velhas. Para fazer frente aos riscos de supressão completa dessa captação, a Copasa citou as cinco obras listadas acima como prioritárias, capazes de aportar um acréscimo de 34% na produção, no tratamento e no transporte de água.


Eventuais rompimentos de barragens podem prejudicar abastecimento hídrico na RMBH


Nossa reportagem procurou a Copasa para atualizar o andamento das obras oito meses após o seminário, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.

Segundo o hotsite do governo de Minas que reúne informações sobre o acordo judicial de reparação, assinado por instituições de justiça, estado e Vale S.A., duas intervenções estão em fase de projeto e três em fase de estudo de viabilidade.

Enquanto é tempo

Para o secretário Polignano, “a gente sente uma insegurança brutal. Estão no limite as captações do Paraopeba e do Velhas para a Região Metropolitana de BH, não há sistema de interligação eficiente. O recente rompimento da adutora da Copasa (na travessia do rio Paraopeba) deixou grande parte da população sem água, e os mais pobres sempre sofrem mais”.

Ele continua; “Além dos problemas que já enfrentávamos, de falta de foco dos governos e de recursos, a questão ganhou novos contornos com os crimes de Mariana e Brumadinho (respectivamente em 2015 e 2019), e com a completa ausência de articulação entre a pauta ambiental e a de recursos hídricos”.


Captação no Rio Paraopeba também encontra-se no limite de sua capacidade 


Poliana Valgas, presidenta do CBH Rio das Velhas, conclama os municípios a unirem esforços. “Ainda é muito tímida a participação dos municípios. Embora o CBH tenha vários projetos, ações e programas e tudo aconteça no território municipal, é preciso aproximar e trazer as prefeituras para a gestão com um olhar para a questão hídrica. Muitos planos diretores não conversam com o tema. Precisamos compatibilizar a questão hídrica com o uso e a ocupação do solo, áreas de recarga, margens de córrego”.

Enquanto as soluções patinam, os problemas pisam fundo no acelerador. O Sinclinal Moeda, sistema montanhoso com grandes reservas de água subterrânea que começa ao sul de Belo Horizonte, na divisa com Nova Lima, e segue até Congonhas, sofre as pressões da expansão sem efetivas medidas de proteção ambiental e hídrica. Condomínios de luxo, mineradoras, uma fábrica de refrigerantes e o projeto urbanístico CSul, que engloba 27 milhões de m² entre Nova Lima e Itabirito e que pretende atrair cerca de 145 mil moradores cercam as águas por todos os lados.

Polignano alerta: “Ficamos preocupados com o futuro, não só do Rio das Velhas, como de todas as bacias hidrográficas pela falta de políticas públicas para a revitalização e preservação”. E denuncia: “Ao contrário, o que vemos são processos de licenciamento cada vez mais abundantes e acelerados, destruição de matas ciliares e áreas de proteção de recarga. Precisamos de uma gestão mais eficiente e de políticas públicas preocupadas com indicadores ambientais, como a qualidade e quantidade de água. Por isso, o nosso foco é mobilizar a sociedade, as entidades da sociedade civil e o estado para garantirmos a condição hídrica e de vida do Rio das Velhas em Belo Horizonte e nas demais 50 cidades que recebem suas águas”.

Não cuidar dos nossos rios agora, lembra o engenheiro Euler Cruz, “é condenar a geração atual e todas as futuras a um grande sofrimento e, possivelmente, à morte. É imprescindível priorizar a vida”.


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Paulo Barcala
*Fotos: Bianca Aun; Leo Boi