Revista Velhas nº 19: Desbravando as terras de Rosa

16/07/2024 - 18:52

Território dos Ribeirões Tabocas e Onça guarda histórias que se tecem entre páginas literárias e a realidade deslumbrante desse pedaço único do Brasil


Em 1963, o cordisburguense João Guimarães Rosa – já consagrado como um dos maiores escritores brasileiros, que se tornava naquele mesmo ano membro da Academia Brasileira de Letras – fora convidado para participar, em Curvelo, dos festejos da Semana da Comunidade.

Quando nasceu, Cordisburgo era distrito de Paraopeba, mas Paraopeba pertencia à comarca de Curvelo. Assim, os curvelanos consideravam Guimarães Rosa como também curvelano e, os paraopebenses, como sendo de Paraopeba. Os cordisburguenses, por sua vez, não gostavam nada disso, pois Rosa nascera em Cordisburgo.

Como o escritor, adoentado, não poderia comparecer em Curvelo na Semana da Comunidade, prescreveu aos curvelanos uma mensagem que deveria ser lida pelo seu tio Vicente Guimarães – o que foi feito. Nesta mensagem, Guimarães Rosa proclamou Curvelo como “cidade capital da minha literatura”.

Vista aérea da Paróquia São Sebastião de Araçaí. Município é um dos que compõe a UTE Ribeirões Tabocas e Onça

Cordisburgo, Curvelo, Paraopeba, Ribeirão da Onça… O leitor mais habituado já deve ter notado que a região em questão é a Unidade Territorial Estratégica (UTE) Ribeirões Tabocas e Onça, uma das 23 porções que compõem a Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas – soma-se a esta os municípios de Araçaí e Jequitibá, e o Ribeirão Tabocas.

O território ocupa uma área de 1.223,26 km² e abriga o Monumento Natural Peter Lund, uma Unidade de Conservação com 73,14 hectares da área estabelecida. Com uma rica tapeçaria de paisagens entre a Serra do Espinhaço e o sertão mineiro, a região reserva não apenas belezas naturais, mas também uma forte conexão com a obra literária do escritor João Guimarães Rosa, que encontrou nas entranhas dessas terras sua inspiração.

Construída em 1883 em estilo colonial, Capela de São José foi o marco de criação da cidade de Cordisburgo.

 

Entre palavras, objetos e paisagens

A região, berço do ilustre escritor, torna-se protagonista, inspirando e dando vida às obras de Rosa. O vínculo entre a paisagem e as histórias do autor se revela como um fio condutor, conectando trechos de suas narrativas às curvas sinuosas dos rios e à vastidão dos sertões, um gancho que confere identidade única à matéria. A sua obra é um portal para entender as características do sertão mineiro e os anseios de seu povo.

A casa na qual o autor passou praticamente a primeira década de sua vida, em Cordisburgo, hoje abriga um museu com mais de 700 itens relativos à sua vida e obra. O Museu Casa Guimarães Rosa foi inaugurado em 1974 e é um destino certo para os amantes da literatura roseana. Além disso, o cômodo frontal da casa faz ligação direta com o sertão mineiro e a sua história. Denominado como a “Venda de seu Fulô”, referenciando o seu pai, Floduardo Pinto Rosa, a vendinha remonta o cenário onde, até então, o jovem João Guimarães Rosa crescera ouvindo histórias dos frequentadores do local.

Com mais de 700 itens no acervo, museu está instalado na casa onde o escritor João Guimarães Rosa nasceu e passou seus primeiros nove anos de vida.

Para além das conexões feitas no passado, há algumas que são feitas diariamente no presente por meio dos objetos de José Osvaldo dos Santos, o Brasinha. Autodeclarado como um “guardião das coisas do mundo”, Brasinha explica: “Toda vida eu gostei de juntar objetos, até aqueles mais inusitados, porque tenho certeza de que cada um deles tem uma história”.

Em sua coleção curiosa consta desde capacetes usados na 2ª Guerra Mundial até as primeiras lâmpadas utilizadas na iluminação da Gruta do Maquiné, uma das mais importantes do país.

O objeteiro e contador de histórias entende que guardar e contar sobre os objetos, desde aqueles que recebe, até os já retirados do Rio das Velhas, é uma maneira de promover a conscientização de uma geração. “Imagina esse Rio das Velhas limpo daqui a 20 anos? Então poderemos mostrar para aquela geração que, ali, existiam milhares daqueles objetos que poluíam o rio”.

Assim como Guimarães Rosa faz refletir em suas obras a importância do sertão e das águas, Brasinha faz o mesmo com a sua vivência. “Existe o sertão geográfico que eles falam, mas existe esse outro sertão. Esse ser tão bonito, ser tão triste, ser tão confuso, ser tão enigmático. Existe esse sertão dentro da gente.”

Como “ser tão” é também usado como sinônimo de quantidade e abundância, a frase, “perto de muita água, tudo é feliz”, de Guimarães Rosa, nunca fez tanto sentido.

 

José Osvaldo dos Santos, o Brasinha, se autodeclara como “guardião das coisas do mundo”.

 

Maquiné e Paraopeba

Além do legado literário, a região da Unidade Territorial Ribeirões Tabocas e Onça encanta turistas com uma das mais importantes grutas de todo o território nacional. As formações geológicas subterrâneas são atrativos que encantam visitantes em busca de experiências autênticas.

Considerada o berço da paleontologia brasileira, a Gruta do Maquiné possui sete salões com formas arquitetônicas construídas pela ação da água e do tempo durante milhares de anos. Descoberta em 1825 pelo fazendeiro Joaquim Maria Maquiné, a gruta possui mais de 650 metros de belas esculturas naturais, estalactites e estalagmites, formações feitas a partir de gotejamentos.

Inserida na Rota Peter Lund, do Circuito Turístico das Grutas – que atravessa os locais por onde o naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund (1801-1880) passou em suas pesquisas –, a Gruta do Maquiné recebeu quase 50 mil visitantes durante o ano de 2023. O responsável pela administração da gruta, Mário Lúcio de Oliveira, do Instituto Estadual de Florestas (IEF), comemora a retomada de visitações após a pandemia de COVID-19. “Recebemos diversas pessoas, tanto do Brasil como de fora, então temos essa responsabilidade de manter o interesse das pessoas, a nossa infraestrutura e os projetos ambientais que são feitos diariamente com os visitantes”, conta.

A região guarda grande influência de outro curso d’água, também afluente do Rio São Francisco: o Rio Paraopeba, que dá nome a um dos municípios da UTE. A interseção dessas águas cria um cenário único, onde a vida se entrelaça entre os ribeirões e o majestoso Paraopeba.

Vista aérea da Paróquia Nossa Senhora do Carmo, em Paraopeba.

 

Rumo à formação do Subcomitê

Em um movimento significativo, a região está em vias de estabelecer o Subcomitê Ribeirões Tabocas e Onça. Os Subcomitês são ferramentas importantes na gestão de recursos hídricos do CBH Rio das Velhas. São entidades consultivas e propositivas que funcionam obrigatoriamente com a participação dos três segmentos da sociedade (poder público, usuários da água e sociedade civil organizada), constituindo um avanço na descentralização da gestão das águas.

As articulações locais são lideradas por representantes das prefeituras, IEF, empresas locais e da sociedade civil organizada. Para Winston Caetano de Souza, o Tito, membro da Associação Ambiental Veredas & Cerrados, o colegiado local trará força para o movimento ambiental. “A aprovação deste Subcomitê faz com que as parcerias entre instituições que trabalham na área ambiental, em prol da qualidade e quantidade das águas, se fortaleçam. Além de promover uma maior conscientização das vidas que margeiam o curso d’água”, acredita.

Já Mário Lúcio de Oliveira, do IEF, vê o Subcomitê como espaço para a continuação de outros trabalhos já realizados dentro da unidade e para endossar discussões que precisam ser feitas entre os representantes e instituições. “É um trabalho contínuo que envolve Educação Ambiental, preservação e manejo das águas. Então, devemos sempre buscar outras pessoas, para fortalecer cada vez mais o movimento”.

(Esq) Ribeirão Onça, um dos cursos d’água que dá nome à UTE. Um dos lideres do processo de formação do Subcomitê, Winston Souza (centro) já presidiu CBH do Rio Paraopeba. Mário Lúcio de Oliveira, do IEF (dir), é outra liderança importante na formação do colegiado.

 

Desafios e pressões

Não se pode ignorar, no entanto, os desafios que pairam sobre a região dos Ribeirões Tabocas e Onça. Problemas ligados aos resíduos sólidos, tratamento inadequado da água e esgoto, além dos impactos da agropecuária, destacam-se como fatores de pressão que demandam soluções eficazes para preservar esse ecossistema único.

Um dos que também têm viabilizado a criação do Subcomitê local, Guilherme Miranda, da Secretaria de Turismo, Ecologia e Meio Ambiente de Cordisburgo, aponta as irrigações ilegais de lavouras como um dos maiores problemas do território. “Essas bombas que irrigam retiram uma grande quantidade de água, prejudicando assim diversas pessoas ao longo do curso d’água, chegando a quase faltar em algumas partes. Portanto, com o Subcomitê aprovado, conseguiremos ter uma fiscalização mais efetiva diante desse problema”, explicou.

Nesta jornada por terras tão singulares, lança-se luz sobre a iminente formação do Subcomitê e os esforços conjuntos para conservar a riqueza natural e cultural que caracteriza a região dos Ribeirões Tabocas e Onça. Afinal, é uma história que se tece entre páginas literárias e a realidade deslumbrante desse pedaço único do Brasil.

 

“Flores de pedra,
cachoeiras de pedra,
cabeleiras de pedra,
moitas e sarças de pedra,
e sonhos d’água, congelados em calcário.
Andares superpostos, hieroglifos, colunas,
estalagmites subindo
para estalactites,
marulhos gotejando das pontas rendilhadas:
– Plein!… ritmos do Infinito…
– Plein!… e séculos medidos por milímetros…”

 

Trecho do poema Gruta do Maquiné
João Guimarães Rosa (Livro Magma – 1936)

 


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: João Alves