Uma ética biocêntrica quer revolucionar a ciência jurídica em defesa da vida
Em todo canto do globo, iniciativas na área jurídica tentam, há tempos, legitimar a Natureza como sujeito de direitos, capaz de acionar judicialmente quem se atreva a destruí-la.
Especialistas na área são categóricos. “A modernidade se construiu a partir do princípio de que o homem é o centro e tudo o mais é objeto. Se olharmos para a América Latina, a colonização é prova disso. Tudo que foi construído era na lógica de um direito europeu. Fora dela nada fazia sentido”, explica a doutora em Direito e professora de Direitos Humanos e Políticas Públicas da Escola Superior Dom Helder Câmara, Mariza Rios.
Não deve ser por acaso que o avanço do tema no terreno legal ganha relevo justamente na América Latina. O Equador é a nação pioneira em reconhecer os Diretos da Natureza, em 2008, com o artigo 71 da Constituição:
“A natureza ou Pachamama [a Mãe Terra, em quéchua] (…) tem direito a que se respeite integralmente sua existência e a manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos”, tendo “qualquer pessoa, comunidade, povo ou nacionalidade a legitimidade para exigir das autoridades públicas o cumprimento dos direitos da natureza”.
Na Bolívia, a mudança veio um ano depois, com o princípio da interdependência e da complementariedade dos componentes da “Mãe Terra”, sendo necessária sua observância para que se respeite o equilíbrio de reprodução dos processos vitais para a continuação dos ciclos.
Em 2009, Bolívia promulgou lei visando equilibrar a possa da terra e garantir direitos à natureza.
Em 2022, foi a vez de o Chile ingressar no clube. O artigo 9º da Constituição chilena reconhece que “os indivíduos e os povos são interdependentes com a Natureza e formam um todo inseparável”, e afirma que “a natureza tem direitos e que o Estado e a sociedade têm o dever de protegê-los e respeitá-los”.
Também professor da Dom Helder, o doutor em Direito Humberto Macedo avalia que o mundo ainda vive um panorama antropocêntrico, cenário no qual o direito da natureza como arco principal do ordenamento é muito incipiente. “É uma empreitada civilizatória. Como disse Raul [Seixas], precisamos de uma metamorfose ambulante, transformar o ser humano em meio, não mais em fim. Sustentabilidade e desenvolvimento sustentável não são sinônimos, são opostos. Como usar da natureza em prol do desenvolvimento? Esse caminho deu errado”.
Para os professores Mariza Rios e Humberto Macedo, Direito Ambiental pode garantir a efetividade de um direito dos ecossistemas à vida.
O antropoceno
Para Ailton Krenak, o Ocidente ainda vê o sujeito de direitos apenas como “homem branco rico, o direito proprietário”.
Ailton Krenak, líder indígena, ambientalista e escritor, acaba de chegar a Itabirinha, cidade mineira na divisa com o Espírito Santo, onde fica a reserva Krenak. Foi visitar os Yanomami, vitimados pelo garimpo. Com gripe e corpo ruim, doía-lhe mais a alma.
Para ele, o esforço de afirmar os Direitos da Natureza é “uma resposta de parte do pensamento científico e jurídico ao desastre iminente que estamos vivendo no antropoceno [termo popularizado pelo químico holandês Paul Crutzen para designar uma nova época geológica marcada pelo impacto do homem na Terra], mas a razão ocidental acha ridículo atribuir direitos à natureza. Para eles, o sujeito de direitos é homem branco rico, o direito proprietário”.
O líder indígena é caudaloso: “É uma metástase imbecil achar que o planeta é algo que a gente recebeu de presente para comer, feito um panetone. Essa é a mente que governa o mundo. Apesar de todo o aparente avanço da ciência, o senso comum está na Idade Média e são capazes de dizer que a Terra é plana”.
Cético, lembra que, nos anos 1980, o relatório Brundtland [desenvolvido pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento] concluía: “ou [o ser humano] pararia [com aquele modo de explorar o mundo] ou não daria mais tempo. Na Eco-92, disseram: ‘se não parar tudo até 2025, não daria tempo’, e já estamos em 2022 e não paramos. Pelo contrário, aceleramos o consumo. Todo mundo consumindo tudo, essa a felicidade geral da nação, a universalização do capitalismo, um shopping center em cada cidade”.
O ambientalista vê a catástrofe logo ali. Todavia, resiste: “Estou vivo e não vou me render. Não tenho a ilusão de que vamos nos salvar, mas a gente precisa pelo menos adiar o fim do mundo”.
Perto de casa
A professora Mariza acredita que “o mais importante é o esforço dos movimentos sociais na esfera municipal, que historicamente não têm grande destaque. A Constituição Municipal é mais próxima da gente. Em três cidades – Paudalho e Bonito, em Pernambuco, e Florianópolis (SC) –, o tema [direitos da natureza] já está presente no Plano Diretor”.
Nem é preciso ir tão longe. “Em Raposos, a população se colocou como guardiã do rio”, explica a professora, em referência à lei de iniciativa popular que proíbe a instalação e operação de barragens destinadas à disposição final ou temporária de rejeitos de mineração no município do Alto Rio das Velhas.
Essa inclusão, reflete, “reafirma o protagonismo da luta social que está perto das pessoas. O processo está vindo de baixo, dos municípios”. Que a Pachamama a ouça.
Articulada por Subcomitê Águas do Gandarela, lei de iniciativa popular impede Barragem de Rejeitos em Raposos, no Alto Rio das Velhas.
Linha do tempo
Dentre os primeiros movimentos a reclamar direitos à natureza, foi de grande repercussão o caso Sierra Club versus Morton, contra a construção de um resort de esqui nas montanhas de Sierra Nevada, julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos em 1972. Embora derrotada, a causa ambiental recebeu três votos em sete, um deles com a histórica sustentação do juiz William O. Douglas, que afirmava a natureza como titular de direitos e, portanto, apta a postulá-los em juízo.
Em março de 2011, a natureza “em pessoa” foi admitida nos tribunais pela primeira vez, como parte em um processo. A Corte Provincial de Justiça da cidade de Loja, no sul do Equador, reconheceu o Rio Vilcabamba como detentor de valor próprio, sujeito de direito, cujo ecossistema foi prejudicado por entulhos produzidos pela construção de uma estrada.
A luta dos Maori, na Nova Zelândia, resultou em decisão judicial e posterior acordo entre o Estado e as tribos, em 2014, convertido em lei em 2017, admitindo o Rio Whanganui como sujeito de direitos e garantindo-lhe personalidade jurídica, incluídos todos os ecossistemas aquáticos associados ao rio.
Outro precedente importante vem da Austrália: a lei, promulgada em 2017, que reconheceu legalmente o Rio Yarra como entidade viva e indivisível.
Rio Whanganui, na Nova Zelândia, foi admitido como sujeito de direitos em 2017.
Brasil
A Constituição Brasileira não cita expressamente os direitos da natureza, mas é repleta de dispositivos sobre preservação ambiental. Baseado neles, o Ministério Público federal ajuizou Ação Civil Pública em Belém, Pará, no ano de 2011, exigindo a suspensão das obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. A ação versava sobre os “impactos irreversíveis do empreendimento sobre todo o ecossistema da Volta Grande do Xingu”, sobre “o risco de remoção dos índios das etnias Arara e Juruna e demais moradores da Volta Grande” e sobre “a violação do direito das futuras gerações; sobre o direito da Natureza; e sobre a Volta Grande do Xingu como sujeito de direito”.
Outra ação que ganhou espaço na mídia é de 2017 e foi movida pela associação gaúcha denominada Pachamama, em nome da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, por conta do rompimento, em 2015, da Barragem de Fundão, em Mariana.
Em ação inédita no Brasil, Rio Doce, representado por ONG, acionou Justiça por direitos contra tragédia provocada por rompimento de barragem, em 2015.
Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala