Os muitos sabores do Rio das Velhas
Das nascentes, que estão localizadas dentro do Parque Municipal Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, ao deságue no Rio São Francisco, no distrito da Barra do Guaicuí, em Várzea da Palma, os sabores que são praticados ao longo da bacia do Rio das Velhas são muitos. E, sem dúvidas, o território é um recorte significativo para compreender a gastronomia mineira.
Com muitas cores, texturas e aromas, a gastronomia mineira remonta aos tempos coloniais, influenciada pela miscigenação de povos indígenas, africanos e europeus. Dos quitutes simples aos pratos mais elaborados, cada um desses sabores são carregados de tradições, histórias e dedicação. Dessa forma, iremos conhecer quais são as comidas que não só marcam a bacia, mas também reforçam a identidade de um povo mineiro diverso, banhado pelas águas do Rio das Velhas.
A arte doceira
No Alto Rio das Velhas, a poucos quilômetros da nascente, está localizado o vilarejo de São Bartolomeu, em Ouro Preto. Com o nome do padroeiro dos padeiros, dos alfaiates e das profissões de manufatura, São Bartolomeu é um polo de produção de deliciosos doces artesanais, muitos deles produzidos em tachos de cobre e fornalhas a lenha.
Há 44 anos, em 1980, a educadora, ativista ambiental e doceira, Pia Guerra, chegava a São Bartolomeu. Com o intuito de viver uma vida mais tranquila e rodeada de natureza, ela e o marido escolheram o vilarejo como novo lar. Pia, que já havia herdado de seus avós técnicas de produção familiar, já produzia alguns produtos, mas nada como os doces da região. Foi com a Dona Maria do João da Costa, uma das doceiras mais antigas do distrito, que Pia aprendeu a arte doceira do vilarejo e se consagrou também como uma das guardiãs da cultura gastronômica de São Bartolomeu.
“O primeiro doce que eu fiz foi o de figo, porque eu o tinha plantado na fazenda. A partir do doce de figo, passei para a goiabada, pessegada, laranjada, doce de mamão, de cidra, e assim fui observando o potencial agrícola que os frutos de São Bartolomeu possuem”, comentou Pia Guerra.
Pia Guerra é uma das produtoras do tradicional doce produzido em tachos de cobre, em São Bartolomeu.
O potencial e a arte doceira do distrito é algo secular. Durante o século 18, quando a cidade de Ouro Preto ainda era chamada de Vila Rica (1711-1823), São Bartolomeu serviu como o celeiro de abastecimento de verduras e frutas da cidade, justamente porque os fazendeiros e proprietários da época plantavam as suas culturas à beira do Rio das Velhas. A produção desses doces provém da necessidade de conservar açúcares e frutas durante o ciclo do ouro no século 18 e 19, método para driblar a fome durante os longos períodos de viagem. Por conta dessa forte influência e tradição, desde 2008, os doces artesanais do distrito são reconhecidos como Patrimônio Imaterial de Ouro Preto.
A educadora Pia Guerra reforça que todos os doces feitos são de frutas nativas da região, e que muitas das receitas foram aprimoradas por meio da observação e sustentabilidade. Após uma tempestade derrubar praticamente todas as mangas da árvore em seu quintal, ela e seu filho criaram a Geleia de Manga Verde com Gengibre. “Eu colhi uns 20 baldes de manga verde. Então nós preparamos e transformamos essa manga em uma geleia, e depois, agregamos um pouquinho de gengibre. No final, a geleia tinha o azedinho da manga verde e o picante do gengibre. E com isso nasceu a geleia de manga verde com gengibre”, contou.
Pia Guerra demonstra um profundo amor pelos doces caseiros e pelo Rio das Velhas. “Se não fosse esse rio, esse pequeno arraial, distrito de Ouro Preto, nem existiria. O Rio das Velhas nos trouxe esses sabores, essa mata, esse ar puro e essas frutas que têm aqui. Então, eu o agradeço, por poder receber da mãe natureza todas essas dádivas, que em minha mão transformo em deliciosos doces para as pessoas”.
Produção dos doces nasceu da necessidade de se conservar açúcares e frutas, ainda durante o Ciclo do Ouro.
O tradicional pastel mineiro
Pertinho dos doces, ali, em Itabirito, a 49 km da nascente do Rio das Velhas, o aroma dos Pastéis de Angu convida os visitantes a experimentar essa receita tradicional da região. Como grande parte da comida mineira, o pastel de angu tem sua origem no período da escravidão, no final do século 19, nas fazendas onde os escravos escondiam os restos de carne dos senhores em bolinhos de fubá, para consumi-los posteriormente nas senzalas.
Com o passar do tempo, a receita ganhou popularidade e diversas adaptações. Hoje, a região de Itabirito é conhecida por preservar a tradição na preparação dos deliciosos pastéis de angu, ainda hoje sinônimos de resistência.
Sabores de um Brasil monarca
O segundo e último monarca do Império do Brasil, Dom Pedro II (1825-1891), realizou, em 1881, uma viagem de 36 dias pelas regiões do Quadrilátero Ferrífero, Campo das Vertentes e Zona da Mata. Incursão essa que despertou tradições, histórias e sabores, sendo eles as quecas, bolos de frutas cristalizadas e as lamparinas, doces de cocos.
Na época, durante o século 19, Minas Gerais já era um importante polo de exploração de ouro e metais, e dom Pedro II planejou passar por diversas cidades que tivessem esses minerais na rota. E devido à histórica mina de ouro de Morro Velho, em Nova Lima, o monarca separou alguns dias para desembarcar na cidade.
Entre a população, os Christmas Cake, ou melhor, em abreviação mineira, as quecas, já marcavam o paladar da época, principalmente durante o Natal. Devido aos ingleses terem assumido a administração da mina Morro Velho, por volta de 1835, muitas mulheres novalimenses, que trabalhavam nas casas dos empresários, aprenderam a receita que até então era feita pelos ingleses na época de Natal. Ao observar e aprender a receita, essas mulheres começaram a repassá-la para vizinhos e amigos. Quem conta essa história é Vera Lucia Rocha, quequeira, mantenedora da tradição e da receita de quecas e lamparinas
da região de Nova Lima.
“É um bolo com frutas cristalizadas, castanhas, nozes e finalizamos com conhaque. É uma herança inglesa deliciosa. Contudo, as famílias inglesas utilizam uma castanha própria que era importada, e como as mulheres não tinham acesso a esses frutos, as receitas passaram a utilizar as que tínhamos aqui no Brasil. O tempo passou, as receitas se consolidaram e, hoje, os Christmas Cake (Bolo de Natal) são quecas. Demos uma mineirada na palavra e virou patrimônio da cidade de Nova lima”, conta.
Vera Lúcia Rocha (2ª da dir para a esq) compõe coletivo de produtoras de queca em Nova Lima.
Se as quecas já são bons exemplos de miscigenação entre as culturas e a gastronomia inglesa e brasileira, o docinho de coco, lamparina, é um outro caso de mistura de sabores entre Brasil e Portugal.
Devido à visita de Dom Pedro II, toda a comunidade de Nova Lima passou a se preparar para receber o monarca. Conta-se que, entre elas, existia uma francesa, dona de uma pensão, que ficou muito entusiasmada com a visita e decidiu elaborar uma receita que se assemelha ao pastel de Belém, doce bastante tradicional de Portugal. Assim, com doce de coco, massa folhada e creme de ovos, a francesa criou este doce, que até então não tinha um nome.
Vera Lucia Rocha dá detalhes. “Na época, não havia energia elétrica. Então, a francesa, após servir o jantar, pegou essa sobremesa, e antes de Dom Pedro ir para o quarto, colocou um pavio no meio do docinho e acendeu. Ele pegou, admirou e foi para o seu quarto. Chegando lá, Dom Pedro II apagou o pavio, comeu o docinho e foi dormir. No dia seguinte, ele elogiou bastante o doce e deu a ele esse nome: lamparina”, explicou a quequeira.
Hoje, tanto as quecas como as lamparinas são importantes pratos da região que mantém toda uma tradição e cultura, na qual o ciclo do ouro, o Império brasileiro e o Rio das Velhas se entrelaçam tornando, assim, cada sabor especial.
Também sob influência da visita de Dom Pedro a Nova Lima, a lamparina popularizou-se no município.
O Ouro Negro de Sabará
Fundada em 1674, a cidade de Sabará mexeu com a imaginação dos colonizadores e forasteiros pela lenda de Sabarabuçu, uma mítica serra de pedras preciosas e esmeraldas, que um dia haveria de ser encontrada. Apesar de ser apenas uma lenda, a cidade de Sabará foi um importante polo de ouro e outros metais. Contudo, a exploração de ouro diminuiu significativamente e a região passou a ter o minério de ferro amplamente explorado. Mas através do tempo, entre as lendas, minérios e pedras de Sabará, um outro tipo de “ouro” sempre teve a atenção popular: o “ouro negro” em formato de fruta, a então jabuticaba.
Moradora de Sabará, Dirleia Peixoto conta que essa paixão pela fruta e pelas receitas foi algo que herdou de sua mãe, já que ela inventava pratos com jabuticabas de todos os tipos. “Minha mãe fazia naquele fogão à lenha, pegava as jabuticabas e, ao invés de fazer receitas com uvas passas, fazia com jabuticaba. A farofa era uma delícia. E tinha o licor também, sempre tomávamos na época de Natal e Ano Novo, mesmo que um pouquinho. A jabuticaba sempre esteve presente na minha casa.”
Com a influência da mãe, Dirleia passou a experimentar novas receitas até então inusitadas, como, por exemplo, a Amarucaba, um licor cremoso de jabuticaba. “E naquele tempo a gente ficava com essa coisa de tomar batida. Então coloquei leite condensado junto ao licor de jabuticaba”. Além disso, a moradora relembra os dias felizes em que a família se reunia para comer peixe, pescado no Rio das Velhas, com geleia temperada de jabuticaba. “Meu irmão ia lá no Rio das Velhas, pescava um bagre e levava para minha mãe fazer. Comíamos com chutney, uma geleia de jabuticaba agridoce. E isso me dá água na boca, sabe? Quando eu penso nesse passado”.
Quando pensa no rio, Dirleia é saudosa e agradecida. “O Rio das Velhas para nós é um marco em nossa vida. A gente tem muita gratidão por esse rio existir aqui em Sabará e prestar grande serviço à toda a região.”
Nacionalmente, Sabará é conhecida hoje como a cidade da Jabuticaba e, desde 1987, é realizado o famoso Festival da Jabuticaba de Sabará. Em 2008, o festival foi tombado pelo Patrimônio Histórico-Cultural e o “ouro negro”, a jabuticaba, alcançou o status de patrimônio imaterial da cidade e região.
Jabuticaba é reconhecida como Patrimônio Histórico-cultural de Sabará. Produtora Dirleia Peixoto diz ter herdado paixão
pela fruta de sua mãe.
A tradição da pesca
Palco de diversas expedições e personagens históricos, como a expedição do naturalista Peter Wilhelm Lund (1801 – 1880), e a já citada viagem de Dom Pedro II (1825-1891) por Minas Gerais, o Rio das Velhas também é o cenário de vivências ordinárias, experiências que definem e marcam todo um povo. Este é o caso do comerciante aposentado e pescador, Eustáquio Gomes da Costa.
Nascido em Corinto e criado próximo às margens dos afluentes e do próprio Rio das Velhas, seu Eustáquio é um pescador que vê no reflexo das águas a sua própria história. “A minha relação com o rio existe desde quando eu era menino e ouvia a lenda do Caboclo d’Água, e morria de medo de pescar porque eu achava que tinha o tal caboclo lá, mas era uma mentira, era simplesmente folclore. Mas meu pai foi o primeiro pescador. Eu pescava com ele entre Curvelo e a Barra do Guaicuí, nos Rios Paraúna e Cipó”, contou.
Enquanto gravava, seu Eustáquio batia os dedos na mesa e refletia sobre a sua história, e contava sobre as suas vivências, como a vez que o seu amigo pegou um “moleque”, forma de chamar os peixes surubins, extremamente grande e pesado. “Toniquinho, um velho pescador amigo, que já morreu, pegou um surubim de 55kg. Mas ali, na Barra do Guaicuí, existia muitos barcos e embarcações onde o pessoal pescava bastante. Comprei muito dourado na mão de barranqueiras e pescadores”.
Dotes culinários levaram Seu Eustáquio a se tornar o cozinheiro oficial das pescarias.
Mas, além de pescar, seu Eustáquio é também um cozinheiro de mão cheia. Ele diz que aprendeu tudo com os seus pais, já que eles traziam sempre um peixinho para casa. Tal herança cresceu e se espalhou, inclusive entre os amigos que pescavam no rio. “Pescar? Eu pesquei pouco, mas eu ia para as pescarias como o cozinheiro oficial. Os outros iam pescar e eu ficava fazendo a comida e tomando umas cachacinhas. Aprendi a fazer peixe frito e empanado no fubá, em fogo baixo, com um “moleque” de 10, 15 ou 20 kg, ficava muito saboroso”, lembrou seu Eustáquio.
A sua especialidade? Ensopado de dourado. Com muito entusiasmo, Eustáquio lembra, “sou mestre em fazer um peixe ensopado, com um molho cremoso de tomate, cebola, pimentão, pimenta malagueta e pimenta do reino. Essa é a minha receita mais especial. O peixe frito não sei fazer tão bem, mas os meus ensopados de Dourado, de Pacu e Pacamã são muito bons”, comentou.
Em suas falas e causos, seu Eustáquio, com seus 75 anos de idade, demonstra extremo carinho e respeito pelo Rio das Velhas, cenário de suas lembranças afetivas, sabores marcantes e vivências inesquecíveis. “Essas receitas são tradicionais, as vezes são feitas de maneiras diferentes, mas o básico está ali. São feitas por barranqueiros e pescadores, são feitas por todo mundo que pesca no Rio das Velhas”.
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: João Alves