Lavadeiras mantêm tradição que as águas do tempo não apagaram

18/10/2021 - 10:03

O ofício de lavar roupa à beira do rio ainda é resguardado por mulheres ribeirinhas no Rio das Velhas. Elas acordam cedo, com o raiar do sol, pegam o sabão às vezes negociado com a “patroa” e partem com as trouxas de roupa na cabeça para a beira do rio. Junto com elas se mantêm a tradição de esfregar, deixar a roupa quarar e depois esperar secar ao sol. A cena pode nos remeter a um passado longínquo, como de fato é sua origem, mas ainda é praticada nos dias de hoje, em vários cursos d’água da bacia do Rio das Velhas.


Desde cedo Altamira da Conceição, 73 anos, e Maria Railda Pereira Coutinho, 66 anos, moradoras de Raposos, no Alto Rio das Velhas, aprenderam que a música ajuda a enfrentar a dureza do dia a dia. Bem mais tarde descobriram que, cantando, se tornaram guardiãs de uma cultura. Elas são amigas e vizinhas em Raposos, onde passaram boa parte da vida lavando roupa às margens do Ribeirão da Prata, cantando embaladas pelas águas do ribeirão que deságua no Velhas.

A tradição de lavar roupa no rio faz parte da vida de Altamira, que lavou a primeira trouxa aos 15. Ela sempre acreditou que a tarefa lhe traria algo especial. “Eu pensava: essa roupa vai me dar algum resultado. Eu tinha aquele sonho, igual com tudo que a gente faz na vida e queremos um resultado. A roupa me aliveia [alivia] e me dá o sustento!”, diz, dona Altamira que nasceu em Morro Vermelho, distrito de Caeté, e foi morar em Raposos ainda bebê.

Outras, escolheram, a contragosto, lavar roupa como profissão. O estudo ficou para trás e o sustento da família tornou-se uma realidade. Então a “roupa de ganho” é a solução, ou seja, quando se cobra pelo trabalho. Entre R$ 60 e R$ 80 por semana é a promessa de continuar mantendo a tradição das lavadeiras e quanto se ganha para sustentar a família. A trouxa é R$ 30, a depender do tamanho. Feriado, domingo e dia santo, basta fazer sol que elas estão lá colorindo a beira do rio.

Casada e com filhos, dona Maria Railda conta que precisava trabalhar, mas o fato de não ter com quem e nem onde deixar as crianças inviabilizava qualquer profissão. Foi assim que aos 20 anos começou a lavar roupa no Ribeirão da Prata. Dona Maria Railda é nascida e criada em Raposos, onde mora a poucos metros do ribeirão.

“Lavando roupa eu tive a chance de dar estudo para os meus filhos, de cuidar deles. Foi uma graça que Deus me deu porque eu tive a oportunidade de trabalhar e colocar meus filhos para estudar. Hoje todos trabalham e se sustentam”, enfatiza dona Altamira que agora lava apenas as próprias roupas. “Meus filhos tiraram meus clientes todos porque não querem que eu trabalhe mais. Estão pensando que eu já estou velha. Mas, ainda estou muito lúcida para cuidar de minha vida”, reclama.


Confiram o ensaio de Robson de Oliveira, fotógrafo de Raposos (MG)



Matriarcas das suas famílias, dona Altamira e dona Railda também são testemunhas da degradação ambiental causada pelo crescimento desordenado e falta de saneamento básico na região onde moram.

“Nosso rio está secando. Antigamente tinha muita água. Agora tem época que dá tristeza ver o pouquinho de água correndo. Vai acabar secando todo”, lamenta Altamira, sabedora que o assoreamento do leito do Ribeirão da Prata é consequência dos desmatamentos da mata ciliar e ocupação desordenada. “Antigamente, era largo, tinha peixe pulando. Agora, é só um fiapo de água”, completa a lavadeira.

O sentimento de dona Maria Railda é o mesmo. “É uma tristeza ver o rio secando. A natureza está acabando e não sei se os meus netos vão crescer vendo o Ribeirão da Prata correr”, lamentou.

A história das lavadeiras Altamira e Railda são exemplos de como a relação das mulheres e das águas é profunda. São trajetórias que simbolizam o íntimo e a potência desta combinação, mas que também espelham em grande medida os estigmas, preconceitos e papéis da nossa sociedade.

A edição nº 14 de setembro de 2021 da Revista Velhas, publicação do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), irá refletir sobre a relação entre o feminino e as águas. Mais do que isso, discutirá porque elas, gestoras das águas por vivência, ainda ocupam pouco espaço na gestão dos recursos hídricos.

Este ensaio – com Altamira da Conceição, Maria Railda Pereira Coutinho e Ivete Romualdo de Souza, registrado pelo fotógrafo raposense Robson de Oliveira às margens do Ribeirão da Prata – são apenas um aperitivo do que vem por aí na Revista Velhas nº 14.

Homenagem

Este ensaio e matéria são uma homenagem especial a Altamira da Conceição, falecida durante o processo de impressão da Revista Velhas nº 14. O CBH Rio das Velhas presta condolências e os mais sinceros pêsames aos familiares e amigos.


Este texto, assim como muitos outros da publicação, é de Luiza Baggio.