Os dados do Sistema Nacional de Informações em Saneamento (SNIS) para 2021 indicam que 4.573 municípios – 82,1% dos 5.570 do país – preencheram os formulários sobre serviços de Drenagem e Manejo de Águas Pluviais Urbanas (DMAPU). A amostra daquele ano abrangeu 194,6 milhões de habitantes, o que correspondia a 91,2% da população total.
O quadro não é bom. A maioria dos prestadores de serviço – as prefeituras, na quase totalidade dos casos – não conta com sistemas de informações, bancos de dados, cadastro técnico ou levantamento de dados sistemático, muitas vezes desconhecendo a infraestrutura instalada no próprio município. Em Minas, 85% dos municípios forneceram dados ao SNIS em 2021.
Perto de 2 mil municípios (43,5%) informam contar com sistema exclusivo para drenagem, 542 (11,9%) com sistema em que se misturam águas da chuva e esgoto e 1.010 (22,1%) com sistema combinado – quando parte é exclusiva e parte, misturada. Em 777 (17,0%) não há nenhum sistema de drenagem implantado.
O tratamento das águas pluviais, que carreiam todo tipo de poluição e lixo para os cursos d’água, acontece em apenas 190 cidades, ou 4,2% do total.
A falta de sistemas de drenagem e de manejo adequado resultou em 320 mil desabrigados e/ou desalojados em áreas urbanas nos 4.573 municípios da amostra. Desses, 164,7 mil (51,6%) são da macrorregião Norte. São 2,2 milhões de domicílios em situação de risco de inundação.
Só 775 municípios (16,9%) contam com Plano Diretor de Drenagem (PDD), sendo 18 capitais, e 1.805 (39,5%) com cadastro técnico de obras lineares (23 capitais). Quase 1.400 municípios (30,2%) não realizam nenhum tipo de intervenção nos sistemas, indicando ambientes de planejamento e gestão de DMAPU ainda incipientes.
Os sistemas de alerta de riscos hidrológicos, que permitem antecipar a ocorrência de eventos, estão presentes em 787 municípios (19 capitais), ou 17,2% da amostra.
Dois terços das cidades brasileiras não têm mapeamento de áreas de risco de inundação em áreas urbanas.
Drenagem e Manejo das Águas Pluviais Urbanas
Esses serviços são constituídos pelas atividades, pela infraestrutura e pelas instalações operacionais de drenagem de águas pluviais, transporte, detenção ou retenção para o amortecimento de vazões de cheias, tratamento e disposição final das águas pluviais drenadas, contempladas a limpeza e a fiscalização preventiva das redes.
No Brasil, o processo de urbanização, caracterizado pelo crescimento dos centros urbanos e da transição populacional da zona rural para as cidades, teve início nos anos 1950, impactando diretamente na forma como o solo recebe as águas das chuvas ao interferir no ciclo da água e no processo natural de drenagem, demandando intervenções para minimizar impactos de eventos hidrológicos extremos.
São as chamadas medidas de controle, formadas por medidas estruturais (intervenções físicas como os sistemas de micro e macrodrenagem; estruturas de retenção e detenção – reservatórios de amortecimento, barragens, diques e parques lineares –; áreas de infiltração – bacias, trincheiras e valas); e medidas estruturantes (diretrizes e normas legais, como o Plano Diretor, a Lei de Uso e Ocupação do Solo; o Plano Municipal de Saneamento Básico, o Plano Diretor de Drenagem – PDD e o Cadastro Técnico de obras lineares, além de ações de fiscalização e educação).
O desmatamento e o assoreamento de cursos d’água, a redução da área vegetada e a redução da capacidade de infiltração do solo geram aumento do volume do escoamento superficial, da velocidade desse escoamento e a redução do fluxo de recarga subterrânea.
O acúmulo de resíduos não drenados soma-se ao esgoto não tratado e contaminam o solo, as águas pluviais e os recursos hídricos superficiais e subterrâneos.
O oposto, sistemas eficazes de drenagem, de coleta de resíduos sólidos e de coleta e tratamento de esgotos evitam que as águas das chuvas se tornem um vetor de proliferação de doenças e de poluição de corpos hídricos dos quais se retira água para abastecer a população. Potencializa-se, assim, um ciclo positivo do saneamento básico.
A abordagem integrada dos quatro componentes, orientada pela Lei Federal de Saneamento Básico (nº 11.445/2007), é parte da evolução do conceito de DMAPU. No passado, a regra geral era afastar o mais rápido possível as águas pluviais de pontos de retenção, transferindo eventos hidrológicos para áreas a jusante. Atualmente são priorizadas soluções voltadas à drenagem sustentável (faixas, valas de infiltração), infraestruturas de amortecimento de vazões (reservatórios ou bacias de retenção e detenção, lagos, piscinões) e parques lineares, entre outros.
Belo Horizonte
Na maior cidade da bacia do Rio das Velhas, a Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura conta com uma Diretoria de Gestão de Águas Urbanas, comandada por Ricardo Aroeira, engenheiro civil e especialista em saneamento. Com 30 anos de serviço público, ele diz que é “impossível eliminar esse problema, um fator sobre o qual o homem não tem governo, que é a intensidade e a quantidade de chuvas”. Como alternativa, aponta uma “política de gestão de risco de inundações”: “Não basta fazer obras. Mesmo o Tempo de Retorno [cálculos matemáticos que indicam o período de tempo para que um determinado evento hidrológico seja igualado ou superado pelo menos uma vez] tem limites. Quando vai projetar uma barragem, por exemplo, a da Pampulha, ela precisa resistir a uma cheia deca milenar [TR igual a 10 mil anos]”.
As novas tendências recomendam a adoção de “reservatórios profundos, verdadeiros edifícios enterrados, a chuva que não cabe entra para esses grandes reservatórios e depois é bombeada”, explica.
Segundo Aroeira, os modelos estão em “permanente atualização, face às mudanças climáticas e aos eventos extremos”. O objetivo, diz, é “trazer o risco de inundação para níveis aceitáveis; elas não podem matar pessoas”. A emissão de alertas e a rede de voluntários em torno disso têm apresentado, comemora Aroeira, “resultados muito positivos”.
A capital mineira, embora enfrente todos os anos transbordamentos de cursos d’água e inundações, dispõe de sistema bem estruturado de drenagem exclusiva para águas pluviais e coleta que leva 93% dos esgotos diretamente às Estações de Tratamento.
A exceção mais notável é o cartão postal da Lagoa da Pampulha, que sofre com a poluição. Aroeira garante: “O problema está sendo enfrentado, mais da metade da poluição vem de Contagem. Dos 500 mil moradores da bacia da Pampulha, 30 mil ainda lançam esgotos que chegam aos córregos. A Copasa [Companhia de Saneamento de Minas Gerais] tem compromisso de universalizar em cinco anos o atendimento de esgotamento lá e a Prefeitura adota processos de tratamento com desinfecção, com aplicação diária de produtos biorremediador e remediador diariamente”.
Isso, informa, já levou o “Ribeirão Pampulha para a classe 2, impactando positivamente o Onça e o Velhas”. O diretor destaca também a incorporação, “na Lei de Uso e Ocupação do Solo, de tecnologias verdes”: “100% da vazão de um terreno quando nu é a vazão máxima permitida depois do empreendimento concluído”.
Outro ponto importante é o “trabalho da Urbel [Companhia Urbanizadora e de Habitação de Belo Horizonte], de mitigação de riscos e relocalização de moradores”. Para ele, o mais decisivo é que toda as ações do tema seguem, uma “política de estado”, não se limitando ao horizonte estreito de um único governo municipal.
O “desafio da poluição difusa é para ser avaliado no futuro”, admite. “Temos questões anteriores a resolver, como a universalização do acesso à coleta e ao tratamento de esgoto, a urbanização de vilas e favelas, o problema das ocupações, o sistema viário, a educação e a saúde”.
Aroeira avalia que, “de uma forma geral, as prefeituras são mal preparadas”, desde carência de “corpo técnico” até a política antiga de “canalização de córregos”. A “realidade é complicada”, lamenta. “Os governos estadual e federal se omitiram historicamente. O PLANSAB [Plano Nacional de Saneamento Básico] foi um avanço, mas sofreu pela descontinuidade e pelo retrocesso dos últimos anos”. A criação do Ministério das Cidades [no primeiro governo Lula] promoveu “acesso e diálogo direto com o governo federal”. Já o governo do estado, condena, “jamais assumiu a responsabilidade de fortalecimento institucional do poder local. Falta capacidade de elaborar bons diagnósticos e planejamentos. Faltam recursos”.
Segundo Aroeira, níveis de risco de inundações, como a registrada em Raposos, na RMBH, em 2022, devem ser reduzidos a níveis minimamente aceitáveis
Planejamento
O professor Daniel de Miranda, do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG), Campus Santa Luzia, engenheiro civil com doutorado em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos, concorda que há falta de recursos, mas “agravada pela falta de planejamento. Precisa pensar para daqui a 20 anos, não vai conseguir recurso de um ano para o outro”.
Os dados do SNIS “mostram uma realidade muito dura, mas que não surpreendem”. Quando ainda temos “mais de 100 milhões de brasileiros sem tratamento de esgoto, imagina resolver os problemas da drenagem?”.
Sobre os efeitos da poluição difusa sobre a qualidade das águas, “a gente não tem a menor noção” pela ausência de estudos, já que a “drenagem pluvial fica ofuscada pela questão dos esgotos” e não “faz nem cócegas perto desse problema maior”.
Miranda continua: “Deveríamos ter os grandes canais de drenagem e cursos d’água exclusivamente usados para acolher águas pluviais. É muito falho, a gente vê o nível de degradação do Velhas, exatamente pelo esgoto, 80% da população de toda a bacia é fortemente impactada pela poluição dos principais córregos da Região Metropolitana”.
Ele exemplifica com a Lagoa da Pampulha, “principal ponto turístico, com sete córregos que recebem e despejam esgoto praticamente in natura”. Para o professor, “o manejo já melhorou muito em BH. É um problema muito complexo, o relevo não favorece em nada, provoca grande vazão e muita velocidade”.
O “crescimento desordenado de ocupação da bacia intensifica o problema, além do solo predominantemente argiloso em BH, que absorve pouco”. “O caminho que tem sido pensado”, elogia, “é o mais correto: criar zonas de várzea, investir no amortecimento, com grandes bacias de detenção e medidas complementares para facilitar o armazenamento da água nos lotes, não impermeabilizar o solo, mas reaproveitar a água da chuva em usos não potáveis”.
Com relação à realidade das mudanças climática e dos eventos extremos, constata: “É um caos, não estamos preparados para isso. O planejamento urbano precisa parar e planejar de verdade para compensar esses volumes cada vez maiores”.
Atual cenário da Lagoa da Pampulha preocupa especialistas
Parceria com as universidades
Miranda diz que a Prefeitura de Belo Horizonte “trabalha fortemente com a UFMG”, em parcerias sobre a questão da drenagem urbana. Já em Santa Luzia, na RMBH, que parece com inundações do Rio das Velhas e onde fica um dos campi do IFMG, o diálogo com a prefeitura e “secretarias afins ao assunto está muito atrasado”.
Miranda, conselheiro do Plano Municipal de Saneamento Básico, já tentou desenvolver “projetos para evitar problemas de inundação, trabalhar a questão da drenagem, mas o assunto ainda não prosperou”.
É preciso salientar, diz, que se trata de um “problema muito complexo, que deveria ser discutido de forma mais colaborativa, envolvendo poder público, o meio acadêmico, os Comitês de Bacia Hidrográfica e outros coletivos, mas falta interesse dos governos”.
Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Paulo Barcala
*Fotos: Bianca Aun; Adília Dalbem; Fernando Piancastelli; Leo Boi