Revista Velhas nº 13: Avó Água

19/04/2021 - 8:57

Por Ricardo Mobius

Artigo originalmente foi publicado na coluna “Re-Existir na Diferença” no Portal de Notícias Semana On em 30/10/2020

 

“Começamos com um desabafo sincero e pessoal. Um dos clichês que mais me provocam e instigam é o incômodo aforismo ‘traduttore traditore’. (…) Acrescentaria: também a ‘tradução’ se realiza por um efeito de memória. Traduzo para não esquecer ou traduzo para, sim, esquecer que existiram traduções (literárias e não) que não me representam. Traduzo, porque existo.”

Biagio D’Angelo

 

Ao longo de todo o século XVII partiram de São Paulo expedições fortemente armadas, que contavam por vezes com mais de dois mil homens, entre portugueses, negros, mestiços e centenas de índios escravizados, em busca de riquezas, que poderiam ser indígenas a serem presos e escravizados, negros fugidos e refugiados em quilombos, metais preciosos, como o ouro – eram as Bandeiras ou Entradas.Os chamados bandeirantes ou paulistas avançavam sobre os sertões do Brasil expandindo as fronteiras de exploração, avançando sobre os territórios indígenas e destruindo quilombos e aldeias.

 

Os bandeirantes, com seus conhecidos nomes como Fernão Dias, Raposo Tavares, Domingos Jorge Velho e tantos outros eram, portanto – assim descritos por vários historiadores que desmistificaram as leituras ufanistas e apologéticas das primeiras décadas do século XX – equivalentes a piratas do sertão, capitães do mato, traficantes de escravos indígenas, gente rude, extremamente violenta e ambiciosa, disposta a matar ou morrer em busca das riquezas que saqueavam nos sertões.

As chacinas e a brutalidade de bandeirantes como Raposo Tavares foram ricamente descritas pelos Jesuítas que sofreram com os ataques dos bandeirantes às suas missões, aprisionando, matando e torturando os indígenas de algumas reduções jesuíticas.Na última década do século XVII chegaram tais milícias armadas em busca de metais preciosos, informados por lendas como a de Sabarabussu ou Sabarabuçu, que significava na língua tupi algo como “grandes olhos brilhantes”, indicando a presença dos metais que brilham como o sol, chegaram à calha do rio conhecido pelos indígenas como Waim-ig ou Uaimií ou ainda Waimi’y ou Gwaimi-y.

 

O bandeirante que mais se notificou e se estabeleceu no que passaria mais tarde a ser a Vila de Sabará, às margens deste Rio Gwaimi-y, na Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, foi Borba Gato, genro de Fernão Dias.

Eram mais de cem os grupos ou povos indígenas que viviam neste território hoje conhecido como Minas Gerais, sendo que na região central predominavam os Cataguás ou Cataguases, que assim denominavam-se pelas raízes do tupi Ca+tu+auá, significando “gente boa”. Foram fortemente atacados, escravizados e dizimados pelos bandeirantes, desde a expedição de Felix Jacques.

No vale do Rio Gwaimi-y, segundo Oiliam José, no livro “Indígenas de Minas Gerais”, viviam os Goianás.

Já nas cabeceiras deste mesmo rio, na região onde hoje é a cidade de Ouro Preto, viviam os Guarachués, também dizimados pelos bandeirantes em busca do ouro.

Foi no encontro com esses ou um desses povos indígenas, sejam os Goianás, os Guarachués ou os Cataguás, que os bandeirantes receberam a missão de traduzir o nome do Rio Gwaimi-y. Gwaimi, era equivalente a “velho”, “velha”, e o –í/-y final significava “rio, água”.

 

Para os bandeirantes toda o cosmologia dos povos indígenas era algo inexistente ou desprezível, a visão sagrada do mundo, o animismo e o perspectivismo indígena que reconhece a vida e a familiaridade que unifica todos os seres, que os levam a reconhecerem a Mãe Terra, que levam, por exemplo, os Krenak a reconhecerem o avô Rio Watu, conhecido por nós como Rio Doce, hoje em coma como legado e herança da mineração que nunca cessou desde o século XVII, tudo isso era algo inalcançável para o materialismo bruto bandeirante.Desse modo, seria inatingível para um bandeirante imaginar que Gwaimi-y, o reconhecimento maior e fundamental da sabedoria dos povos indígenas, poderia ser traduzido como “Avó Água”, constatando o profundo entendimento imaterial da natureza e do mundo pelos povos originários, Mãe Terra, Avó Água. A mãe antes da mãe, fonte e berço primeiro de toda vida neste planeta.

Mas Gwaimi-y foi de fato traduzido na lógica do materialismo rude bandeirante:
Rio das Velhas. Em 1714 seria instituída a Comarca do Rio das Velhas, com sede na Vila de Sabará.

 

 

Ricardo Moebus é professor da Escola de Medicina da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e médico do Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Juventude de Ouro Preto (CAPSij – OP).

 

Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social