Revista Velhas nº 18: Microplásticos podem se tornar o mais importante contaminante ambiental do planeta

24/01/2024 - 10:00

Brasil tem pesquisa incipiente e nenhuma legislação específica


Apesar de ser objeto de pesquisas desde os anos 1970, só mais recentemente, há coisa de uma década, a poluição dos recursos hídricos causada por micro (MP) e nanoplásticos (NP), bem como seus efeitos sobre as águas, a fauna, os seres humanos e o meio ambiente, entrou de vez no radar de cientistas e organismos internacionais. As pesquisas, embora incipientes, já apontam uma gama de problemas que podem resultar dessa “doença moderna”.

Os microplásticos, partículas com diâmetro entre 0,1 e 5 mm, estão amplamente distribuídos em oceanos, rios, lagos, reservatórios, estuários, regiões polares, estações de tratamento de esgoto e água potável.

De acordo com dados da Plastics Europe, associação comercial que representa fabricantes de plásticos daquele continente, a produção global do setor atingiu 368 milhões de toneladas em 2020. Estima-se que, desse total, 94% sejam destinados a aterros sanitários ou liberados no meio ambiente natural.

O artigo “Peixe e plástico em ecossistemas de água doce: contribuição da ciência brasileira e pesquisas futuras”, de diversos autores, revela que o Brasil ocupa o 4º lugar no ranking dos maiores produtores de resíduo plástico no mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, China e Índia. Anualmente, o país gera cerca de 11,4 milhões de toneladas de resíduos.

O trabalho integra a publicação “Microplásticos nos ecossistemas: impactos e soluções”, editada pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, em 2022, e organizada pelos pesquisadores Marcelo Pompêo, Bárbara Rani-Borges e Teresa Cristina Brazil de Paiva. No prefácio, vem o alerta: “Os estudos recentes sugerem que, a seguir com o uso generalizado que fazemos, e com o pouco cuidado que temos no adequado reuso ou descarte daqueles plásticos que consideramos desnecessários, o plástico tem o potencial de ser o mais importante contaminante ambiental do planeta”.


Partículas com diâmetro entre 0,1 e 5 mm, os microplásticos estão amplamente distribuídos em oceanos, rios, lagos, reservatórios, estuários, regiões polares, estações de tratamento de esgoto e água potável.


Viagem pela cadeia alimentar

Um dos múltiplos impactos dessa modalidade de poluição é sobre a vida aquática. Pesquisa de 2020 da bióloga Bruna Urbanski analisou os índices de plásticos encontrados no curimbatá, espécie amplamente consumida no Brasil, e localizou essas partículas no trato digestivo de cerca de 72% dos peixes estudados.

A pesquisa, que alçou Urbanski, no meio do percurso, do mestrado ao doutorado em Ecologia de Ecossistemas pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu, concentrou-se no Rio Tietê e em seu afluente Rio do Peixe, em São Paulo. Foi o “primeiro relato de ingestão de MPs por essa espécie no Brasil”. Antes “só havia estudos em sistemas estuarinos e em dois outros rios”. Urbanski, nas atividades em campo, viu “um Tietê de água e outro de plástico”, com “oxigênio zero desde a superfície”.

Caminho aberto, os rios conduzem ao mar tudo o que recebem. O efeito é que as espécies marinhas, de plânctons e moluscos a aves, tartarugas e mamíferos, enfrentam riscos de envenenamento, distúrbios comportamentais, fome e asfixia. Corais, mangues e ervas marinhas também são sufocados por detritos que os impedem de receber oxigênio e luz.

O corpo humano é igualmente vulnerável à contaminação por MPs, pela água “potável” ou ingeridos através de peixes, frutos do mar e até mesmo sal comum. Além disso, os MPs e NPs podem penetrar na pele ou serem inalados do ar.

Os estudos apontam para riscos de alterações hormonais, distúrbios de desenvolvimento ou metabólicos, neurotoxicidade, aumento do risco de câncer e anormalidades reprodutivas, essas últimas “já verificadas em peixes”, aponta Bruna Urbanski.

Marcelo Pompêo, doutor em Ciências da Engenharia Ambiental e professor da USP na capital paulista, afirma: “O NP poderá ser transferido de uma célula para outra. Já foi detectado na placenta, no sangue, mas não se sabe o que poderá causar”. Urbanki acrescenta: houve detecção também “no leite materno, na placenta e em fezes de bebês”.


Professor da USP, Marcelo Pompêo lembra que microplásticos já foram detectados na placenta e sangue humanos


Água doce

Das mesma publicação da USP, o artigo “Microplásticos em sedimentos de rios: estudo de caso do Rio Sorocaba”, de Renan Bernardo, Marta Severino Stefani e Welber Smith, admite que “os trabalhos que incluem microplásticos em sedimentos de ecossistemas de água doce ainda podem ser considerados incipientes, especialmente no Brasil”, mas veem que “um agravante envolvendo essas micropartículas” é “sua capacidade de sorver diversos poluentes na matriz polimérica” fazendo com que o MP “se comporte como vetor químico de compostos altamente tóxicos”.

Pompêo confirma: “O MP pode causar mal pela própria estrutura e pelo que pode carrear em compostos químicos que ficam adsorvidos. Quanto menor, mais problemático pode ser.
Mais compostos na mesma massa”.


ONU e clima

Em outubro de 2021, trabalho divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) recomendou “redução drástica do plástico desnecessário, evitável e problemático, crucial para enfrentar a crise global de poluição”.

A análise enfatizava que o plástico também é um problema climático. Usando uma análise de ciclo de vida, estimou-se que, em 2015, os plásticos estavam ligados à produção de 1,7 gigatoneladas (Gt) de CO2 equivalente, número que pode chegar, em 2050, para 6,5 Gt, ou dramáticos 15% do orçamento global de carbono – que é a quantidade de CO2 que ainda pode ser emitida para que o planeta tenha ao menos 50% de chance de manter a elevação da temperatura abaixo de 1,5ºC até 2100.

Os autores Caio Rodrigues Nobre, Leticia Fernanda da Silva [ambos do Instituto de Biociências da Unesp] e Beatriz Barbosa Moreno, do Departamento de Ciências do Mar da Universidade Federal de São Paulo, confirmam e chamam atenção para a influência que o MP tem no sequestro de carbono realizado  pelo oceano.

Esse ambiente é “o maior sumidouro natural de CO2 e tem papel essencial na mitigação do aumento do nível de dióxido de carbono atmosférico e do aquecimento global. A presença dessas partículas na superfície da água pode afetar a incidência de luz e atrapalhar a fotossíntese e o crescimento do fitoplâncton, que utiliza o CO2 presente na água para realizar seus processos fisiológicos e é responsável pela produção de 80% de todo o oxigênio da Terra”.

O PNUMA pediu no ano em curso “a redução da poluição plástica em 80% em todo o mundo até 2040”. O novo documento reforça a necessidade da “mudança para abordagens circulares, incluindo práticas de consumo e produção sustentáveis, o desenvolvimento e adoção rápida de alternativas pelas empresas, e uma maior conscientização do consumidor”.


Brasil ocupa o 4º lugar no ranking dos maiores produtores de resíduo plástico no mundo.


Abastecimento

O artigo “Microplásticos em sistema de água doce: eficiência das estações de tratamento e presença em águas de abastecimento público”, de diversos autores do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) constata que “a presença de MPs e NPs na água potável está diretamente relacionada com a eficiência de remoção das estações de tratamento de água”.

No Brasil, pesquisa realizada no Lago Guaíba, principal manancial de abastecimento de Porto Alegre, identificou concentrações elevadas de microplásticos, na faixa de 11,9 a 61,2 itens/m3.

Para efeito de comparação, no Rio Elbe, na Alemanha, a média foi de 5,7 itens/m3, e de 1,9 a 17,9 itens/m3 no Rio Chicago, nos Estados Unidos. Na outra ponta, o Rio Braamfontein Spruit, na África do Sul, em Joanesburgo, apresentou concentração entre 160 e 208 itens/m3.


Lei

Ainda não existe legislação brasileira que determine monitorar a presença de MPs nos ecossistemas para avaliar seus impactos na qualidade destes, na vida da biota e dos seres humanos.

Pompêo lembra que “ETAs e ETEs foram construídas com finalidades específicas a uma época. Se não fizer modificações, não vão reter MP e outros compostos. As operadoras seguem a legislação, e microplásticos não fazem parte da legislação que obrigue as companhias a saber quanto passou ou ficou retido nos tratamentos”.

A Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais), maior concessionária da bacia do Rio das Velhas, informou que “a discussão sobre a poluição causada por microplásticos e nanoplásticos é muito recente e está concentrada em ambiente acadêmico”, e que “ainda há um amplo campo de pesquisa a ser explorado, principalmente no que tange à necessidade de conhecimento do impacto destes contaminantes nos sistemas de água”.

A companhia que atende mais de 600 municípios mineiros diz estar “atenta ao tema” e garante que “iniciou, neste ano, estudos relacionados à temática dos microplásticos com a elaboração de um projeto de pesquisa” vinculado ao seu Programa de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação, além da “colaboração na coorientação de um trabalho de conclusão de curso em parceria com a UFMG”, em andamento.


Contaminação do ser humano pode levar a alterações hormonais, distúrbios de desenvolvimento ou metabólicos, neurotoxicidade, aumento do risco de câncer e anormalidades reprodutivas.


Futuro

Valter Azevedo-Santos, doutor em zoologia pela Unesp de Botucatu e docente no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Tocantins, aponta: “O número de pesquisas sobre poluição por plásticos em ecossistemas brasileiros tem aumentado, mas precisamos de mais investimento em estudos científicos. A poluição por plástico ainda precisa ser estudada em diferentes ecossistemas do país, com o intuito de facilitar políticas locais e com foco específico”.

Ele vê “com otimismo todo início de governo” e está “confiante” na possibilidade de adoção de “novas políticas para conter a poluição por plástico” face aos sinais emitidos por Brasília sobre “questões ambientais diversas”.

As peças começam a se mover mais depressa. Nos últimos dias 15 e 16 de junho, São Paulo sediou o 1º encontro científico sobre MPs no Brasil. Segundo Pompêo, o objetivo é “criar a Associação de Estudos sobre MP” e dar partida para o 1º Congresso Brasileiro de Meio Ambiente e Microplásticos.

Doutor em zoologia, Valter Azevedo-Santos diz que estudos na área podem facilitar políticas locais e com foco específico.

Valter Vilela, conselheiro do CBH Rio das Velhas representando a Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES), destaca que a “preservação dos recursos hídricos é fundamental para o bem-estar da vida humana” e vê nos microplásticos “uma grande ameaça para os recursos hídricos, já que eles se acumulam em rios, lagos e oceanos”. Para ele, o “maior problema é que essas partículas são muito pequenas e os processos de tratamento de água convencionais não conseguem retirá-las”.

O CBH Rio das Velhas, defende, “tem um papel importante em divulgar e conscientizar seus membros e a sociedade em geral para o problema do descarte dos plásticos no meio ambiente”. O Comitê, diz, “poderá lançar campanha para divulgar a proposta do PNUMA de Reutilizar, Reciclar e Reorientar, e também deverá acompanhar e divulgar o Acordo Internacional de Paris”.

Soluções para o problema vão ganhar prêmio

A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) lançaram o concurso “Desafio Saneamento do Futuro: rios sem plástico” e vão premiar soluções inovadoras que incorporem tecnologia digital para reduzir a quantidade de plásticos nos corpos hídricos brasileiros.

O processo ocorrerá em duas etapas, cada qual com edital próprio e premiação de R$ 990 mil. A primeira, conduzida pela ANA, contemplará os nove melhores projetos, em estágio de protótipo, distribuídos em três categorias: Social, Gestão Pública e Indústria. Na fase seguinte, a ABDI distinguirá três ideias entre as selecionadas pela ANA, com o objetivo de aumentar a escala e estimular seu lançamento no mercado.

Maior concessionária da bacia do Rio das Velhas, Copasa informa ter iniciado estudo sobre o tema em parceria com UFMG.

 


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Barcala
*Fotos: ShutterStock; Acervo Pessoal; Fernando Piancastelli