Revista Velhas nº13, Entrevista com Ailton Krenak: “Os rios têm sabedoria, vamos aprender com eles”

23/04/2021 - 11:52

Um dos pensadores mais influentes da atualidade, Ailton Krenak fala à Revista Velhas sobre pandemia, Rios Watu e Uaimií, ancestralidade e as ameaças que sofremos enquanto espécie

Líder indígena, ambientalista, filósofo, poeta e escritor. Este é Ailton Alves Lacerda Krenak, nascido no vale do Rio Doce, em Minas Gerais. Escritor e ganhador do prêmio Juca Pato 2020, que distingue o intelectual do ano segundo a União Brasileira de Escritores, é autor de “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” e do recente “A Vida Não É Útil”, editados pela Companhia das Letras.

Nesta entrevista exclusiva, Ailton Krenak fala dos efeitos da pandemia na espécie humana, na sociedade brasileira e na Reserva Indígena onde vive, da sua relação ancestral com o Rio Watu (Doce) e como o Uaimií (Rio das Velhas) compartilha dessa perspectiva que reconhece a familiaridade entre os seres e elementos.

Tido como um dos pensadores mais influentes na contemporaneidade, Krenak também analisa temas como humanidade, preconceito, mudanças climáticas e o processo de recuperação da Bacia do Rio Doce, em curso desde o rompimento da barragem de rejeitos da Samarco, em Mariana, em 2015. E diz: “Qualquer bacia hidrográfica só consegue se recuperar se tiver engajamento de todo mundo”.

Chegamos a um ano de pandemia e quarentena no mundo. Como você tem passado esse período?

A Covid causou esse arraso no meio das nossas comunidades, principalmente nas mais carentes. Nós viramos 2020/2021 com uma espécie de cansaço de um ano tão duro quanto foi 2020. Então eu continuo aqui, observando daqui. Eu acho que não sobrou nenhuma comunidade aqui na nossa região que não perdeu algum parente. E isso põe a gente diante de uma pergunta: quando nós vamos ser capazes como sociedade, não grupo isolado, de nos organizar para enfrentar o contágio e o fato real de que a gente precisa vacinar a população brasileira? O negacionismo ainda está pairando sobre as nossas cabeças como uma ameaça. Se a gente continuar com um governo que nega que tem uma pandemia e que é preciso confrontar essa grave crise sanitária, nós vamos estender essa doença até o resto do ano. Em várias regiões do mundo essa questão está sendo tratada como uma questão nacional.

No seu último livro ‘A Vida Não É Útil’, você destaca o fato de o coronavírus adoecer apenas seres humanos. O que isso nos indica?

Isso nos aponta que nós estamos diante de um paradigma ético, ecológico e, em último caso, a gente poderia dizer que é também político. Mas ele é principalmente ético. Nós, como vasta humanidade, atravessamos o farol vermelho e não estamos entendendo. E, nesse caso, é o sinal das mudanças climáticas. Esse calor é planetário, não é mais uma febre localizada. Você não está com uma febre que você põe a mão na testa e está com febre; você está com febre no corpo inteiro! A próxima convenção que talvez a gente tenha da biodiversidade, o assunto não deve ser mais o ecossistema planetário, ele deve ser o organismo humano inadequado para habitar esse ecossistema planetário. E o que a gente faz com esse organismo humano? A gente cura ele? A gente dá um tratamento homeopático para ele? Ou a gente vai junto para um fim onde a gente não tem mais nenhuma previsibilidade de quando vai acontecer?

Além da pandemia do novo coronavírus, 2020 ficou marcado pelas manifestações antirracistas impulsionadas pelo movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Como é ser indígena no Brasil? O preconceito em relação aos indígenas é tão forte quanto o racismo que atinge os negros?

É difícil a gente dimensionar o que é pior, o que é maior, quando a gente trata de uma questão que é tão subjetiva. O racismo não é uma coisa objetiva. Aquilo que eu chamei de perda da ética global, que a gente perdeu a ética humana, vai emergir como distúrbios, conflitos étnicos, raciais, e vai se expressar na forma de violência. Se essa violência vai ser de gênero, de raça ou de classe, não importa. O que eu quero te dizer é que nós vamos enfrentar crises muito piores do que essas manifestações racistas ou antirracistas que estão eclodindo por aí. A coisa vai piorar muito. O ser humano, esse Homo Sapiens, virou uma peste aqui na terra. E as manifestações de inadequação – racismo, preconceito, xenofobia, burrice – são só erupções cutâneas. Isso vai sair na pele da gente, vai dar pereba pra todo lado enquanto a gente não curar o núcleo. E o núcleo doente dos humanos é essa fúria de dominar a terra. A gente come rios, come montanhas, come outros animais. A lista de espécies em extinção não para [de crescer]. Quer dizer: nós vamos entrar na lista de espécies em extinção uma hora. Ou a gente vai achar que está fora do ecossistema terrestre?

 

Uma catástrofe no sentido cultural-ecológico. Foi como se a gente tivesse perdido o chão”,
sobre o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, que deixou o Watu (Rio Doce) “em coma”.

 

O que o Rio das Velhas remete a você? Qual a sua relação com ele?

Ele me remete, em primeiro sentido, a um nome, ou etnome, que é na língua tupi: Uaimií. Uaimií é um rio, assim como é o Watu, para o povo que vivia na sua bacia, sagrado. Mas ele foi devastado pela industrialização. Esse negócio de jogar todo o esgoto de Belo Horizonte no Rio das Velhas é uma infâmia. Olha o tipo de comunidade urbana que a gente constitui! São Paulo transformou o Tietê num esgoto. Belo Horizonte transformou o Rio das Velhas em outro esgoto. O [Ribeirão] Arrudas é aquela coisa doente e entubada. Olha ao seu redor, olha o Rio Doce! Talvez o [rio] Jequitinhonha, que tenha ficado na região menos industrializada do nosso estado, na área que sempre foi considerada como uma região abandonada, que eles chamam inclusive de “com maior índice de pobreza”, na verdade, do ponto de vista ambiental, tem mais qualidade do que nós, que fomos industrializados.

As bacias industrializadas do nosso estado viraram esgoto. Então viva a região de Minas que ficou esquecida pelo tal do progresso! Tomara que o Jequitinhonha consiga dar vitalidade e inspirar a restauração dessas outras bacias coirmãs, porque nós estamos em maus lençóis – por falar em água. Eu sei que o Projeto Manuelzão, coirmão do Comitê do Rio das Velhas, trabalhou muito junto às comunidades locais, conscientizando sobre a importância das nascentes e a importância de proteção das sub-bacias. E o que aconteceu? Deu uma conscientizada, melhorou um pouco o perfil do tipo de sitiante que está na beira mesmo do Rio das Velhas, teve um pouco mais de controle sobre a mata ciliar, sobre as beiras de rio, mas foi insuficiente para mudar a consciência de que a Bacia Hidrográfica tem que ser protegida.

Os Goianás, Guarachués e os Cataguás habitavam essa região do Vale do Rio das Velhas e, como você mesmo citou, o chamavam de Uaimií [ou Gwaimi-y, Waim-ig, Waimi’y]….

Sim, esses povos todos são de língua tupi. É diferente da língua dos Krenak, que é Jê. Você pode ver que o nome que demos para o nosso rio é Watu. Ele é o nosso avô. E que tem o mesmo sentido em Uaimií…

Exato! E a tradução bandeirante [Gwaimi, era equivalente a “velho”, “velha”, e o –í/-y final significava “rio, água”] cunhou literalmente Rio das Velhas, em detrimento de algo como “Avó Água”, desconsiderando essa perspectiva indígena que reconhece a vida e a familiaridade que unifica os seres. O que uma sociedade perde sem, cada vez mais, essa relação ancestral ou minimamente mais próxima e familiar com o rio e os elementos naturais?

A primeira perda óbvia é aquela que, quando a gente está se debatendo para criar uma unidade de conservação, uma APA [Área de Proteção Ambiental], uma reserva biológica, enfrenta os primeiros sinais dessa resistência quando as pessoas dizem:
“Pra que criar um lugar que a gente não pode ir, porque a gente não pode entrar lá?”. Ora, porque aquele lugar precisa ser protegido, é o sentido de sagrado. Pra você explicar cientificamente para um sitiante que ele não pode ocupar a cabeceira de um de rio, de um córrego, de uma nascente, você tem que levar os fiscais lá, multar o cara, você usa um conjunto de argumentos – que chegam a ser até intimidação – para ele entender. Mas se esse cara tivesse cultura, se ele tivesse ideia de quem eram os antepassados dele, se ele guardasse uma memória cultural daquele lugar, você não ia ter que intimidar ele, porque ele ia falar: “eu não posso mexer na cabeceira daquele rio porque aquele rio é sagrado”. Não precisa ser uma religião católica, umbandista, espírita; basta você ter cultura. A cultura torna determinados estágios e ambientes da nossa vida sagrados. Não porque você imprime um sentido religioso, mas porque você imprime um sentido de memória.

Nessa perspectiva, o que significou para você e o povo Krenak tudo o que aconteceu com o Rio Watu (Doce) em 2015, em decorrência do rompimento da barragem de Fundão, da Samarco?

Foi uma catástrofe no sentido cultural-ecológico. É como se a gente tivesse perdido o chão. Não foi muito diferente do que aconteceu com o pessoal de Bento Rodrigues [primeira localidade devastada com a lama da barragem]. Aquelas famílias, aquelas pessoas, tiveram a vida deles destruída. Talvez a gente só tenha conseguido alguma resiliência porque nós somos um coletivo muito instituído, a gente tem uma história muito profunda e esse grupo de pessoas que hoje constitui mais de 130 famílias tem razões de permanecer aqui, que do ponto de vista do dano não desistiram daqui. Era para todo mundo desistir, ir embora, aceitar uma outra compensação, construir um bairro, uma vila em algum lugar – porque é a prática das empresas, e do próprio governo. Se a gente fosse pensar o fato real, essas famílias teriam que ter sumido daqui, porque não ficaram condições ecológicas, não ficaram condições materiais de produzir comida, de produzir vida. Aqui é uma reserva de 4 mil hectares, vamos considerar que um terço das famílias vivia na margem mesmo do rio, tinha um cotidiano ribeirinho. Todos eles perderam a sua fonte de subsistência. Todos. E começaram a viver de cesta básica. Tem quase 6 anos que todo mundo aqui vive de cesta básica.

Você crê na revitalização do rio, um dia?

Eu creio, claro. Porque pra nós o que aconteceu é que a vida do rio mergulhou, ela está submersa. Então, nesse entendimento, ele está esperando que aqui na superfície as coisas mudem para ele poder voltar a ser um rio. Só que isso não é no tempo dos humanos, não é 10 anos não, num é 20 anos. De repente vão ser os nossos netos, talvez tataranetos, que vão poder ter uma convivência com o rio – isso se parar a violência contra a superfície da bacia. Porque se essa superfície da bacia continuar sendo agredida com lançamento de esgoto, pressão sobre a mata ciliar – se não houver restauração da mata ciliar não tem rio! –, ele vai continuar sendo esse corpo d’água doente. A gente costuma dizer que o Watu está em coma. Quem está em coma não está morto. Pelo menos para os familiares, [quando] uma pessoa está em coma, fica todo mundo rezando, todo mundo na fé que ele vá sair um dia do coma. Mas ele [rio Watu] é um estágio avançado de perda da vida, um estado dramático. Eu também tenho esperança de que o Rio das Velhas volte a ter abundância de peixe, que possa de verdade ser um rio onde as pessoas possam nadar e beber água. Como já disse um falsificador de promessas da política do nosso estado, que “em 10 anos vou mergulhar no Rio das Velhas, nós vamos beber água do Rio das Velhas”. Esse tipo de promessa vã a gente não pode mais acreditar, isso é conversa fiada. Ninguém vai beber água do Rio Doce em 10 anos. Se beber vai parar no hospital.

Como você, um atingido, avalia os esforços de recuperação empreendidos por empresa (Fundação Renova/Vale/BHP Billiton) e Estado?

Incipientes. Inconsistentes do ponto de vista de um projeto tecnológico. Incapazes de levar em conta a realidade socioambiental – eles não integraram as comunidades que vivem na bacia do rio em nenhum projeto. São projetos autocráticos, feitos em gabinete. Eles mandam biólogos e engenheiros andar na Bacia do Rio Doce e fazer consultas, e depois produzem relatórios totalmente ao gosto de quem precisa de um relatório, mas que não têm engajamento. Se não tiver engajamento, não tem trabalho. Qualquer bacia hidrográfica só consegue se recuperar se tiver engajamento de todo mundo que vive na bacia em algum nível.

Agora eu escutei um sabiá aí, mas há pouco eu havia escutado o barulho de sirenes. Tem a ver com a ação das empresas aí na Reserva?

A sirene que você escutou é uma daquelas máquinas imensas, aquelas retroescavadeiras, e patrola. Aqui tem retroescavadeira, patrola, guindaste, caminhão-pipa e tem aquele rolo compressor que você só usa em obras de infraestrutura, tipo asfalto. Eu nem sei pra que eles botam o rolo compressor aqui, se aqui não tem nenhuma compactação. Outro dia eu dei uma entrevista e falei que aqui tinha virado o “Rally das Empreiteiras”.

Nessa prosa fundamentalmente sobre rio, o que mais gostaria de destacar?

Que esses rios, que são muito mais antigos do que nós, possam nos dar sabedoria e nos instruir [sobre] como melhorar a nossa existência sem continuar danando a vida ao nosso redor. Os rios têm sabedoria, eles podem ensinar a gente. Vamos aprender com eles!

 

 

Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Entrevista: Luiz Ribeiro
Fotos: Neto Gonçalves e Ruy Teixeira