Revista Velhas nº20: Uma nova esperança para a bacia da Pampulha

06/11/2024 - 10:00

Acordo judicial e novo coletivo de governança com participação do CBH podem enfim recuperar bacia que irriga patrimônio da humanidade


A Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, desde 2016 é parte de um conjunto reconhecido como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, braço da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Com a orla enfeitada pelos jardins de Burle Marx, é cercada de joias arquitetônicas desenhadas por ninguém menos que Oscar Niemayer: a Igreja de São Francisco de Assis, o antigo Cassino (atual Museu de Arte), a Casa do Baile (hoje o Centro de Referência em Urbanismo, Arquitetura e Design) e o Iate Tênis Clube (nascido Iate Golfe Clube).

Tantos atributos, porém, não a livraram de adoecer, década após década, de variados males. Seus meros 2 km2 de área recebem águas de uma bacia de quase 100 km2, esgoto in natura de 30 mil pessoas, muita poluição difusa, sedimentos e lixo que ainda hoje atiram diretamente em seu corpo ou ao leito dos afluentes.

Assoreamento que já rouba mais de 50% do espelho d’água original, eutrofização (proliferação descontrolada de algas e plantas aquáticas), recorrente mortandade de peixes (a mais recente, agora mesmo em março, que teve entre 5 e 7 mil espécimes exterminados) ou o mau cheiro resultante de lançamentos clandestinos são feridas abertas por décadas de problemas inteiros e soluções pela metade.

Conjunto Moderno da Pampulha foi declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco.

Uma conjunção favorável, porém, parece se desenhar no firmamento. Acordo judicial de março de 2023, reunindo a Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais) e as prefeituras de Belo Horizonte e Contagem, e nova comissão constituída no começo deste ano por determinação do Tribunal de Contas do Estado (TCE) iluminam o céu de possibilidades para, finalmente, despoluir a bacia e assegurar sua devida manutenção futura.

O engenheiro civil Ricardo Aroeira, Diretor de Gestão de Águas Urbanas na Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), admite que se trata de “um grande desafio”, mas exalta o “trabalho consistente desde 2015/16, de desassoreamento (com 1,2 milhão de metros cúbicos de sedimentos retirados em 10 anos), de remoção do lixo sobrenadante, de manutenção da orla e tratamento das águas da lagoa” que tem “oito afluentes diretos”.

Segundo Aroeira, são duas as causas principais de agressão externa – “a poluição dos córregos e a poluição difusa” – e uma interna – o “passivo acumulado no fundo da lagoa”.

Edinilson dos Santos, engenheiro florestal, conselheiro do Subcomitê Ribeirão Onça e servidor da PBH há 31 anos, foi transferido há 15 para a diretoria que cuidava então exclusivamente do Propam, o Programa de Recuperação e Desenvolvimento Ambiental da bacia da Pampulha. Para ele, o Propam passou a ser “desconsiderado” após meados da segunda década deste século.

Com uma longa vivência no tema, protesta: “Você vai à Lagoa, ela está cheirando mal, tem esgoto ainda, vaza com frequência, entope, desentope, entope de novo. Tem bota-foras clandestinos espalhados pela bacia inteira, alimentados de madrugada. Vem a chuva e leva para os córregos, leva para a Lagoa”. E clama: ”Precisa de um novo diagnóstico da bacia. O próprio licenciamento ambiental deixa brechas para ocupações do solo que estão ‘dentro da lei’, mas são danosas ao meio ambiente”.

Ricardo Aroeira (esq.), da PBH, chama a atenção para a necessidade de se resolver outros problemas na bacia, para além do esgoto. Conselheiro do Subcomitê Ribeirão Onça, Edinilson dos Santos (dir.) atua no Programa de Recuperação e Desenvolvimento Ambiental da Bacia da Pampulha.

Ação civil pública

Em 2021, a PBH moveu ação na Justiça Federal em que exigia da Copasa a universalização do sistema de coleta e tratamento do esgoto na bacia, distribuída em cursos d’água da capital e da vizinha Contagem. Daí derivou o acordo judicial homologado em março de 2023, com prazo de cinco anos para o cumprimento da meta.

O plano de ação da Copasa, batizado de Projeto Reviva Pampulha, pretende interligar 9.759 unidades residenciais e comerciais ao sistema de coleta, além de realizar obras e promover investimentos na infraestrutura para conferir maior segurança às operações técnicas.

Sérgio Neves, engenheiro sanitarista, gestor de Empreendimentos de Grande Porte da Copasa e responsável pelo projeto, destaca: “A bacia é uma cidade de 500 mil pessoas, mas o problema não é falta de rede”, pois a “cobertura é da ordem de 99%”. Dados da companhia estadual de saneamento mostram que, atualmente, cerca de 5% dos clientes não estão interligados às redes de esgoto da Copasa na região. No entanto, quatro partes desse total são denominadas ligações factíveis, ou seja, já possuem rede à disposição. Apenas 1% desses quase 10 mil imóveis não têm sistema de esgotamento sanitário implantado”.

De acordo com Neves, o Reviva Pampulha prevê “investimentos de R$ 146,5 milhões”, dos quais R$ 29,9 milhões já foram aplicados, “com a finalização de 3.373 ligações, ou 35% do objetivo”.

Às prefeituras cabem a emissão de decretos de Utilidade Pública, a fim de garantir maior celeridade na liberação das áreas e faixas de servidão para execução de redes coletoras e ligações prediais, a emissão de licenças ambientais e ações da vigilância sanitária. No caso de Contagem, entram também intervenções de urbanização e eventuais realocações de moradores de áreas de risco para as quais não haja solução segura.

Além das obras de infraestrutura, o Reviva Pampulha também realiza monitoramento de qualidade das águas dos córregos, inspeção e correção de lançamentos de águas pluviais nas redes coletoras. Conforme balanço da Copasa de março de 2023, seis dos 20 córregos que compõem a bacia apresentavam qualidade ruim ou péssima. Em setembro, o monitoramento apontou melhoria geral, com 95% das amostras em patamares “bom” ou “aceitável”.

Plano de ação da Copasa pretendeinterligar 9.759 unidades residenciais e comerciais ao sistema de coleta de esgoto.

Para Isnard Horta, engenheiro civil que coordena o Grupo de Trabalho multisetorial encarregado do assunto na Prefeitura de Contagem, o novo monitoramento é “um ganho importante, porque tradicionalmente era feito na chegada dos córregos à Lagoa, além de pontos dentro dela. A novidade é o monitoramento que mostra qual trecho de qual curso tributário está poluindo. Um avanço muito grande para o controle ambiental”.

Em breve entrará em cena o monitoramento remoto, serviço a ser contratado pela Copasa, totalizando 21 pontos em frequência trimestral de amostragem segundo os parâmetros do Índice de Qualidade das Águas (IQA), que mede, por exemplo, oxigênio dissolvido, coliformes, temperatura, nitrogênio e fósforo.

Horta também realça a “radiografia” que ajuda a identificar as favelas onde a Copasa pode completar a rede mais facilmente e os casos mais complexos, por adensamento e outros motivos, “invertendo a lógica de que só podia botar rede quando urbanizasse”. Nesse universo, Contagem tem nove AIS [Áreas de Interesse Social] com mais de três mil ligações necessárias e 668 implementadas.

O gestor da Copasa cita 35 comunidades em Contagem em processo de regularização de conexão à rede coletora e descreve atrativos para convencer os moradores à adesão: “Criamos facilidades para quitar os débitos e condições para viabilizar a formalização”. No site do projeto, algumas dessas vantagens: o cliente pagará R$ 60, que pode ser parcelado em até três vezes; a dívida será congelada; os débitos prescritos (superiores a 10 anos) serão baixados; cada intervalo de seis meses de adimplência habilitará a baixa dos três débitos mais antigos.

Sérgio Neves, da Copasa, destaca que 35% do objetivo de ligação de imóveis à rede coletora já foi concluído.

Mais um Tribunal

Em janeiro deste ano, o TCE considerou que as obras relacionadas à retirada do esgoto da bacia eram insuficientes para a revitalização total da Lagoa, determinando a constituição de novo coletivo para agilizar ações e reduzir gastos com o projeto.

A comissão congrega, além do governo estadual, das prefeituras de Belo Horizonte e Contagem e da Copasa, diversos órgãos e instituições, como o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, onde se insere a microbacia da Pampulha, a Agência Peixe Vivo, a Agência de Desenvolvimento da Região Metropolitana, o IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas), a Agência Reguladora de Serviços de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário de Minas Gerais (Arsae-MG) e o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG).

Poliana Valgas, presidenta do CBH, saúda a decisão. “Ao propor a constituição de um coletivo para construir a governança, o TCE fez questão de incluir o Comitê, que, por sua formação tripartite e sua missão devotada às águas, tem por excelência vocação para uma ação integral e integrada”.

As orientações do Tribunal de Contas nasceram de auditoria operacional que, em relatório preliminar, analisou e propôs melhorias aos esforços relacionados à despoluição, particularmente no que diz respeito à governança de todo o processo.

Para a presitenda do CBH Velhas, a interceptação e tratamento do esgoto são importantes, mas é preciso de mais para manter a lagoa limpa.

Muito chão pela frente

Valgas frisa a dimensão da empreitada: “Embora sejam muito importantes a interceptação e o tratamento de esgoto que hoje cai na Lagoa, isso não basta para despoluir e muito menos para mantê-la limpa. É preciso, entre outras medidas, preservar córregos e nascentes de BH e Contagem, implantar um monitoramento ambiental efetivo, pôr fim à ocupação das áreas de várzea, investir em sistemas adequados de drenagem pluvial e enfrentar a questão da poluição difusa”.

Aroeira faz coro: “Apenas resolver o esgoto não é suficiente. É preciso um somatório de ações, como uma política de uso e ocupação do solo que leve em conta critérios ambientais”. Nesse quesito, ele exalta o novo Plano Diretor da capital, em vigor desde 2019, e exemplifica: “É muito avançado, proíbe canalizar córregos, aposta nos parques lineares, cada nova edificação é obrigada a entregar uma vazão como se fosse um terreno virgem, estimula as áreas arborizadas para maior conforto térmico”.

Neves vai no mesmo tom: “O plano de trabalho é focado no esgoto, mas o problema na Pampulha vai muito além”. Para ele, “a população tem que aderir, a responsabilidade é do morador se o sistema de coleta está disponível, e são necessários cuidados no uso do sistema de esgotamento, pois esgoto não é lixeira”. Para atingir esse propósito, afirma o papel da educação ambiental, assim como Isnard Horta, que só acredita em eficácia se a “educação estiver no cotidiano das pessoas”.

Poluição dos córregos que abastecem a lagoa, poluição difusa e passivo acumulado no fundo são algumas das principais fontes de agressão ao corpo d’água.

 


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
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