Revista Velhas Nº 11: Saneamento básico no Brasil: no caminho da privatização do serviço

29/05/2020 - 16:01

Água potável na torneira, esgoto coletado e tratado, ruas limpas e a destinação correta ao lixo gerado pelos municípios. Esses serviços estão incluídos no saneamento básico de um país e deveriam fazer parte da vida de todos os brasileiros. Mas fato é que, o que deveria ser o básico, está bem longe de fazer parte da vida de todos.

O Brasil tem a metade da sua população sem acesso à rede de esgoto. Do que é coletado, só 43% recebe tratamento adequado. Quando se fala em água tratada, 83% das pessoas têm acesso ao serviço. Pode até parecer um número mais animador, mas basta uma análise por região para entender o abismo que se abre. No Norte do país, por exemplo, são só 57% das pessoas que contam com água de qualidade em suas torneiras.

Os dados são de 2018 e foram fornecidos pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Com eles fica claro que o saneamento básico está atrasado e precisa avançar a passos largos. O baixo incentivo da gestão pública, a falta de definições que regulem o serviço e o investimento público insuficiente fizeram com que o Brasil ficasse para traz na universalização dos serviços de saneamento básico.

Na tentativa de mudar esse quadro, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº. 4.162/19 que sugere um novo marco legal do saneamento – que, como principal novidade, acaba com preferências públicas do serviço. Isso quer dizer que, a partir da aprovação pelo Senado, as empresas privadas terão o direito de disputar com as empresas públicas, através de licitações, a fatia do bolo para cuidar do saneamento dos municípios. A estes permanecerá a responsabilidade de colocar metas e indicadores de desempenho, cobrar resultados e estabelecer direitos e deveres dos usuários.

Novo marco legal do saneamento tramita atualmente no Congresso Nacional Com a proposta, empresas privadas terão o direito de disputar com as empresas públicas a prestação do serviço de saneamento nos municípios.

Com as mudanças propostas, um importante ponto pode estar ameaçado com o domínio das empresas privadas como prestadoras de serviços de saneamento básico: o subsídio cruzado, uma prática instituída pelo Plano Nacional de Saneamento (Planasa), entre as décadas de 1960 e 1970. “Subsídio cruzado é você pegar dois municípios. Um município, às vezes, é deficitário, ou seja, ele não tem recurso suficiente para operar, fazer a manutenção e realizar investimentos. Já o outro município, que é superavitário, vai gerar um excedente financeiro para fazer um equilíbrio nesse sistema para que o serviço de saneamento possa ser realizado naquele deficitário”, explica o engenheiro civil e especialista em saneamento, meio ambiente e recursos hídricos, Victor Queiroz.

Consultor na construção de planos municipais de saneamento básicos, Queiroz acredita, porém, que a forma como o subsídio cruzado é organizado hoje é pouco transparente. “Quando a gente fala que a mudança não é salutar, não significa que a situação atual seja boa. Ela não é boa, precisa de muitas mudanças, precisa de muitas melhorias, de muita discussão. Quem está indo contra a mudança no marco regulatório quer dizer que está de acordo com a situação atual? De forma alguma”, ele aponta.

Uma mudança que está sendo proposta no novo marco regulatório é a possibilidade da criação de blocos regionais para tentar equilibrar o papel do subsídio cruzado. Mas o Projeto de Lei  não deixa claro como isso será feito, já que a titularidade é do município. “Como essa mudança está muito focada no processo de que a iniciativa privada vai resolver tudo, essas outras questões de subsídio não são bem tratadas”, explica o engenheiro.

"A gente precisa, de alguma forma, de subsídio e organização para atingir a universalização e atender o serviço como direito humano” Victor Queiroz Consultor na construção de planos municipais de saneamento básicos

Como qualquer empresa privada, seus donos esperam que ela dê retorno econômico em suas atividades, o que inclui a geração de lucro. A redução de custos é uma das formas que uma empresa tem para equilibrar as contas. Para evitar que essas reduções influenciem na qualidade do serviço prestado em saneamento básico é fundamental que o governo defina parâmetros de qualidade. Os impactos sobre acesso e qualidade podem resultar em efeitos sobre meio ambiente, saúde, desempenho escolar, produtividade de trabalho e gastos públicos com saúde.

Atualmente, apenas 6% das companhias de água e esgoto do país são privadas, segundo informações da Associação Brasileira e do Sindicato das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon-Sindcon).

Para o engenheiro Victor Queiroz, o que deveria ser feito é um diagnóstico melhor para entender quais são os problemas. “Se a gente focar na iniciativa privada como solução, a gente sabe que isso vai dar errado. Não é porque a iniciativa privada pode realizar um serviço de qualidade, de forma eficiente em algumas coisas, que é a solução. Mas a gente tem problemas de universalização. O problema de saneamento está muito localizado nas áreas rurais, nas áreas mais pobres. A gente precisa, de alguma forma, de subsídio e organização para atingir a universalização e atender o serviço como direito humano”, explica. O que não significa, segundo ele, que o serviço deva ser de graça, mas que o Estado precisa se organizar para implementar esse direito.

Atualmente, 6% das companhias de água e esgoto do país são privadas. Com o novo marco regulatório, estados podem vender 100% das ações das empresas públicas;

Um outro ponto a ser observado é que, com as mudanças propostas, a população mais pobre do país pode se sair bem prejudicada. Para o doutor em economia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e professor na Universidade Federal de Uberlânia (UFU), Carlos Saiani, alguns pontos precisam ser olhados com atenção. “Pensando simplesmente em recursos para investimentos, a privatização seria uma forma de garantir a universalização. Porém, alguns aspectos intrínsecos à privatização devem ser considerados. Primeiro, é necessário que o setor seja atrativo economicamente para provedores privados. Dessa forma, é necessário que haja a cobrança dos usuários (tarifas, por exemplo), o que afeta mais a população de menor renda, que pode não ser capaz de pagar pelos serviços. É justamente nesse segmento da população que se concentra a maior parcela do déficit de acesso a saneamento no Brasil”, aponta.

Na visão de Saiani, as empresas privadas tendem a ter menor tolerância a inadimplência, uma questão que precisa ser olhada com cuidado para que o acesso seja garantido a todos. “É necessário que os contratos de concessão e os órgãos reguladores definam estruturas tarifárias com aspectos sociais, ou seja, tarifas menores e subsídios para os mais pobres”, completa.

O novo marco regulatório do saneamento básico pode gerar também uma onda de privatização das empresas estatais. Segundo dados do Ministério da Economia, hoje as 22 estatais do setor valem, juntas, R$ 140 bilhões. Um valor que, segundo o governo, será importante para atingir a meta de universalização do saneamento básico, previsto para ser alcançado em 2033, garantindo 99% da população com acesso a água e 90% ao tratamento de esgoto.

Copasa, que opera a Estação de Tratamento de Água no Sistema Rio das Velhas - Bela Fama (foto), possui pouco mais de 50% de suas ações ligadas ao Estado de Minas Gerais

Em Minas Gerais, a empresa pública de abastecimento de água que lidera a prestação de serviço é a Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais). Ela está entre as três empresas com capital aberto na bolsa (as outras são Sanepar, do Paraná e Sabesp, de São Paulo), ou seja, os governos venderam parte de suas ações mas mantêm o controle das empresas. Com o novo marco regulatório, caso os estados decidam vender 100% das ações das estatais, a decisão será permitida por lei.

Em novembro de 2019, o atual Governador de Minas, Romeu Zema, deu o pontapé inicial para facilitar a privatização de empresas como Copasa, Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais) e Codemig (Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais). O governador publicou o decreto 47.766 em 27 de novembro que trata da Política Estadual de Desestatização e cria o Conselho Mineiro de Desestatização (CMD), presidido pelo vice-governador com a participação de mais cinco secretários.

Do privado ao público

Na contramão de Minas Gerais e do Brasil, após a experiência com empresas privadas, muitas cidades do mundo retomaram o controle da prestação de serviços relacionados à água e à coleta de lixo, assumindo novamente a responsabilidade por oferecê-los à população. Entre as cidades que municipalizaram ou reestatizaram os sistemas estão Paris (França), Berlim (Alemanha), Budapeste (Hungria), Buenos Aires (Argentina) e La Paz (Bolívia).

Paris

Em 2008 a cidade decidiu não renovar seu contrato com as empresas francesas Suez e Veolia, consideradas as maiores multinacionais da água no mundo e que prestavam o serviço na capital francesa desde 1985. Auditorias realizadas nas empresas revelaram lucros excessivos e esquemas dúbios. Em uma campanha política, o presidente da Câmara prometeu devolver o serviço à gestão pública. Em 2010 entrou em operação a Eau de Paris, a nova empresa pública responsável pela gestão da água na cidade. O resultado foi a redução em 8% das tarifas de água.

Berlim

Em 1999, a privatização da água na cidade alemã foi considerada um sucesso. Foram vendidas 49,9% das ações da empresa, totalizando 1,7 bilhão de euros, compradas pelo consórcio formado entre a RWE Aqua Ltd e a francesa Veolia. Mas esse sucesso não foi o mesmo com a população. Com os anos, as empresas descumpriram várias das metas listadas no contrato, reduziram os investimentos, descuidaram da qualidade do serviço e  aumentaram a conta em 35% em menos de cinco anos. A situação se tornou tão crítica que nas eleições municipais de setembro de 2011 a remunicipalização do serviço fez parte do programa de três dos quatro principais partidos políticos. Em 2012, por 1,3 bilhão de euros, Berlim comprou de volta as ações das companhias, valor este que será repassado nas contas de água dos seus clientes por 30 anos, uma consequência da privatização anterior.

Buenos Aires

Em 1993, o governo de Buenos Aires concedeu, por 30 anos, o serviço à empresa francesa Suez. Os lucros da empresa subiram e, ainda sim, ela não foi capaz de cumprir todas as metas do contrato estabelecido com o governo argentino. Em dez anos de serviço prestado, o valor da fatura para a população subiu em 88%. Com a crise econômica no país em 2002, a Suez processou a Argentina por suas perdas financeiras. Após tentativas de negociações, a presidência do Argentina à epoca decidiu criar uma nova empresa pública de água, investindo milhões com objetivo de universalizar o acesso ao serviço.

O que está por trás da falta de saneamento básico? Risco à saúde Proliferação de doenças causadas pela má qualidade da água, dejetos, ambientes poluídos e destino inadequado do lixo. Poluição das águas O esgoto não tratado vai direto para os rios, o que impacta diretamente na vida aquática. Além do esgoto, os resíduos industriais jogados clandestinamente nos cursos d’água sem o tratamento adequado também impactam e poluem a água. Enchentes A limpeza urbana e o destino correto ao resíduos sólidos estão no pacote do saneamento básico. Sem a coleta adequada, o volume de lixos pelas ruas provoca enchentes e entope boeiros, causando transtorno para aqueles que vivem nas cidades, principalmente nos grandes centros. Lixões Ainda que o lixo seja recolhido pelo serviço público, os lixões são grandes depósitos à céu aberto que contaminam os solos e espalham doenças. Desigualdade social Quanto mais pobre, menos saneamento básico. Ocupações irregulares se transformam em áreas de risco à proliferação de doenças com esgotos correndo à céu aberto, lixos jogados em locais inapropriados e esgoto caindo direto na água em ligações ilegais.

 

Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Michelle Parron
Fotos: Shutterstock, Bianca Aun, Ohana Padilha e Léo Boi