A vida dos peixes anuncia o nosso destino e o dos nossos rios
Nadar no rio era a brincadeira favorita da Vilma Martins na infância. Em Barra do Guaicuí, no Norte de Minas Gerais, lugar onde o Rio das Velhas encontra o Velho Chico, a filha da dona Izaura acompanhava sua mãe na lavagem de roupa às margens do Velhas. Para ela, entrar no rio era o momento mais feliz da semana. “Era aquele rio maravilhoso. A gente lavava roupa e tomava banho sem medo, porque não tinha poluição”, conta.
A relação da Vilma com a água sempre foi forte. Fez ela até largar o ofício da costura e mudar de profissão. Ao lado do seu marido Hélio, Vilma é pescadora há mais de 20 anos, profissão que a levou à presidência da Colônia de Pescadores e Aquicultores Z34. O grupo reúne mais de 140 profissionais da região, parte deles mulheres e “bem guerreiras”, diz ela. Durante a nossa conversa, Vilma estava bem contente. A pesca do dia anterior no Rio São Francisco tinha sido muito boa para os pescadores, porque houve uma “ribanceira de dourado”, como costumam dizer. “Todo peixe é ótimo de pescar, mas o dourado e o surubim dão mais dinheiro para o pescador”. Além de valer mais, a presença do dourado é sinal de que a água tem boa qualidade.
Pescadora de Barra do Guiacuí, na foz do Velhas, Vilma Martins vê de perto os sinais – positivos e negativos – que o rio mostra
Sintomas de saúde e de degradação
Mas nem sempre é dia de festa e fartura na água. O mesmo rio que Vilma, seu marido e os outros pescadores tiram o peixe para comerem e sustentarem suas famílias, também é o lugar de presenciar momentos de angústia. De uns anos para cá, eles começaram a notar que o rio e os peixes estavam diferentes. “Teve uma vez que o Rio das Velhas ficou todo verdinho, parecia uma mata. Nessa época morreu muito peixe. Eles ficavam desesperados tentando sobreviver, colocavam o biquinho para fora para respirar, mas acabavam morrendo. A gente entra em desespero quando isso acontece, porque o peixe é a base da sobrevivência na região. É quando a gente percebe que o rio está doente, porque se estivesse sadio não ia morrer peixe”.
A pescadora está certa ao falar que a morte do peixe mostra como está a saúde do Velhas. Em 2017, a proliferação de aguapés, aquele “verdinho” que a Vilma observou no rio, se proliferou no Médio e Baixo Rio das Velhas. A planta, que indica a presença de poluição no rio, também disputa oxigênio com os peixes. Como resultado, toneladas de peixes apareceram mortos na região.
Para acompanhar a saúde do rio, uma turma de profissionais analisa o seu estado de conservação observando a presença ou ausência de alguns seres vivos. Essa análise é chamada de biomonitoramento, e o dourado é considerado um importante bioindicador. “O peixe está no topo da cadeia alimentar, é visto com facilidade e pode ser controlado pela população. Por se locomover com agilidade, sua ausência em certos trechos indica desequilíbrios ambientais graves”, explica Carlos Bernardo Mascarenhas Alves, biólogo e coordenador de campo do projeto “Biomonitoramento da Ictiofauna e Monitoramento Ambiental Participativo na Bacia do Rio das Velhas”. O projeto é viabilizado pelo CBH Rio das Velhas com a verba da cobrança pelo uso da água.
Rio das Velhas em Barra do Guaicuí, próximo à confluência com o Velho Chico.
“O destino do peixe anuncia o nosso”
A noção de que o peixe sinaliza o nosso destino há anos está no âmago do Projeto Manuelzão, que atua com ensino, pesquisa e mobilização para preservação do Rio das Velhas. Esse “destino” é impactado por um conjunto de fatores que degradam a água da bacia. Vai desde a poluição direta da água com esgoto doméstico e industrial não tratados, passando pelo desmatamento, atividades minerárias, expansão imobiliária, o uso indiscriminado de agrotóxicos e defensivos agrícolas, até a disposição inadequada do lixo. Todas essas práticas humanas prejudicam a vida do rio e interferem diretamente na saúde dos peixes.
Desde que o biomonitoramento foi iniciado pelo Projeto Manuelzão, em 1999, em alguns pontos da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), foi vista uma melhora na variação e no volume de peixes. Isso se deve, por exemplo, ao aumento do tratamento do esgoto com a instalação das Estações de Tratamento de Esgoto Arrudas (ETE Arrudas), entre 2001 e 2002, e da ETE Onça. O resultado, segundo o biólogo Carlos Mascarenhas, pôde ser visto nos pontos monitorados a jusante da RMBH, que apresentaram variações mais significativas, não só em número como também na sua composição de espécies.
Carlos Bernardo Mascarenhas Alves coordena projeto de Biomonitoramento da Ictiofauna na bacia do Rio das Velhas.
Comunidade de olho no rio
Monitorar a bacia do Rio das Velhas da nascente à foz é um trabalho que exige união. Em 2000, foi criado o Monitoramento Ambiental Participativo (MAP). “Ao longo dos 20 anos de atividades, o MAP envolveu a população, estreitou as relações com os ribeirinhos e transmitiu as informações das pesquisas geradas nos programas de biomonitoramento na bacia (peixes, água e invertebrados) para professores, estudantes e membros do CBH Rio das Velhas e seus Subcomitês”, conta Juliana Silva França, bióloga e colaboradora do MAP.
Amigos do Rio: ribeirinhos como Odilon de Lima comunicam eventos de mortandade, coletam dados e apontam ocorrências no curso d’água. Colaboradora do MAP, Juliana França destaca transmissão de conhecimentos a professores, estudantes e membros do CBH e Subcomitês.
O empresário Odilon de Lima, morador de Itabirito e proprietário de uma fazenda cortada pelo Rio das Velhas, conheceu o Projeto Manuelzão através de um jornal. Ele entrou em contato com o projeto para denunciar a queima de Mata Atlântica na região. Desde pequeno, Odilon aprendeu com seu pai a zelar pela natureza, valores que também foram repassados por ele para a futura geração da família. “Nossos filhos foram educados, por exemplo, a não jogar papel no chão, a cuidar dos animais, das matas ciliares e não matar cobras”, conta.
Além de ser conselheiro do Subcomitê Rio Itabirito, ele é um Amigo do Rio, primeira atividade implantada pelo Monitoramento Ambiental Participativo. O Programa Amigos do Rio é uma ação que envolve ribeirinhos distribuídos da nascente à foz do Rio das Velhas. São eles que comunicam eventos de mortandade de peixe, coletam dados sobre a água e apontam ocorrências no curso do rio. “Os Amigos do Rio informam tanto aspectos negativos, como as mudanças bruscas na coluna d’água e consequente mortandade de peixes, como aspectos positivos, por exemplo o retorno de algumas espécies de peixes para regiões em que não estavam sendo avistadas”, explica a bióloga Juliana.
Outra atividade do MAP é o Biomonitoramento pelas Escolas. A ação envolve professores e estudantes da educação básica em escolas públicas estaduais e municipais na coleta de dados sobre a situação do entorno do rio, a qualidade física e química da água e a presença de invertebrados bioindicadores.
Piraju: um novo aliado na preservação da bacia
Mesmo com tantos olhares, a qualidade da água do Rio das Velhas está longe do ideal, seja para a pesca ou para o banho de rio que a Vilma gostaria de voltar a tomar em Barra do Guaicuí. “O Velhas, que é um afluente super importante para o Rio São Francisco, está doente. E se está doente, o São Francisco também pode adoecer”, diz a pescadora. Pelo Velhas estar poluído e por ser um berçário para os peixes, ali na região a pesca é realizada somente no Velho Chico.
Para melhorar a qualidade da água é preciso mais. Enquanto a luta pela preservação e revitalização continua, em 2020 o CBH Rio das Velhas passou a ter um novo representante. O peixe dourado (Salminus franciscanus) se tornou um símbolo na marca do Comitê. “A ideia de ter um símbolo para a bacia do Rio das Velhas é reforçar a existência do rio de forma pedagógica. O dourado, nosso salmão brasileiro, tem uma particularidade: ele é um bioindicador por excelência, porque ele só fica em águas limpas. Como todo bioindicador, ele é a presença da vida no rio indicando ‘eu estou aqui, o rio está vivo’”, explica José de Castro Procópio, que integra a Câmara Técnica de Educação, Mobilização e Comunicação (CTECOM) do CBH Rio das Velhas.
Edinilson dos Santos, presidente da CTECOM, vê o mascote como oportunidade para estreitar laços com a comunidade.
Para dar um nome a esse representante da bacia, considerado um peixe nobre, lutador e bravio pela população ribeirinha, em junho deste ano o Comitê realizou uma votação popular nas redes sociais. Piraju foi o nome escolhido pele público, que significa peixe amarelo/dourado em tupi. Segundo Edinilson dos Santos, presidente da CTECOM, mais do que reforçar a marca, despertar o lado lúdico nas crianças, o objetivo de criar um símbolo para a bacia é atingir uma população que convive diariamente com o rio. “Ter um mascote é dar um caráter mais pessoal. O peixe, que antes era uma espécie qualquer, agora é o dourado, um símbolo do Rio das Velhas. Mais do que isso, ele passa a ser uma personagem que integra uma série de materiais de comunicação, promovendo um estreitamento do Comitê com a comunidade, como são os mascotes dos times de futebol”, explica Edinilson.
Para a Vilma, que sabe da importância do dourado para os pescadores, a escolha da espécie para representar a bacia foi uma ótima ideia. “Ele é perfeito, muito bonito, considerado o rei”.
Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Michelle Parron