Revista Velhas nº14: Santa Tereza: contornado por água “braba” e cheio de histórias

24/11/2021 - 17:56

Histórias e memórias do Ribeirão Arrudas em um dos bairros mais tradicionais de Belo Horizonte


Um reduto da boemia. Famoso por brotar de suas ruas o Clube da Esquina e a banda Sepultura, o nome do bairro Santa Tereza foi levado para longe, além-mar, graças a essa turma de artistas. Mas o “Santê”, além da importância para a música, guarda uma porção de histórias. Com arquitetura de interior e atmosfera de interior, a infância por lá não poderia ser diferente: é como morar em uma cidade do interior. Os moradores nascidos, criados e que ainda permanecem no bairro, carregam na memória o privilégio de terem vivido com água limpa, bananeiras, ruas sem asfalto e de terem por perto um ribeirão bravo, mesmo morando em uma capital. Esse ribeirão é o Arrudas, que anos atrás, quando enchia muito, arrastava até menino.

Quem conta algumas dessas histórias da braveza do Arrudas é o Mauro Rios, que chegou ao Santa Tereza na década de 1940, com um ano de vida. Naquela época, para atravessar o ribeirão era preciso pegar carona de barco. Se não era uma longa caminhada até a travessia mais próxima. No início dos anos 1960, a força do Arrudas chamava a atenção de Mauro. “Era violento. Você jogava uma pedra e ‘tchum’, ela sumia. Quando chovia, inundava e a gente via passar geladeira, passar de tudo.”

Quem sentiu a força do ribeirão Arrudas na pele foi João Geraldo Almeida, que chegou em Belo Horizonte em 1958, aos 19 anos de idade. Analfabeto, sem emprego, sem família e sem casa para morar, foi debaixo de um pé de bananeira na favela dos Coqueiros, às margens do Arrudas, que ele fez sua morada. “No tempo que eu morei na rua ao lado do Arrudas participei de todas as desordens que esse ribeirão trazia para a vida das pessoas que viviam em sua margem. Quando enchia, o ribeirão levava tudo que estava pela frente. Na realidade, ali não existia um córrego, mas um pântano cheio de entulho, de esgoto in natura, de tudo de ruim que você possa pensar. Era um cheiro terrível”, relembra João.

Ribeirão Arrudas contorna o bairro de Santa Tereza (à esquerda) em registro de 1986.

Ribeirão Arrudas contorna o bairro de Santa Tereza (à esquerda) em registro de 1986. Foto: Acervo Sudecap

João “Petrobrás”, como gosta de ser chamado, viu sua vida mudar em 1962 quando saiu das margens do rio para morar em Santa Tereza, bairro que o acolheu e lhe ofereceu um primeiro teto. Foi ali também que ele conseguiu se alfabetizar e conquistar o primeiro emprego ao passar em um concurso.
A experiência de ter que lidar com o temperamento de um ribeirão furioso transformou João em um defensor das águas. Desde 1993 ele luta pelo córrego Navio Baleia, afluente do Arrudas, na companhia de outros moradores do bairro Pompéia que fazem parte da Associação dos Membros e Amigos do bairro Pompéia (AMAP). Tudo que João quer é ver o córrego saneado. Uma parte desse sonho ele já realizou ao ajudar a conquistar uma obra que saneou 1.300 metros do Navio Baleia e reassentou 80 famílias que moravam em suas margens.

Seu João teve sua vida marcada pela juventude difícil às margens do Arrudas, Mauro já traz memórias de uma infância feliz pelo bairro Santa Tereza. “Quando criança a gente caçava passarinho, encontrava umas onças pequenininhas, pintinho perdido no meio do mato. Era mato puro. A gente descia, pegava uma trilha que tinha um córrego onde hoje é a Avenida Mendes Sá e ia até o pico da montanha a pé”. A montanha que Mauro menciona é a Serra do Curral, paredão que fica bem em frente ao bairro.

Antigo Bar dos Pescadores vendia apetrechos de pescaria e era ponto de encontro de quem ia pescar no Arrudas. “Seu” Orlando é hoje o proprietário do estabelecimento que até 1980 era conhecido como “Bar dos Pescadores”. Relação do bairro com o Arrudas e com o carnaval inspirou também o Bloco dos Pescadores.

Mesmo com essa braveza toda do Arrudas, tinha gente que nadava e tinha gente que descia o ribeirão para pescar. O lugar onde hoje é o conhecido “Bar do Orlando” era parada obrigatória dos pescadores. “Ali se vendia apetrechos de pescaria e era ponto de encontro de quem ia pescar no Arrudas. Até 1980 o nome do local era ‘Bar dos Pescadores’”, conta o psicólogo e educador Hernany Mendes, morador do Santa Tereza há 15 anos. O carinho do Hernany, cliente do bar, levou-o a fundar em 2012 o Bloco dos Pescadores, uma homenagem ao local que até hoje segue comandado pelo senhor Orlando. Antes da pandemia do coronavírus, o bloco se reunia ali toda semana para uma roda de samba.

Outro morador que é quase um patrimônio de Santa Tereza e chegou a nadar no ribeirão é o Lincoln Duarte Tertuliano. Senhor simpático, Lincoln nasceu no bairro e, há alguns anos, criou a Confraria São Gonçalo na garagem da sua casa, frequentada por Mauro e outros amigos. Um ponto de encontro semanal de senhoras e senhores do Santa Tereza para tocar, conversar e preparar almoços e jantares. “Aqui não é bar”, diz uma placa na parede. Cada um ali é responsável por levar a sua bebida e estar disposto a jogar muita conversa fora sentado na calçada. Entre amigos na Confraria, o morador relembra do tempo que nadou no Arrudas, que via os peixes e até o fundo do ribeirão, de tão limpa que a água era.

Lincoln Duarte nasceu em Santa Tereza, já nadou no Ribeirão Arrudas e, há alguns anos, criou a Confraria São Gonçalo na garagem de sua casa.

Pescar no Arrudas era uma prática noturna do pai do geógrafo Alessandro Borsagli, que passou sua infância frequentando o bairro por causa dos familiares. “Meu pai pescava bagre de noite e via os peixes subindo no córrego do Leitão. A água do Arrudas era cristalina. Para pescar, ele pegava o trem na Estação Central e ia para fora de Belo Horizonte. Nas paradas do trem só se via pescador entrando e amarrando as varas de pesca debaixo dos vagões.”

A enchente do Arrudas nos anos 1980 foi a primeira memória que o geógrafo tem do ribeirão. Ele se lembra que estava no bairro e começou a cair uma chuva forte. “As pontes foram embora e nós só conseguimos atravessar o Arrudas no bairro Padre Eustáquio para ir embora para casa, no bairro Santo Antônio. Me lembro de olhar o rio e ver os carros dentro da água.”

A força da água no canal do Arrudas pode ser explicada pela canalização dos seus afluentes, hoje submersos embaixo de ruas e avenidas da capital. Autor do livro “Rios Invisíveis da Metrópole Mineira”, Alessandro explica que, por tudo o que havia sido feito em quase 90 anos na bacia do Arrudas a montante do Santa Tereza, era inevitável uma intervenção como foi feita ali. “Era muita água chegando. A população, claro, não vai entender que foi um problema criado e potencializado pelo poder público. Ela não sabe como isso afeta o regime hídrico da bacia e das cidades a jusante, como Sabará e Santa Luzia. A canalização foi uma consequência de todos os erros cometidos no decorrer de décadas, com relação às intervenções na rede hidrográfica de Belo Horizonte, que obrigou o poder público a fazer um canal daquela largura e profundidade”.

Na região do Cardoso, Ribeirão Arrudas recebeu intervenções de retificação ainda na década de 1960.

Além da pesca e das enchentes causadas pela cheia do Arrudas, José Lima, ex-morador do bairro e assíduo frequentador da Confraria São Gonçalo, recorda quando o Santa Tereza era mais verde. “Lembro quando aqui o bairro tinha poucas casas e o resto era mato. Toda casa tinha uma mangueira, uma goiabeira. Agora, o camarada aqui vai fazer garagem e corta uma árvore”, conta.

Diferente do Mauro que, orgulhoso, conta ter plantado três árvores no fundo da sua casa e que na porta colocou uma muda de ipê branco que trouxe de Bonito, no Mato Grosso do Sul.

A turma da Confraria não sabia até então, mas tem gente firme para ver o Santa Tereza virar “floresta” de novo. Em 2011, durante as caminhadas que sempre gostou de fazer pelas ruas do bairro, Luciana Vieira começou a se incomodar com a aridez de alguns quarteirões. “Eu sou nascida e criada neste bairro e comecei a notar que havia uma diminuição considerável do número de árvores”, conta.

Foi então que Luciana encarou o desafio de mapear todas as ruas do bairro, olhando trechos onde havia árvores plantadas, tocos remanescentes de supressões e áreas livres para plantio. Em 2019, a jornalista Eliza Peixoto, moradora do bairro que mantém o portal Santa Tereza Tem, contou a Luciana que várias pessoas da associação de moradores queriam fazer a mesma coisa que ela, mas não sabiam por onde começar. Foi então que o projeto Arboriza BH tomou corpo e, no mesmo ano, o mapeamento iniciado por Luciana foi finalizado. Era hora, então, de sensibilizar a população.

A Organização Mundial da Saúde preconiza um mínimo de uma árvore por habitante. Se Santa Tereza tem 15 mil habitantes, nós teríamos que ter uma média de 15 mil árvores no mínimo. Neste levantamento, à época, em 2019, o bairro tinha 2.300 árvores nas ruas.
Ou seja, um déficit absurdo”
,
conta Luciana.

Hoje o projeto conta com mais de 80 voluntários e soma o plantio de 104 árvores que ganharam as ruas do Santa Tereza desde setembro de 2020 até agora. A meta é atingir três mil árvores plantadas.

O Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas tem participação nesse trabalho. Em outubro do ano passado, o Comitê fez a doação de 150 mudas de quaresmeiras do viveiro Langsdorff para o projeto. “Foi uma festa esse recebimento porque foi a primeira oportunidade de a gente inserir crianças no projeto. O momento do transplantar as mudas aconteceu em uma pracinha aqui no bairro com as crianças colocando a mão na terra. Inserir idosos e crianças nesse trabalho é de uma riqueza sem tamanho.”

Por enquanto as mudas estão sob os cuidados dos voluntários do projeto até atingirem 1,80 metros. Quando isso acontecer, elas serão replantadas pelas ruas do bairro Santa Tereza. Para quem mora por lá ou em qualquer outro local de Belo Horizonte e queira ajudar a reflorestar o “Santê” ou seu próprio bairro, é só encontrar em contato com a Luciana do Arboriza BH pela página no Instagram do Arboriza BH.

CBH Rio das Velhas tem apoiado o projeto de arborização no bairro com a doação de mudas de quaresmeiras do Viveiro Langsdorff.


Veja mais fotos a região e dos entrevistados:


Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Michelle Parron
Fotos: Crédito Carlos Griffo, Michelle Parron, acervo Sudecap e APCBH/ASCOM