De que forma o racismo é o fiel da balança no que diz respeito às causas ambientais?
Quem teve a oportunidade de conviver com suas avós vivenciou a mística de se relacionar com alguém que, ao mesmo tempo, tem tanto a oferecer quanto a solicitar. De nossa parte, somos educados a cuidar bem de nossos parentes, especialmente os mais frágeis. Isso está na construção da nossa sociedade: cuidar de nossos antecessores da mesma maneira com que gostaríamos de ser cuidados. Porém, não lidamos da mesma forma com a terra e o território onde vivemos. Essa postura é fruto do modelo de sociedade em que nascemos, que enxerga o meio ambiente como uma mera fonte de “recursos” para a construção de uma “civilização avançada”.
O Rio das Velhas é o maior afluente do Velho Chico e abriga uma grande diversidade da fauna e da flora tanto da Mata Atlântica quanto do Cerrado. Toda essa diversidade ambiental, assim como a de povos que moram no entorno dela, sofrem com as mudanças climáticas que tanto sentimos ultimamente. No entanto, devido ao distanciamento que a maior parte de nós guarda com o ambiente em que vivemos, parece que não temos tanto respeito quanto teríamos com nossos ancestrais.
Velhas discussões, novas reflexões
Reverendo Benjamin Chavis durante protesto contra depósito de lixo tóxico em Warren County, EUA, 1983. O reverendo, ao centro, cunhou o termo “racismo ambiental” a partir de suas investigações e pesquisas entre a relação de resíduos tóxicos e a população negra norte-americana.
A 26ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre o Clima (COP26), realizada em novembro de 2021, trouxe novamente à discussão pública a questão do racismo ambiental. Marcado pela presença de povos indígenas e quilombolas brasileiros, o encontro deixou evidente que a escolha que fizemos de explorar este planeta sem pensar no amanhã atinge a todos os seres humanos, mas não igualmente.
O termo “racismo ambiental” foi elaborado por Benjamin Franklin Chavis Jr., que foi assistente de Martin Luther King Jr. em sua juventude. Homem negro norte-americano, ele percebeu que resíduos tóxicos decorrentes da industrialização e da exploração do meio ambiente afetavam mais as populações negras dos Estados Unidos do que as pessoas brancas. Isso acontece especialmente pelo fato de que populações mais discriminadas tendem a ocupar territórios mais degradados devido às diferentes violências sofridas na vigente estrutura social – o que traz também a interdição, social ou econômica, do acesso aos territórios originalmente ocupados.
Terra mãe ou terra minha?
Minas Gerais e, em especial, a Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas, abrigou diversos povos que foram empurrados para o anonimato e se esconderam durante séculos no intuito de sobreviverem. Krenak, Maxacali, Puris, Kaxixós, entre outros, viviam nesta região antes da chegada dos primeiros portugueses e foram, além de perseguidos, condenados a abandonar suas línguas, crenças, territórios, enfim, sua cultura, em razão da colonização. Por esse motivo, é uma tarefa difícil mapear os indígenas que ainda vivem na bacia. É o que nos conta Danilo Borum-Kren, indígena que mora em Santo Antônio do Leite, distrito de Ouro Preto.
“Nos documentos oficiais, fomos chamados de Aimorés, Cataguases, Batatás entre outros nomes, porque ninguém se importava com como nós nos denominávamos, mas sim como eles nos enxergavam: seja como gente brava (aimorés), por conta de nossa cultura guerreira; como “os que não falam nossa língua”, porque fazemos parte do grupo macro-jê e não falávamos tupi; ou “gente dura” (batatás). Então, recentemente, escolhemos descrever a nossa etnia como Borum-Kren”, conta.
Danilo Borum-Kren destaca como a colonização empurrou para o anonimato os povos originários do Alto Rio das Velhas.
“Somos um povo do Alto Rio das Velhas, parente dos Krenak e dos Aranãs, do grupo dos Botocudos de Minas, que nunca saiu deste território. Pelo fato de o grupo dos Botocudos ter passado por uma guerra de extermínio por não aceitarem a invasão europeia à época, nosso povo se escondeu, especialmente na região de Ouro Preto, em alguns distritos com mata fechada, lutando para sobreviver. Essa matança começou em 1765 e durou até meados dos anos 1980, durante a ditadura, e, por isso, fomos obrigados a esconder nossa cultura.”
Nesse sentido, é também difícil medir objetivamente os reais impactos da exploração do meio ambiente nos povos originários da região. Mas ele narra quais são os desafios para quem se relaciona com a terra como quem cuida de um parente idoso. “Temos sofrido muito com a mineração e a especulação imobiliária. Hoje nosso sonho é ter uma terra demarcada com um local preservado, para conter o avanço da exploração, pois aquelas terras de onde nós tirávamos nosso alimento e nossas plantas medicinais estão loteadas, e não podemos mais ir lá. Queremos ter acesso aos rios, principalmente o Rio das Velhas, que, para nós, é um rio sagrado. As montanhas, a terra, o rio, são como um grande organismo do qual fazemos parte. Para nós, o rio não é só um curso d’água, é um ancestral. O nome completo do Rio das Velhas é ‘Uaimií Minhag Makiãn’, o que significa o rio das ancestrais. Como as pessoas brancas veem a natureza apenas como um recurso a ser explorado, elas loteiam as terras e impedem o acesso que tínhamos ao que precisamos para viver, impedindo, inclusive, os animais de transitarem livremente.”
Ouro Preto, próximo às nascentes do Rio das Velhas
Mamãe Oxum
A bacia do Velhas também foi local de resistência para povos compulsoriamente trazidos de longe, como é o caso dos povos da África, que não estavam nessas terras originalmente, mas que ouviram os mesmos cantos das águas de lá, aqui. Também impedidos de viverem de acordo com suas cosmogonias, adotaram, neste território, o Rio das Velhas como força de resistência e renovação. Oxum, deitada à beira do rio, lhes ensinou a cuidar de quem lhes ofertava tudo aquilo que era necessário para viver como seus filhos.
A construção de Belo Horizonte não ocorreu sem violências. A população que aqui vivia, de maioria negra, antes que este território fosse oficializado como capital de Minas Gerais, teve suas terras desapropriadas em nome da modernidade de influência francesa e foi afastada do local que hoje conhecemos como o centro da cidade. O território onde se encontra o Quilombo de Mangueiras, no entanto, desde antes do início da construção da capital, já pertencia ao casal de lavradores Cassiano José de Azevedo e Vicência Vieira de Lima. Mesmo longe do centro da cidade, a expansão urbana não demorou a chegar.
Em 2017, como ação do projeto ‘Valorização de Nascentes Urbanas da Bacia do Ribeirão Onça’, o CBH Rio das Velhas revitalizou olho d’água no Quilombo Mangueiras.
Ione Maria de Oliveira, liderança do quilombo e aprendiz de matriarcas, relata que, entre outras coisas, a duplicação da MG-020 desapropriou famílias, cortou espécies de mangueiras e alterou o território. “Depois que Vicência faleceu, o quilombo foi dividido e as famílias que aqui moravam produziam tudo de forma comunitária, num trabalho de partilha. Mas o Estado desapropriou algumas famílias para a construção da MG-020, e, nessa ação, perdemos também várias espécies de mangueiras para a duplicação da estrada.”
Com o tempo, também a água do córrego Lajinha, afluente do Ribeirão Onça, se viu ameaçada. “Sou semente da minha matriarca, que virou ancestral aqui no quilombo, e ela me ensinou que, para a matriz africana, tudo começa na água, tudo começa pelo banho. Os orixás nascem na água. Mas as águas hoje estão contaminadas com coliformes fecais devido a uma ocupação do lado esquerdo do quilombo. E nossos clamores não são ouvidos. Quando dizemos que a água está contaminada, há sempre alguém que desmente, mesmo que nós apresentemos os laudos, mesmo que nossas crianças adoeçam no contato com o curso d’água. O quilombo é tombado como patrimônio dessa cidade, e a fauna e a flora estão 92% íntegras. Temos lutado com outros quatro quilombos urbanos pela construção do plano urbanístico das comunidades, até mesmo para proteção dessas áreas”, conta Ione. “Quando começa o período de chuva, rezamos sempre para que Ossanha, que é o dono da mata e das folhas, ajude a reflorestar o território para nos proteger.”
Ione Maria de Oliveira, liderança do Quilombo Mangueiras, em BH, denuncia contaminação do córrego Lajinha por ocupação vizinha.
A vovó de hoje é a mamãe de ontem
Este território não nasceu ontem e não se reduz a números. O CBH Rio das Velhas sabe bem que as avós merecem o máximo respeito, assim como seus descendentes. Filho de Uaimií ou de Oxum, o Comitê entende o rio como muito mais do que água para beber, mas como água para viver. Seja em Belo Horizonte ou em Várzea da Palma, os filhos, netos e bisnetos da Velha Mãe buscam equidade. E isso fará bem a todos, a mim, a você e a quem, deitado no leito do rio, se levanta para defender seu bem mais precioso: sua vida.
Lideranças do Mangueiras e de outros quatro quilombos lutam pela construção de plano urbanístico das comunidades.
Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Leonardo Ramos
Fotos: Bianca Aun, Ohana Padilha, Ricky Stilley
Infográfico: Clermont Cintra