Amarantina: no meio do caminho tem uma pedreira

07/08/2023 - 17:45

Danos ambientais, como erosão e assoreamento de cursos d’água, supressão de Mata Atlântica, taludes sem segurança, poluição do ar e sonora, trânsito intenso de carretas e caminhões desde a madrugada, explosões com danos e abalos às moradias: tem sido vasto o rosário de penas desfiado por moradores do distrito ouro-pretano de Amarantina, às margens da BR-356.


A atividade que geraria tantos prejuízos é a extração de gnaisse, rocha metamórfica de onde vem a brita largamente empregada na construção civil, levada a cabo pela empresa Pedreira Irmãos Machado, que iniciou a exploração mineral na região nos anos de 1970.

A produção manual cedeu lugar à mecanização e ao uso intensivo de explosivos, e cresceu muito desde então. O grupo, que hoje abarca também a Transportadora Machado Júnior e a Bemil, foi adquirindo terras que antes arrendava, numa época em que os preços ainda eram muito baixos.

Para defender os direitos da comunidade, foi criada a Frente Popular em Defesa de Amarantina. Denizete dos Santos Silva, professora da Rede Pública Estadual, e Fellipe Magé Toledo, profissional de pintura residencial, ambos naturais de Amarantina, integram o coletivo. “Quando a empresa começou a usar dinamite, teve caso de cair pedra nos telhados, até dentro de casa, com risco de morte”, conta Toledo, que protesta: “Quando iam reclamar, ouviam um ‘vende sua casa’”. Ou um ainda mais tétrico, conta Fellipe: “Devia ter caído sobre a cabeça de um, que assim vocês saem mais rápido. A gente não importa de pagar o caixão”.

A primeira vítima fatal, porém, estava dentro dos portões da companhia. Em dezembro passado, um acidente com explosivos ceifou a vida de um trabalhador da Pedreira, fato investigado pelo Ministério do Trabalho e Emprego, cujo laudo concluiu que a empresa, autuada “por diversos erros”, “ignorou riscos de explosão”.

Jogo duro

Segundo Fellipe, a Pedreira instalou-se entre áreas banhadas pelo Córrego do Prata, de um lado, e pelo Rio Maracujá, de outro, onde havia “muitas nascentes e várias famílias que usavam essas águas”. Muitas foram se mudando para a área central. “Na Rua Ponte de Pedra tinha vários agricultores, ficaram minha sogra e uns poucos”, exemplifica.

O local da atual gleba da Irmãos Machado era terra da família de sua esposa, Patrícia, que ali habitava pelo menos desde 1940. As nascentes da Rua Ponte de Pedra foram “soterradas ou canalizadas nos anos 1980”. Na região da Rua do Barreiro, Denizete diz ter “imagens de caminhões despejando estéril” sobre o leito.



Informações constantes da Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público Estadual (MP), detalhada adiante, dão conta de que “não se observou, nos trabalhos de campo, a presença de canaletas e escadas d’água para drenagem superficial, nem sequer de uma bacia para captação de sólidos carreados de forma a não assorear o córrego da Prata. Tampouco foi relatado e não se observou no campo sistema de drenagem de fundo na pilha”.

Em outra frente, Denizete e Fellipe denunciam, vinha a pressão permanente da Pedreira sobre quem estava na luta. Foram processadas, além de Denizete, “Dona Marlene Gomes da Silva, Viviane França e Patrícia Gomes”. A empresa chegou a instaurar processo, afirmam, “contra Dona Marlene”, alegando que sua horta de subsistência ocupava Área de Preservação Permanente (APP). O terreno pertencia à família havia cinco gerações. “Minha sogra até hoje toma remédio”, lamenta-se o pintor. O inquérito foi arquivado pelo MP em 2022.

Servidão minerária

Quatro anos antes, em novembro de 2018, a empresa apresentava “Projeto Técnico de Área de Servidão” à Agência Nacional de Mineração (ANM), para ampliação do acesso principal à Pedreira. O instrumento, baseado no Código de Mineração de 1967, confere às mineradoras o direito de utilizar áreas dentro ou fora do polígono original para a instalação das estruturas necessárias ao desenvolvimento dos trabalhos de pesquisa e lavra.

No caso da Irmãos Machado, o polígono do projeto de servidão minerária alcança 33,96 hectares. No final de 2020, a empresa consegue da ANM a instituição da servidão, dando início a processo para desalojar moradores das ruas Francisco Coelho, Ponte de Pedra e do Barreiro.

Denizete informa que a Irmãos Machado já requerera a servidão em 2011, pedido então recusado pela ANM. Novo projeto de 2015 tampouco encontrou guarida na Agência. Somente a partir de 2018, com a “eleição de Bolsonaro, é que conseguiu”.

A comunidade, no entanto, “não sabia de nada, correu em segredo”, garante. Em 2020 “recebemos cartas individuais de um escritório de advocacia convocando para tratar de assunto de nosso interesse. Lá, ouvimos um ‘vende ou o moço do terno preto [juízes, promotores] é que vai resolver com vocês’”.

Fellipe confirma: “Era para comparecer em um local que era uma casa abandonada, só tinha o nome do escritório de advocacia. Ficamos com medo. Cada um num horário diferente. Fomos. O que está acontecendo? ‘Vocês estão na área de servidão. Ou negociam ou vão parar na Justiça, podem ser despejados’”. Tudo parecia “perdido naquele momento”. “Fomos contra a maré”, lembra Fellipe: “Vamos sair daqui com nada, mas vamos lutar”.

É aí que entra em cena a advogada e militante das causas socioambientais Rogéria Labanca, moradora de Cachoeira do Campo, maior distrito de Ouro Preto e situado entre áreas de atuação de duas empresas do grupo Irmãos Machado – a Pedreira, em Amarantina, e a Bemil, em Rodrigo Silva.

Com apoio do Instituto Guaicuy e seu coletivo de advogados populares, Labanca ajuízou ação cível para impedir o despejo iminente, previsto para 26 de dezembro de 2020, início da remoção que atingiria 52 famílias e 171 pessoas. “12 propriedades já tinham imissão de posse e dinheiro depositado”, diz a advogada.

Era plena pandemia, fórum fechado. Labanca recorda que, mesmo assim, conseguiu “marcar horário para tentar ver o nome das pessoas de Amarantina, e informaram que tinha várias ações em segredo de justiça. Todas deferidas com imissão de posse”.

“Pedi pra tirar o segredo e saber o teor”, continua, e “procuramos o Ministério Público (MP)”. Ao recurso de Rogéria contra o sigilo, a juíza Ana Paula Lobo de Freitas, da 2ª Vara Cível, despachou: “após sua prolação, este juízo tomou conhecimento da distribuição de diversas outras ações da mesma natureza nesta Vara e na 1ª Vara Cível desta Comarca (…). Não se trata de uma simples ação individual, mas de várias ações pulverizadas que, somadas, podem representar direito coletivamente atingido (…)”.

A decisão revogou as liminares proferidas e ainda determinou que a Pedreira informasse “o motivo pelo qual distribuiu os processos em segredo de justiça”, já que o caso não atendia “os requisitos do artigo 189 do Código do Processo Civil”, que versa sobre o tema.

Lobo de Freitas ainda anotou em sua sentença que “não houve informação (…) por parte autora [a mineradora] da necessidade de remoção dos possuidores dos imóveis” nem “se há famílias residindo”.

Como os direitos em questão “não se restringiriam à propriedade” e “haja vista o inegável interesse público e social”, o juízo demandou a “intervenção do Ministério Público”.

A posição da empresa

A reportagem fez duas tentativas de contato com a Pedreira Irmãos Machado pelo número de telefone que aparece na pesquisa Google (31 3553-5176) e ninguém atendeu. Um e-mail também foi enviado para contato@irmaosmachado.com.br na tarde de 21/7, ressaltando a importância de contar com o posicionamento da companhia nesta matéria, mas não obtivemos resposta.

Em outros fóruns, a mineradora sustenta adotar medidas de controle das explosões, do ruído e da qualidade do ar. Segundo sua representante Karoline Ferreira, as atividades estão 100% regulares, atestadas por fiscalização recente dos órgãos ambientais.

Em reunião do Subcomitê Nascentes do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas), realizada em março de 2020, a mesma representante informava que “não há registro de nascentes suprimidas pela empresa nem registro da existência das nascentes”.

Sobre ruídos e demais riscos advindos das detonações, garantia o emprego de “material que reduz o barulho e a vibração” e que a Pedreira “tem feito o racionamento da frequência das detonações”, além de fazer “o controle dos ruídos gerados, a partir de seis pontos de monitoramento”. Nesse encontro, assegurou que “os níveis de ruído estão de acordo com os níveis máximos permitidos”.

Quanto às reclamações da comunidade sobre o excesso de poeira, asseverava “que é feita aspersão de todas as vias” e o “monitoramento da qualidade do ar, como cumprimento da Condicionante Ambiental”.


Além da poeira nas ruas, trânsito excessivo de caminhões e rachaduras em residências também preocupam moradores


O Subcomitê Nascentes

Um dos 19 Subcomitês do CBH Rio das Velhas, organismos de capilaridade regional e participação que destacam o CBH, o SCBH Nascentes tratou pela primeira vez da questão em 4 de outubro de 2019. Em 1º de novembro, promoveu reunião no próprio distrito de Amarantina, seguida de visita de campo. Para a data, foram convidadas a Superintendência Regional de Meio Ambiente (SUPRAM) e a Irmãos Machado, que não compareceram.

No fim do ano seguinte, o Subcomitê Nascentes convida o MP para participar de reunião de 16 de dezembro na busca de soluções para o conflito. Em fevereiro de 2021, é enviado ofício ao MP solicitando formalmente o apoio na mediação entre a comunidade de Amarantina e a mineradora.

Ronald Guerra, o Roninho, um dos coordenadores do SCBH Nascentes, lembra: “Começamos a ter informações da comunidade, realizamos visita técnica pouco antes da pandemia, constatamos muitos problemas e trouxemos o MP para unir esforços. Tomamos todas as providências ao alcance do CBH Rio das Velhas”.

Roninho manifesta desagrado: “A servidão nunca foi exposta pela empresa. Ficamos surpresos por não haver um diálogo franco da Pedreira com o Subcomitê” – e preocupação: “Sempre nos opusemos ao processo de ocupação das áreas de inundação do Maracujá, em parte pela Pedreira, que compromete e diminui um território que pertence ao rio, à várzea”.

Daniel Caria, outro coordenador do Subcomitê, constata que o empreendimento “já impacta de maneira severa, com supressão de nascentes, ocupação da área de inundação, poluição difusa do transporte por carretas e caminhões, interferência na qualidade da água e impermeabilização do solo”. Sobre o aprofundamento da cava, diz: “Não sei se há exploração de água subterrânea, bombeamento da água do lençol subterrâneo, mas a própria formação da cava impacta a questão hídrica do território”.

Roninho evoca o Programa de Conservação e Produção de Água da Bacia do Rio Maracujá, execução pelo CBH Rio das Velhas: “a proposta é criar integração com as empresas para trabalhar em sinergia. Não adianta fazer num determinado ponto e deixar outros serem devastados”.

O “crescimento exponencial da Pedreira Irmãos Machado com grandes obras de descomissionamento de barragens em Antônio Pereira, Forquilhas e outras”, acrescenta, “amplia o Impacto do trânsito de carretas da mineração nas rodovias da região”.

Caria é testemunha e vítima: “Toda segunda vou para BH e no trevo de Acuruí a rodovia trava, simplesmente para. São os impactos socioeconômicos de uma única atividade sobre todas as demais”.

Ministério Público

Da intervenção do MP, arguida pela juíza, nasce, em junho do ano passado, a Ação Civil Pública (ACP) movida pela 4ª Promotoria de Justiça de Ouro Preto, de Defesa dos Direitos Humanos, que viu “litígio estrutural que ameaça a vida de parte da população de Amarantina e demais comunidades” entre a “servidão minerária e o direito à moradia e de viver em comunidade”. À causa foi atribuído o valor de R$ 20 milhões.

Na argumentação que embasa a ACP, lê-se com todas as letras: “O certo é que tais fatos demonstram o total descaso com o direito fundamental à moradia de centenas de famílias que se estabeleceram na área e, na maioria dos casos, utilizaram suas primeiras e últimas economias para levantar um barraco que, pequeno e pobre, é o digno lar que construíram”.

Para Thiago Afonso, titular da 4ª Promotoria, a ampliação do acesso às instalações da mineradora é uma “atividade acessória, não é área de mina. Dá para ser colocado em outros locais. São situações contornáveis, permitindo que a comunidade permaneça onde deseja”. Mas a “empresa não quis nem saber”. O promotor reconhece “o direito à servidão, mas destaca: “Existe um direito social que tem que ser ponderado”.

A ação do MP levou em consideração estudo comandado pelo professor doutor Hernani Mota de Lima, da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), que conduziu o trabalho a pedido dos atingidos de Amarantina.

Lima avalia que é perfeitamente possível se encontrar uma “alternativa locacional” para o novo acesso e que o “processo de concessão da área de servidão não atendeu a todos requisitos e exigências necessárias, dada a magnitude dos impactos causados”.
Uma perícia judicial haverá de esclarecer a viabilidade da “alternativa locacional”, diz Afonso: “O que temos é um estudo com o qual uma parte não concorda. Então a perícia terá que ser feita”.

O promotor arremata: “Hoje fala-se muito em licença social de operação, numa maior participação da população. Ainda não tem previsão legal, mas isso diminuiria muito o conflito. Trazer a comunidade mais para perto evitaria muitos problemas. Não são ouvidos como deveria ocorrer, poderiam ser mais empoderados. O que propomos com a ACP é isso, a questão social também tem que ser considerada”.

Daqui pra frente

Rogéria Labanca ainda informa que a mineradora entrou com Agravo de Instrumento, em segunda instância, questionando a competência da justiça estadual para julgar a questão, mas o recurso foi recusado: “Explicamos que eram ações coletivas e um desembargador entendeu que devia se manter a decisão da juíza”.

Labanca detalha o andar da carruagem: “O processo relativo à servidão está suspenso liminarmente porque conseguimos, na Justiça Federal, um mandado de segurança”.

No âmbito administrativo, os atingidos também apresentaram recurso à ANM desde julho 2021, amparado no mesmo laudo técnico da UFOP. “Mais de um ano se passou e nem foi apreciado pela ANM”, queixa-se a advogada. “Denunciamos servidores da Agência” por “procedimentos suspeitos”, “e isso está sendo apurado internamente”. “A ANM teria 30 dias para julgar nosso recurso, mas não cumpriu o prazo”, arremata.

Para Labanca, “pelo trabalho, por todo o levantamento, temos grande possibilidade de êxito face às muitas irregularidades do processo a cargo da autarquia, no administrativo, e também no campo judicial”.

Fellipe ensina: “Não é fácil resistir. Minha esposa toma remédio antidepressivo, emagreceu. É uma pressão insuportável, mas o maior legado é o pertencimento, na terra de minha família, de bisavós e tataravós, é a nossa história”.

Denizete espera “que a justiça seja feita o mais rápido possível, e a nosso favor, porque se for o contrário, pode rasgar a Constituição”. “Aprendi com meus pais e carrego comigo honestidade e respeito. São meu guia. Jamais vou deixar de lutar pelo que é certo e justo”.


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Paulo Barcala
*Fotos: Divulgação; Acervo pessoal; TantoExpresso