Revista Velhas nº 12: Tratamento paliativo

30/10/2020 - 11:08

Cidades mineiras atingidas pelas enchentes de janeiro e fevereiro tentam se recuperar antes do próximo período chuvoso


Se pararmos para pensar no caminho percorrido pela chuva, o normal seria a água cair, infiltrar no solo ou correr para os córregos e rios e, enfim, desaguar no mar. Acontece que o ciclo natural da chuva já não é mais assim nas áreas urbanas brasileiras. O que se vê a cada novo período chuvoso são fortes tempestades que despejam grande quantidade de água que alaga ruas, põe casas abaixo, carrega pontes e tudo mais o que encontra pela frente.

A urbanização transformou os rios em extensas calhas e inundou as cidades com tapetes de concreto e asfalto, impedindo a água de infiltrar no solo. Segundo a Defesa Civil de Minas Gerais, as chuvas causaram 55 mortes, 3.311 feridos e deixaram 91.720 pessoas desalojadas e desabrigadas no estado. A situação crítica fez 212 municípios mineiros decretarem situação de emergência e os prejuízos econômicos públicos e privados foram de quase R$ 600 milhões. Esses números são as consequências da ocupação desastrosa do solo que não respeita o curso natural dos rios.

Despreparadas, cidades sucumbiram às enchentes do último período chuvoso, com rastros de destruição e mortes. À direita, o Ribeirão Arrudas, em Belo Horizonte.

 

O atual modelo de desenvolvimento impõe à natureza adaptar-se à urbanização. O que deveria ser o contrário. Seja nas grandes obras que atendem a sociedade em nome do desenvolvimento econômico, seja na construção das casas, o comum é ver tratores derrubando o verde, abrindo buracos na terra e impermeabilizando o solo que servia como uma esponja para absorver a água. “Se seguirmos achando que desenvolvimento é desenvolvimento econômico a qualquer custo, o preço nós já estamos pagando. São as enchentes, os tornados, furacões, as desertificações de áreas, a poluição e todos os impactos da mudança climática e a degradação dos ambientes que a atividade humana tem gerado. Modelos de desenvolvimento que sejam, de fato, de desenvolvimento humano e social, que busquem conciliar com as diversas formas de vida, serão fundamentais se quisermos que haja condições de vida nesse planeta para as próximas gerações”, afirma o arquiteto e urbanista Roberto Andrés, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Repensar a infraestrutura das grandes cidades é o caminho proposto pelo também arquiteto Gustavo Penna. Reconhecido internacionalmente por dezenas de projetos de referência na arquitetura, ele propõe uma nova interpretação para o traçado de ruas e quarteirões em contraposição aos traçados da linearidade atual: no lugar de ruas retinhas, o ideal seria acompanhar os relevo e a topografia naturais do lugar.

“O desenho idealizado de ruas ortogonais de fazer com que esse plano encaixe na real topografia não é mais viável. A topografia é a base que preexiste, que está lá: desenho natural. Você não pode subjugar a força da natureza porque vai pagar um preço alto”, diz.

Modelos de desenvolvimento que sejam, de fato, de desenvolvimento humano e social, que busquem conciliar com as diversas formas de vida, serão fundamentais se quisermos que haja condições de vida nesse planeta para as próximas gerações” Roberto Andrés Professor da UFMG

Quarta cidade com maior número de habitantes em áreas de risco de deslizamentos, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Belo Horizonte viu a força da água não fazer distinção de região ou classe social. Seja nos bairros nobres, ao amontoar carros de luxo e invadir restaurantes no meio do jantar, seja na periferia, onde o estrago não poupou casas e vidas.

Foram 221 pontos afetados pelas fortes chuvas. Em vistorias realizadas pela cidade, a prefeitura incluiu mais 63 obras no planejamento de recuperação. No total são computadas 284 intervenções necessárias para que Belo Horizonte se recupere até o próximo período chuvoso. Desse número, 273 obras foram concluídas. Entre os serviços realizados estão o restabelecimento de pavimentação e recuperação de vias, contenções, recuperação de praças e canteiros, desobstrução de redes de drenagem, limpeza urbana, implantação de sarjeta, desobstrução e limpeza de bocas de lobo e de bacias. O custo desse trabalho abocanhou cerca de R$ 150 milhões, a maior parte do recurso saiu do orçamento do município.

Para o arquiteto e urbanista Roberto Andrés, o modo de ocupar a cidade de BH “foi um desastre”, principalmente na forma como os córregos e os rios foram tratados.

Escolhida para ser a capital de Minas Gerais por estar em uma área rica em cursos d’água como os Ribeirões Arrudas e Onça, com boa qualidade do ar e menos fria que Ouro Preto, Belo Horizonte misturava áreas montanhosas e planícies. Entretanto, o modo de ocupar a cidade “foi um desastre”, segundo o urbanista Roberto Andrés, principalmente na forma como os córregos e os rios foram tratados. “O desmatamento das cabeceiras fez com que faltasse água na cidade já nos primeiros anos. Os cursos d’água foram retificados e depois cobertos. O não tratamento do esgoto fez com que esse esgoto fosse jogado diretamente nos cursos d’água, poluindo rios e córregos”, conta.

O fato é que a cidade foi ficando cada vez mais cinza e concretada. “Quanto mais a cidade é canalizada, quanto mais o solo urbano é impermeabilizado, mais os problemas se agravam. Até hoje, infelizmente, a prefeitura de Belo Horizonte continua fazendo muitas obras que estão em um paradigma que não funciona mais”, conclui o urbanista.

O impacto provocado pelo desenvolvimento em Belo Horizonte não para por aí. Entre janeiro e fevereiro deste ano, o excesso de água que correu pelo Rio das Velhas chegou às cidades do interior como Raposos, na região metropolitana, cortada pelo Velhas. O município foi um dos mais atingidos pelas cheias do início do ano com mais de 3 mil pessoas desabrigadas.

O desenho idealizado de ruas ortogonais de fazer com que esse plano encaixe na real topografia não é mais viável. Temos é que criar cidades ecologicamente amigáveis, biodiversas, biointeligentes, bioeficientes e belas” Gustavo Penna Arquiteto

A prefeitura identificou 30 pontos afetados que estão em obras e tiveram o custo total de R$ 2 milhões. Cerca da metade das obras foi concluída seis meses após os temporais. Como em Belo Horizonte, em Raposos a maior parte do dinheiro gasto também veio do orçamento municipal. “De janeiro para cá nós fizemos uma força tarefa para a limpeza da cidade. Revitalizamos a rua Erval Silva, uma que é sempre afetada. Recuperamos todos os guarda-corpos das quatro pontes e uma passarela. Fizemos umas 15 contenções, porque além da inundação, nós temos o problema da topografia bem acidentada. Ainda estamos trabalhando na contenção dessas encostas que fazem divisa com as ruas. Estamos fazendo uma nova ponte porque a antiga, além de ter sofrido muito com as últimas chuvas, é estreita e está em um nível muito baixo, em torno de quatro metros e meio de distância do Rio das Velhas. A nova vai ter sete metros. A vantagem disso é que, quando tiver uma chuva igual a que teve, as pessoas tendem a não ficar ilhadas”, explica o secretário de obras de Raposos, Liliano Rezende, sobre algumas das intervenções realizadas na cidade.

O secretário acredita que a situação é muito complexa para assegurar que não haverá novas inundações quando as chuvas chegarem. Mesmo com as obras executadas pela prefeitura, para ele uma das medidas importantes para conter novas cheias é o desassoreamento do Rio das Velhas e do Ribeirão do Prata, que cortam a cidade. Com uma topografia que favorece enchentes e alagamentos, Jequitibá, cortada pelo Rio das Velhas, na região central de Minas, também foi alvo das chuvas que deixaram cerca de 60 famílias desabrigadas e desalojadas. Foram nove regiões que tiveram pontes, estradas, bueiros, muros, entre outros pontos afetados, segundo o levantamento da prefeitura, que conseguiu um repasse de cerca de R$ 300 mil do estado para a realização das obras.

Estragos das chuvas em Minas Gerais: 55 mortos 3.211 feridos/enfermos 12.189 desabrigados 79.531 desalojados 30.795 unidades habitacionais, instalações públicas prestadoras de serviço, de ensino e de uso comunitário e obras de infraestrutura pública afetadas R$ 129.782.526,03 de prejuízos econômicos públicos 212 municípios decretaram situação de emergência Dados referentes aos meses de janeiro e fevereiro de 2020 (fonte - S2ID: Sistema de Informações sobre Desastres

A situação do dique construído para impedir que a água do Rio das Velhas invada a cidade é o que mais preocupa o prefeito Humberto Reis. “O dique é a nossa defesa com relação ao Rio das Velhas nas enchentes. Quando o nível do rio supera os seis metros, a comporta do dique é fechada para evitar que a água entre na cidade, consequentemente nós não conseguimos escoar a água acumulada no município para fora e isso é um grande complicador que causa os alagamentos dentro da área urbana. O que nos preocupa agora são os problemas visualizados na estrutura do dique na última cheia. Devido ao tempo de exposição à pressão de água do Velhas, nosso maior receio é da estrutura estar saturada”, explica o prefeito.

Para verificar a estabilidade da estrutura do dique, o município contratou uma empresa especializada para avaliar o grau de comprometimento e está elaborando um projeto para levantar os custos da obra. “O município não tem condições de ampliar o dique ou fazer um novo com recurso próprio. Nós dependemos muito de recurso estadual ou federal. De toda maneira, vamos buscar, ou com recurso próprio ou federal, fazer uma estabilização de umas partes mais críticas do dique levantadas no estudo”, diz Reis. Outra ação estudada pelo município é o desassoreamento de uma lagoa de contenção que recebe a água da parte central da cidade. Uma forma de aumentar a capacidade de receber as águas das chuvas.

Para colaborar com os municípios, a Defesa Civil desenvolve um trabalho de orientação e capacitação técnica das defesas civis municipais com foco nas ações preventivas. Também orienta as cidades a realizarem algumas ações para evitar mais desastres nos próximos períodos chuvosos.

As obras para prevenção e recuperação dos estragos e a adoção das medidas preventivas orientadas pela Defesa Civil são indispensáveis para preparar os municípios para as chuvas de verão. Mas é preciso ir além do tratamento paliativo.

Mesmo com todo conhecimento que o ser humano adquiriu com a ciência, uma coisa é certa: ele não pode dominar a força dos rios submersos em ruas e avenidas, tampouco pode deter a força de uma enxurrada. “A ciência humana imaginava conseguir dominar totalmente a natureza. Demonstra-se hoje impotente. Nós temos visto que a própria pandemia deixou a ciência apavorada. Até hoje continuamos pandemicamente frágeis e perplexos. Temos é que criar cidades ecologicamente amigáveis, biodiversas, biointeligentes, bioeficientes e belas”, diz Gustavo Penna.

Orientações da Defesa Civil para que os municípios estejam mais preparados para enfrentar o período chuvoso: Elaboração do Mapeamento de Áreas de Risco: Aponta as áreas mais vulneráveis de serem afetadas por desastres servindo de base para todo trabalho preventivo Elaboração do Plano de Contingência: Documento que traz as respostas do município em caso de desastre ao apontar possíveis cenários e ações que devem ser realizadas em cada cenário, os mecanismos e parâmetros dos sistemas de monitoramento, os alerta e alarme, a catalogação dos recursos logísticos disponíveis, as instalações a serem utilizadas como abrigo temporário, entre outros pontos; Realização de capacitações e treinamentos comunitários: Com objetivo de levar informações para os moradores de áreas de risco das ações de autoproteção a serem adotadas pelas pessoas em caso de desastre; Realização de exercícios simulados: Para testar as ações programadas no Plano de Contingência.

Transformar as cidades em áreas mais permeáveis pode ser uma das saídas. Isso significa repensar o espaço público, construindo e preservando áreas verdes para absorção da água. Parques alagáveis, praças-piscina e telhados com jardim são algumas das alternativas adotadas por cidades na China, na Europa e nos Estados Unidos. Outra possibilidade é o uso de asfaltos porosos que absorvem a água da chuva e podem ajudar a reduzir enchentes, como o asfalto desenvolvido pela USP (Universidade de São Paulo) no projeto Pavimento Permeável Reservatório.

“Os pavimentos funcionam como se fossem areia da praia e permitem que as águas cheguem aos rios e córregos com a metade da velocidade”, explica o professor e coordenador da pesquisa, José Rodolfo Scarati Martins.

A mudança também precisa acontecer nas nossas próprias casas. O que pode ser feito agora e ainda na fase da construção de um imóvel para ajudar a absorver a água da chuva? Respeitar o relevo do terreno e evitar a terraplanagem, manter o máximo de áreas verdes como jardins, gramados e arbustos, criar um sistema de coleta de água das chuvas são algumas das escolhas que podem ser feitas para assegurar que a água, ao cair, não corra por cima do asfalto e alague novamente as ruas da cidade.

Para o também arquiteto Gustavo Penna, subjugar a força da natureza é preço caro que as cidades pagam.

 

Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Michelle Parron
Fotos: Bianca Aun, Ferando Furtado, Léo Boi, Luiz Maia e Robson Oliveira