Revista Velhas nº 18: 20 anos da Expedição ‘Manuelzão desce o Rio das Velhas’

20/12/2023 - 10:00

No dia 12 de setembro de 2003 tinha início a Expedição Manuelzão Desce o Rio das Velhas, marco cronológico da maior significação para a História do Ambientalismo em Minas Gerais, com ampla repercussão nacional. Durante 30 dias, uma pequena flotilha fluvial percorreria todo o curso daquele rio – cerca de oitocentos quilômetros – desde a sua nascente na Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, até a sua foz no Rio São Francisco, nas proximidades de Barra do Guaicuí, distrito de Várzea da Palma, logo a jusante de Pirapora. À testa daquela armada brancaleônica composta por uma plêiade de caiaques e canoas canadenses, guarnecida por uma lancha da Polícia Militar Ambiental, estavam os três caiaqueiros oficiais do Projeto Manuelzão: Paulo Roberto Furtado de Azevedo Varejão, professor de História da Educação da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), Rafael Guimarães Bernardes, transportador autônomo e ambientalista, e o produtor rural e ambientalista militante Ronald de Carvalho Guerra.

O Projeto Manuelzão nasceu em 1997 na Faculdade de Medicina da UFMG, tendo sido idealizado por Apolo Heringer Lisboa, professor daquela instituição e veterano militante em prol das liberdades democráticas em nosso país, desde a resistência à Ditadura Militar até sua posterior adesão ao movimento ecológico. Apolo emprestou ao Projeto Manuelzão todo aquele sentido de compromisso que a Universidade deve ter com a transformação da sociedade, o que infelizmente tem sido esquecido nos últimos tempos.

Tendo a Expedição como objetivo imediato, a mobilização pela revitalização de toda a bacia do Rio das Velhas, manifesta sinteticamente na fórmula da volta do peixe às suas águas, o Projeto Manuelzão ousou propor, no início de 2003, uma expedição que percorresse toda a calha do rio da nascente até a foz. Nesse sentido, começaram a trabalhar, junto com o professor Apolo, os demais coordenadores do Projeto, a saber: os professores Marcus Vinicius Polignano, Thomaz da Matta Machado, Tarcísio Pinheiro e o Antônio Leite, que já nos deixou, vítima de um lamentável episódio de violência urbana. Menção especial deve também ser feita ao professor Eugênio Marcos Andrade Goulart, editor do primoroso livro que imortalizou a Expedição e reuniu em seus capítulos importantes contribuições de estudiosos da bacia do Velhas.

Em cada parada, o grupo da expedição era recebido pelas comunidades locais, escolas e população em geral.

Mais sobre a Expedição

A projetada Expedição tinha por alvo promover uma ampla mobilização social em todos os rincões da bacia do Velhas, com 51 municípios, bem como diagnosticar o alcance das condições de degradação naquele momento de suas águas, reflexo das condições de toda a área deste território hidrográfico, estabelecendo como parâmetro de comparação a situação de higidez ecológica do rio em 1867, quando por ele navegou o explorador inglês Richard Burton (1821 – 1889).

Se o vaqueiro Manuel Nardi emprestou, com justiça, o seu nome ao Projeto, este encontrou em Burton, retrospectivamente, um intérprete apaixonado. Alguém que teve a sensibilidade de antever, ainda no século XIX, a transcendental importância para o Brasil da bacia do Velhas, 130 anos antes de dela se dar conta, o Projeto nascido na Medicina da UFMG quando as grandes mortandades de peixes assolaram o Rio das Velhas tendo como epicentro causal a Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Burton foi um inglês sob inúmeros aspectos bastante singular. A ele se atribuía uma ascendência irlandesa, o que o tornava suspeito aos mais ortodoxos anglo-saxões. Tinha um tom de pele bastante moreno, nada usual para um inglês, além de olhos e cabelos escuros, o que lhe permitiu de certa feita passar por árabe e ingressar na cidade santa de Meca. Foi capitão das tropas coloniais inglesas na Índia, e seus colegas oficiais o chamavam de “Negro Branco”. Preferiu, então, exercer funções de espionagem dentro das comunidades nativas do subcontinente, para as quais muito ajudou a sua habilidade de aprender línguas. Tornou-se um mestiço cultural. Destacado para servir na colônia portuguesa de Goa, lá aprendeu o idioma de Camões, de quem mais tarde traduziria para o inglês “Os Lusíadas”. Vendo muitas vantagens no projeto colonial português em relação ao inglês nas Índias, projetou estudar de perto o Brasil, que ele via como sendo uma Goa Portuguesa em ponto grande. Tendo obtido o lugar de cônsul da Inglaterra em Santos, de lá organizou a expedição na qual, pilotando uma canoa, desceria os Rios das Velhas e São Francisco desde Sabará até o Oceano Atlântico.

A Expedição Manuelzão Desce o Rio das Velhas percorreria cada etapa de sua viagem de olhos postos nas anotações de Burton. A sensibilidade mestiça do inglês conseguiu captar como poucos a alma profunda de um povo mestiço como o brasileiro. Comparou o convento de Macaúbas com outro muito semelhante na Índia Portuguesa. Surpreendeu alunos de uma escola em Barra do Guaicuí aprendendo a ler pelo método de repetir sabatinas cantadas, bem à moda árabe. O Brasil aos seus olhos se orientalizava.

O mesmo sucedia com os navegadores da Expedição Manuelzão Desce o Rio das Velhas. Meio que sem o saberem, mobilizavam no seio das populações ribeirinhas que acessavam memórias antigas, ocultas no inconsciente coletivo dos povos da bacia, que reconhecia na epopeia dos caiaqueiros do Manuelzão aquela mesma gesta de seus antepassados, os quais povoaram as Gerais a partir, exatamente, de armadas canoeiras que singraram o Velhas e o Velho Chico. Gente no mais das vezes mameluca, cujos olhos amendoados lembravam os de uma Ásia ainda presente no sangue indígena, de permeio com negros muitos deles adeptos da fé de Maomé.

Foi a esse Brasil Profundo que a Expedição de 2003 contribuiu para resgatar a sua autoestima. A espontaneidade das manifestações de regozijo com que os caiaqueiros eram recepcionados nas localidades situadas no leito do Velhas eram um testemunho eloquente da força de um povo desejoso de tomar de novo os seus destinos nas mãos. Que o digam os responsáveis pela Equipe de Mobilização, Comunicação e Eventos da Expedição, como o professor da Comunicação Elton Antunes e o engenheiro Rogério Sepúlveda, sabarense de lei. Sabarense também o era o performático canoeiro Emerson “Caverna”, que há pouco tempo também nos deixou. Aliás, vale fazer referência a algumas das figuraças que se juntaram voluntariamente à equipe original dos três caiaqueiros do Manuelzão. Como esquecer do ” Galo Velho”, canoeiro de Sete Lagoas? Do Fabrício e do “Vera Verão”, de Rio Acima?

Mencionar essa gente é questão de justiça, pois a Expedição foi uma ampla experiência coletiva. No âmbito da UFMG, foi de fundamental importância a ação dos motoristas Gilson, Zé Resende (Moranga), Robertinho e Cláudio, o fogueteiro, já falecido. Das meninas da Educação Física que nos acompanharam (obrigado, professor LOR!). Da Equipe de Comunicação, como o Louraidan e a Marina. Também tivemos a colaboração do IEF (Alberto) e do IMA, com os dois Alex. A competência da fotógrafa Cuia, dos cinegrafistas Rodrigo Pipi e Gustavo Abah. Fundamental também a parceria já citada com a Polícia Militar, lembro do Cabo Nascimento, entre tantos outros por citar, da polícia ou não, aos quais peço desculpas pela omissão, mas são tantos… Por fim, agradável surpresa, a nós se juntou o Nelson Araújo, do Globo Rural, que produziu um completo documentário de nossa Expedição, que foi ao ar em duas edições do seu programa na transição de 2003 para 2004.

A Expedição cumpriu os objetivos a que se propunha? Tornou-se realidade a Meta 2010, que pressupunha que naquele ano se poderia nadar, pescar e navegar no Rio das Velhas, dentro da Região Metropolitana de Belo Horizonte? Infelizmente, não. Nem a Meta 2010, nem a tentativa de completa-la na íntegra com a Meta 2014. O componente estatal não cumpriu com a sua parte! Todavia, uma semente ficou. A memória da Expedição permanece, ainda que difusamente, na medida em que ela não se constituiu em mera atividade pontual de mobilização, mas sim que soube tocar o nervo exposto da ancestralidade dos povos da bacia, gente meio branca, meio índia, meio negra da qual os ribeirinhos descendem, gente que tão bem Guimarães Rosa interpretou. Aquela gente já teve um primeiro lampejo de consciência de que, enquanto sertaneja, é a “rocha viva da Nacionalidade”, como já o disse Euclides da Cunha. O batismo com Manuelzão marcou esse momento da história de Minas Gerais, como lampejo inaugurando de forma participativa e científica a questão ambiental como política de Estado.

Aquele despertar da consciência ao qual acabamos de fazer menção é, outrossim, um indicador seguro de que foi alcançado, na ocasião, o objetivo maior do Projeto Manuelzão, cuja razão de ser está no compromisso de promover uma Transformação Ecossistêmica da Mentalidade Social e do modo de se reproduzir a vida na Terra, compatibilizando a História Cultural com a base herdada da História Natural. Nesse sentido, a proposição da volta do peixe a todos os espaços das calhas da bacia do Velhas se constitui, precisamente, em um indicador biossocial da almejada mudança de mentalidade.

Esse não é e nem pode ser um projeto acadêmico restrito aos ambientes de gabinete e salas de aula apenas, mas antes aposta na viabilidade de um empreendimento científico que envolva múltiplos parceiros, da seara universitária e de fora dela, de modo a assumir a feição de um autêntico Doutoramento Coletivo a céu aberto. No caso da Expedição de 2003, a descida do rio teria correspondido simbolicamente à defesa de uma Tese, delineada na prática tanto pelos expedicionários quanto pelos ribeirinhos que, naquele ano, deram um salto quântico em termos de abertura da mente, de compreensão holística das relações entre a Humanidade e o Meio Ambiente, culminando numa percepção ampliada de seu papel enquanto agentes da Cidadania.

Um povo consciente e desperto irá, mais cedo do que tarde, tomar o seu destino das mãos. Um destino que se confunde com o do Rio das Velhas, com o de seus peixes e com a sua vocação de se tornar o eixo de um Brasil Livre, Soberano e Socialmente Justo. Esse é o principal legado da Expedição Manuelzão Desce o Rio das Velhas: como ação política, como método científico e como estratégia. O Projeto Manuelzão deu uma arrefecida, mas tendo se tornado uma referência renasce das cinzas como Fênix emergindo renovado da poda que restaura o verde. Somos como peixe de piracema subindo rio acima contra a corrente e a favor da vida.

Iniciativa teve alcance significativo no envolvimento das comunidades, prefeituras e associações, exposição na mídia e reverberação na agenda pública-política.

 


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Paulo Roberto Varejão e Apolo Heringer Lisboa
Fotos: Cuia Guimarães