Revista Velhas nº 16: Gestando passivos

09/11/2022 - 9:35

Ameaça de assoreamento lança dúvidas sobre viabilidade de represas e barramentos – na bacia do Velhas, em Minas e no Brasil


Ponte sobre o Rio Paraúna

Era fim de outono na bacia do Rio Paraúna. Em meio ao clima frio e seco, um grupo de ambientalistas se aventurava por entre o Cerrado para visitar os cânions deste que é um dos mais importantes afluentes do Rio das Velhas. Porta para o Sertão.

A caminhada começa no município de Gouveia. Ali, o Paraúna é vistoso, robusto – embora já visivelmente afetado pelo assoreamento e pelo esgoto que recebe in natura da pequena Gouveia. Sinais mais bem observados durante a estiagem. Apenas nove quilômetros rio abaixo, receberá as águas límpidas do Rio Cipó.

O Cerrado é tanto belo – como extensão natural do “Jardim do Brasil”, expressão cunhada pelo paisagista Burle Marx em referência à vizinha Serra do Cipó – como espinhoso e imponente ao caminhante. Num trecho não maior do que 16km percorridos, pegadas de animais selvagens são vistas a todo o momento: antas, felinos e canídeos.


Veja o vídeo da expedição!


A expedição organizada em junho de 2022 por representantes do Subcomitê Rio Paraúna, vinculado ao CBH Rio das Velhas, e pela ONG Caminhos da Serra pode ter sido uma das últimas pelo local singular. Isso porque tramita na Superintendência de Projetos Prioritários (Suppri) da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) o licenciamento ambiental do Complexo Hidrelétrico Quartéis, que prevê a construção de três Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) na calha do Rio Paraúna.

Programadas para um trecho de 13km, as PCHs – Quartel I, Quartel II e Quartel III – têm previsão de potência total de 81MW, conforme o RIMA (Relatório de Impacto Ambiental) desenvolvido pelo empreendedor, a Quebec Engenharia. A pegada no ambiente que um empreendimento desse porte deixaria é temida. “Em PCHs geralmente a geração de energia se dá a partir do fio d’água. O acúmulo de água no barramento é pequeno e a geração se dá em datas específicas do ano, quando se tem uma maior vazão”, explica Frank Alison de Carvalho, membro do Subcomitê Rio Paraúna. “Mas, para viabilizar um empreendimento desse porte, alguns impactos são característicos, em especial, inicialmente a abertura de acessos e frentes de trabalho para implantação do barramento em uma área peculiar e especial da Serra do Espinhaço”, adverte.

Membros da expedição do Rio Paraúna

Membro do Subcomitê Rio Paraúna, Frank de Carvalho teme que novo barramento no curso d’água tenha fatalmente vida curta, em razão do assoreamento.
Ao lado, equipe da expedição em visita aos cânions do Rio Paraúna.

 


Veja as fotos da expedição:


 

Suscetibilidade erosiva X barramentos

Em 2017, o engenheiro ambiental Leandro Durães desenvolveu o estudo ‘Diagnóstico Ambiental da Bacia Hidrográfica do Rio Paraúna’, como embasamento para a proposição de projetos conservacionistas futuros. O documento é claro em apontar que os solos da bacia possuem elevado grau de suscetibilidade erosiva e que o impacto do assoreamento nos cursos d’água tornou-se um dos aspectos de maior relevância negativa do ponto de vista ambiental na região. “Essa situação é especialmente crítica para a preservação da vida aquática e representa risco de diminuição ainda maior do volume de água presente nos rios”, atesta o Diagnóstico.

Por esse motivo, uma das principais preocupações da sociedade civil e do Subcomitê Rio Paraúna é que os três barramentos do Complexo Hidrelétrico Quartéis tenham vida útil curta em razão do esperado assoreamento e sejam, muito em breve, apenas novos passivos ambientais.

A maior referência que chancela essa preocupação está a apenas 2km – de jusante para montante – do que seria o terceiro barramento do Complexo Quartéis: a PCH Paraúna, operada pela Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais), em grande parte já totalmente assoreada.

“A partir do momento em que se barra o curso d’água, a gente passa de um ambiente que anteriormente era lótico, ou seja, de alta velocidade, e promove um ambiente lêntico. Em consequência, pela característica da nossa bacia de geração de sólidos, há a possibilidade de decantação desses sólidos dentro dessas barragens. A partir de então, nós teremos uma concentração desses sólidos, vindo a ter a mesma característica que a gente vê na PCH da Cemig. As características que nós estamos vendo lá nós vamos ver a montante nessas outras aqui”, explica Frank, que também é especialista em avaliação de impactos ambientais e carrega a experiência de ter trabalhado por nove anos na Supram (Superintendência Regional de Meio Ambiente).

 

 

Opinião semelhante é compartilhada pelo professor do Departamento de Engenharia Hidráulica e de Recursos Hídricos da Escola de Engenharia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Julian Cardoso Eleutério. Ele explica que os cursos d’água naturais têm uma busca permanente por um equilíbrio sedimentológico. “Há sempre produção de sedimentos no próprio leito fluvial, carreamento de sedimentos, processos erosivos e deposição de sedimentos em zonas alternadas de maiores e menores velocidades. Qualquer intervenção que a gente faz, a gente perturba esse equilíbrio. E o barramento não vai ser diferente de outras singularidades hidráulicas; pelo contrário. Com baixíssimas velocidades, altas taxas de sedimentação e retenção de todo esse sedimento, isso tende a causar um desequilíbrio no que tange ao equilíbrio morfológico e sedimentológico do curso d’água”.

Expedição organizada pelo Subcomitê Rio Paraúna e ONG Caminhos da Serra percorreu os 13km onde se pretende alagar para a construção das três PCHs.

 

Expedição organizada pelo Subcomitê Rio Paraúna e ONG Caminhos da Serra percorreu os 13km onde se pretende alagar para a construção das três PCHs.

 

Para o professor da UFMG, o estudo da bacia hidrográfica no contexto em que será implementado o barramento tem que ser muito bem definido. “De nada adianta a gente ter um barramento num determinado curso d’água, para geração de energia elétrica por exemplo, em uma bacia que vai ser grande produtora de sedimento, no sentido que pode ter muito sedimento que vai ser carreado para o curso d’água e, consequentemente, comprometer a produção de energia”.

Procurada, a Quebec Engenharia não se manifestou sobre a vida útil do barramento e sobre ações que poderiam mitigar o assoreamento.

Solos da bacia do Rio Paraúna possuem elevado grau de suscetibilidade erosiva. Impacto do assoreamento é hoje um dos aspectos de maior relevância negativa do ponto de vista ambiental na região. Vista aérea do paraúna

Solos da bacia do Rio Paraúna possuem elevado grau de suscetibilidade erosiva. Impacto do assoreamento é hoje um dos aspectos de maior relevância negativa do ponto de vista ambiental na região.

 

Barrando o Rio das Velhas

Era fim de inverno no Alto Rio das Velhas. A vegetação resiliente anuncia que a primavera não demora. O frio já se foi, mas as primeiras chuvas ainda não caíram. Costumeiramente a vazão ali é baixa nessa época do ano. Ainda assim, outro grupo de ambientalistas descia o Rio das Velhas a caiaque.

O trecho é tido como ideal por praticantes da modalidade: água de qualidade – já que anterior ao aporte do Rio Itabirito, primeiro afluente de grande porte do Velhas –, mata ciliar robusta e bem preservada, muitas corredeiras e um visual único.

Assim como na Expedição promovida no Rio Paraúna, poucos meses antes, o trecho percorrido a caiaque no Alto Velhas pode também desaparecer. Isso porque também ali pode ser construído um barramento, para fins de reservação de água.

A calha do Rio das Velhas entre a represa de Rio de Pedras e o encontro com o Rio Itabirito é caracterizada por águas ainda de boa qualidade, inúmeras corredeiras e mata ciliar bastante preservada, se tornando o melhor trecho para a prática da canoagem em todo o rio. Com um maciço expressivo de mata atlântica e repleto de trilhas e caminhos, a região se mostra ideal para a prática de caminhada, bicicleta e cavalgada. Tudo isso a 65 km ou cerca de 1 hora de Belo Horizonte.

A calha do Rio das Velhas entre a represa de Rio de Pedras e o encontro com o Rio Itabirito é caracterizada por águas ainda de boa qualidade, inúmeras corredeiras e mata ciliar bastante preservada, se tornando o melhor trecho para a prática da canoagem em todo o rio. Com um maciço expressivo de mata atlântica e repleto de trilhas e caminhos, a região se mostra ideal para a prática de caminhada, bicicleta e cavalgada. Tudo isso a 65 km ou cerca de 1 hora de Belo Horizonte.

A intenção resulta do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) Segurança Hídrica, que deriva do acordo firmado entre o governo de Minas Gerais, a mineradora Vale e o Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) para reparação dos danos provocados pelo rompimento da barragem de rejeitos da empresa em 2019, em Brumadinho – que, além de matar 270 pessoas (quatro continuam desaparecidas), interrompeu a captação de água no Rio Paraopeba e sobrecarregou o Velhas na missão de abastecer a Grande BH.

O TAC prevê que a Vale custeie e execute estudos de viabilidade técnico-ambiental e projetos básicos de engenharia de cinco obras estruturantes que garantam o atendimento à demanda hídrica atual da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), correspondente a 15 mil litros por segundo. Uma delas seria justamente a nova captação a fio d’água, adutora e reservação na região denominada “Ponte de Arame do Rio das Velhas”, garantindo a vazão mínima prevista de 2 mil l/s e de operação necessária durante períodos secos.

Quem neste dia desceu o rio a caiaque já havia percorrido esse mesmo trecho outras inúmeras vezes – inclusive durante as expedições promovidas pelo Projeto Manuelzão e CBH Rio das Velhas, em 2003, 2009 e 2017. Era Ronald de Carvalho Guerra, o Roninho, membro do CBH e Subcomitês Nascentes e Rio Itabirito.


Expedição Rio das Velhas 2009 – Trecho represa de Rio de Pedras até Rio Itabirito


“A proposta de barramento ocorre justamente numa região única do Rio das Velhas; um cânion encaixado, com várias cachoeiras, uma beleza cênica muito grande que poderia ser mais bem aproveitada como atividade turística. O mais importante ali era se ter uma unidade de conservação, um parque linear amplo interligando todas as unidades que há no entorno, garantindo mais proteção para as áreas de preservação permanentes (APPs). Trabalhar a região de uma forma voltada para o turismo e para a preservação do patrimônio natural”, afirma.

Canoista no Rio das VelhasCanoístas com larga experiência no Rio das Velhas, Ronald de Carvalho (dir.) e Rodrigo de Angelis (esq.) enaltecem potencial turístico do trecho.

Canoístas com larga experiência no Rio das Velhas, Ronald de Carvalho (dir.) e Rodrigo de Angelis (esq.) enaltecem potencial turístico do trecho.

 


Veja as fotos do trecho do Rio das Velhas entre a Represa do Rio de Pedras e o Rio Itabirito:


 

Assoreamento aqui também

A nova represa no Velhas estaria imediatamente depois – a jusante – de outro barramento, até então único na calha do rio: da PCH Rio de Pedras, operada pela Cemig. E por que este não cumpre o papel de armazenar água e contribuir para a segurança hídrica da RMBH, estando já consolidado em um ponto extremamente estratégico? Sim, por estar em estado avançado de assoreamento.

Mesmo antes da tragédia de Brumadinho, o CBH Rio das Velhas, especialmente a partir de seu Grupo Gestor de Vazão do Alto Rio das Velhas (Convazão), já provocava o Governo do Estado, a Cemig e a Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais) para a necessidade de desassoreamento da represa. “São anos de discussões sobre o processo de desassoreamento de Rio de Pedras, mas são recursos vultuosos e isso nunca é dado como prioridade [pelo poder público]. Para mim, isso deveria partir de uma parceria entre Cemig, Copasa e mineradoras do entorno, mas a gente vê que isso nunca vai adiante. Então, o desafio é muito grande”, afirma Ronald.

De fato, o desassoreamento da represa é tido por estado e Cemig como inviável do ponto de vista econômico, em razão do material ali depositado e a logística necessária para retirá-lo.

Rio das Velhas em meio à mataPonte de Arame está imediatamente a montante do encontro do Rio Itabirito com o Rio das Velhas.

Ponte de Arame está imediatamente a montante do encontro do Rio Itabirito com o Rio das Velhas.

Se o desassoreamento de uma represa já instalada é considerado inviável a ponto de motivar a construção de um novo barramento pouco adiante, minimizar a entrada de sedimentos passa a se tornar ainda mais vital. “Se a gente não quer que tenha sedimento num reservatório, a gente tem que atuar em escala de bacia e reduzir a quantidade de sedimento que chega no curso d’água. É necessário então preservação de mata ciliar e o emprego de diferentes técnicas em escala de bacia, em função do tipo de ocupação do solo, para evitar com que esse sedimento chegue no leito fluvial”, afirma o professor da UFMG, Julian Cardoso Eleutério.

A sub-bacia do Ribeirão Maracujá é tida por especialistas como a maior responsável pelos sedimentos que chegam a Rio de Pedras. Além das voçorocas, uma das maiores do Brasil, a mineração na região dos distritos ouropretanos de Cachoeira do Campo e Santo Antônio do Leite transformaram a serra onde nasce o rio em um buraco de argila roxa para arrancar os cristais raros de topázio imperial. Todo esse passivo tem assoreado gravemente o leito do Ribeirão Maracujá e, mais à frente, a represa de Rio de Pedras.

Novo barramento na calha do Velhas pode ser construído em cânion encaixado, com várias corredeiras, cachoeiras, muitos hectares de mata atlântica preservada e beleza cênica única.

Novo barramento na calha do Velhas pode ser construído em cânion encaixado, com várias corredeiras, cachoeiras, muitos hectares de mata atlântica preservada e beleza cênica única.

 

História que se repetirá?

Indagada sobre o que garantiria que o reservatório de “Ponte de Arame do Rio das Velhas” não se assorearia no curto/médio prazo, a Copasa informou que foi “realizado o estudo de viabilidade do barramento, porém ainda não foi concluído o projeto básico”. A empresa declara que ambos os documentos “levam em conta fatores hidrológicos e de carreamento de sedimentos nas modelagens realizadas avaliando a vida útil do empreendimento bem como os riscos de falha associados. Sendo que na avaliação do volume morto (ou reserva estratégica) foram utilizados dados de monitoramento sedimentológico da bacia de contribuição da PCH Rio de Pedras, incluindo informações do Rio Maracujá e outras vertentes”.

Com voçorocas gigantes e mineração de topázio imperial na região da nascente, sub-bacia do Ribeirão Maracujá é a que mais contribui para o assoreamento da PCH Rio de Pedras, em Itabirito.

Com voçorocas gigantes e mineração de topázio imperial na região da nascente, sub-bacia do Ribeirão Maracujá é a que mais contribui para o assoreamento da PCH Rio de Pedras, em Itabirito.

A Copasa destaca também que atua na bacia do Rio das Velhas com o Programa Pró-Mananciais, que tem “como objetivo implantar ações que visam garantir a qualidade e quantidade do manancial”.

Objeto de atenção antiga do CBH Rio das Velhas, o território do Rio Maracujá é também uma das quatro microbacias afluentes que receberão recursos do Programa de Conservação e Produção de Água da Bacia do Rio das Velhas. A iniciativa consiste no desenvolvimento e na execução de ações com o objetivo de maximizar o potencial de produção de água de sub-bacias hidrográficas, a partir do planejamento e da execução de Soluções baseadas na Natureza (SbN).

Não parece, mas é um barramento de água: imagem aérea mostra como o assoreamento reduziu área útil da represa da PCH Rio de Pedras.

Não parece, mas é um barramento de água: imagem aérea mostra como o assoreamento reduziu área útil da represa da PCH Rio de Pedras.

 

 


Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Luiz Ribeiro
Fotos: Fernando Piancastelli e Léo Boi