Revista Velhas nº 13: Olha lá! Os córregos e os peixes ainda estão vivos!

02/08/2021 - 11:21

Iniciativa une pessoas para olhar, sentir, imaginar e resistir pela bacia do Cercadinho, em BH


Ela ficou surpreendida quando viu, pela primeira vez, uma briga de peixes e tratou logo de comentar: “Achei bem engraçado que não dá pra saber se eles tão beijando ou brigando!”. Mas a reação dela diante daquele evento da natureza e a curiosidade em saber se ele já tinha visto a mesma cena, não foi o único motivo da conversa render. Entre áudios e textos, os dois falaram sobre os peixes da lagoa da Pampulha, córregos que estão de baixo do concreto e o clima de Belo Horizonte naqueles dias. O esgoto perto da casa dele também foi assunto. Pelo visto será arrumado pela Copasa: “Não sei te informar quando vai ser, mas parece que está caminhando. A gente precisa da água, não é verdade?”.

Essa conversa aconteceu entre dois moradores da bacia do córrego Cercadinho em outubro de 2020 pelo WhatsApp. Ela é Aline Furtado Franceschini, uma arquiteta e urbanista que se interessa por plataformas e interfaces que possibilitem diálogos entre os modos de vida e a coexistência entre humanos e não-humanos. Ele é Ormy Junio de Lima, um piscicultor que cria peixes na nascente do quintal da sua casa.

Nascente do Córrego Cercadinho, na Estação Ecológica Estadual de mesmo nome, próximo à BR-040. Copasa usa este manancial para abastecimento de parte de BH. Cercadinho ainda limpo, há poucos metros do seu tamponamento, na entrada do bairro Buritis.

Na conversa que vai e que vem, eles puderam aprender um com o outro. Entender o cotidiano um do outro, mesmo que à distância. Afinal, o Brasil e o mundo já estavam – ou deveriam estar – trancados por causa de uma pandemia. Bom, agora a Aline sabe que a tilápia, peixe que ela viu brigando e achou graça, pode sobreviver mesmo com baixa quantidade de oxigênio na água. Mas a espécie, como qualquer outro peixe, não consegue viver em água intensamente contaminada com esgoto.

Manter os córregos vivos e os peixes respirando, as nascentes protegidas e brotando, o esgoto bem longe dos rios e mostrar como a ocupação desordenada e os grandes empreendimentos imobiliários podem causar a matança de árvores, sufocar rios e impermeabilizar a cidade, fez um grupo se unir. Além da Aline e do Ormy, outras pessoas querem proteger a bacia do Cercadinho.

Mapa de 1894 mostra limites e hidrografia da Fazenda do Cercadinho.

Mapa de 1894 mostra limites e hidrografia da Fazenda do Cercadinho.

Para entender melhor essa história, primeiro é preciso conhecer bem o Cercadinho. Afluente do Ribeirão Arrudas, este que deságua no Rio das Velhas, o manancial já foi o principal da capital mineira. A Copasa, responsável pela captação de água, até hoje usa o Cercadinho para abastecer a população. Mas a vazão já não é mais a mesma nos últimos anos. Na área da bacia estão os bairros Buritis, Estoril, Estrela Dalva, Havaí, Palmeiras e Marajó. Seus córregos principais são o Cercadinho e o Ponte Queimada. Em alguns trechos da calha o curso d’água está coberto, mas grande parte permanece aberto, porém ameaçado por ocupações irregulares e desordenadas.

Em 1990 foi criada a Área de Proteção Ambiental (APA) do Cercadinho. Por meio do Decreto Estadual nº 32017, a proposta era manter a área protegida, entretanto, as nascentes e as áreas de proteção ambiental sofrem constante pressão do mercado imobiliário.

Passarela cruza o bairro Marajó, região em que o Córrego Ponte Queimada se encontra com o Cercadinho. Cercadinho em sua última curva antes do encontro com o Ribeirão Arrudas, na região do bairro Betânia.

 

Agora, voltamos àquele grupo de pessoas que se juntaram. Foi por meio de um edital que artistas, arquitetos, antropólogas, ambientalistas, professores, historiadores, biólogos e moradores da região foram selecionados para pensarem formas de proteger, valorizar e resistir pelo Cercadinho. Isso com a liberdade de usar diferentes linguagens.

A Louise Ganz, que é artista e arquiteta, foi quem encabeçou a proposta. “Na história do nosso país, os córregos e os rios urbanos sempre foram canalizados, enterrados, associados aos esgotos e as margens usadas para vias de trânsito rápido. Enfim, completamente desconsiderados. O projeto foi criado para desenvolver propostas para as margens e para a região do córrego Cercadinho”, conta Louise. A iniciativa une memória, experiências e imaginários, produção audiovisual, exposição de pinturas, Rádio Cercadinho e um banco comunitário.

Pensado para ser implantado presencialmente, com a pandemia o projeto foi transformado em uma plataforma virtual e assim nasceu a 1ª Mostra Córregos Vivos. “A ideia é que as propostas pudessem trazer um outro imaginário, um outro modo de uso para esse território”, conta a idealizadora. Parece que deu certo!

Louise Ganz, Tinta acrílica sobre papel de algodão, 2020. Obra participante do projeto Pinturas de Território, da 1ª mostra Córregos Vivos.

Para o Tande Campos o acerto já começou pelo nome “Córregos Vivos”. Morador da bacia e integrante da iniciativa, o arquiteto se debruçou sobre a região onde vive, só que de outra forma. Para além de “terra arrasada”, como ele mesmo diz, quanto mais tempo passava imerso na bacia, mais complexidade e pérolas Tande conseguia ver. “O Cercadinho e o Ponte Queimada estão vivos e oferecem cotidianamente maravilhas e maravilhamentos. A beleza não está só nas áreas de nascente no Parque Aggeo Pio Sobrinho e na reserva da Copasa, onde nasce o córrego do Cercadinho, mas em toda extensão dos córregos, em diversos pequenos bosques que aparecem quando as margens não estão totalmente ocupadas”, conta

Tande, que fez uma espécie de orientação em tecnologias com todos os grupos da Mostra, descobriu moradores que criam peixes com águas da bacia e um grupo de amigos fez dessa criação uma associação, onde cada um tem seus peixes, mas todos são criados juntos.

Teríamos a possibilidade de pensar e fazer o território habitado a partir de outro princípio?
Podemos inverter a lógica de ocupação do território e partir da bacia hidrográfica, ou mesmo, partir do aquífero? Que transformações ocorreriam no território se mudássemos nosso ponto de partida?Conheça a mostra Córregos Vivos, que adotou a bacia do Córrego Cercadinho como objeto de experimentação artística:

www.corregosvivos.com.br

Histórias, não de pescadores, mas do Hermenegildo, da Dona Diva, Dona Aparecida e Dona Glória, foram amplificadas na Rádio Cercadinho, criada para a Mostra. Nos podcasts, moradores nos levam a um passeio pela atmosfera do passado e do presente do lugar. “Contar a história do córrego Cercadinho começa por quem viveu ou vive próximo a ele. O processo nos levou a ficar ali, conhecendo a realidade bem particular do bairro Marajó, às margens do córrego. Nos demos conta ali que o córrego é parte não só de uma bacia hidrográfica, que une todas as águas, mas que sua história também faz parte de uma rede de outras histórias. E que se seguirmos esse emaranhado, se revelará, por fim, uma história bem particular de Belo Horizonte”,  conta Guto Borges, historiador e um dos criadores da rádio.

A rádio é uma tentativa de recuperação de uma história que não é, exclusivamente, aquela do final dos anos 1970 para cá, de quando data a ocupação do Buritis. É a história dos outros bairros que ficam no entorno. “A gente está trabalhando no nível da imaginação. Da imaginação política, da imaginação sobre cidade, então é importante que a gente exerça essa capacidade de imaginar futuros, cidades e horizontes melhores do que o que a gente anda tendo. Uma das ferramentas para se imaginar o futuro é a história e a memória”, diz o historiador.

A Rádio Cercadinho foi criada para narrar acontecimentos históricos a partir do cotidiano que é contado pelos moradores locais.

A Rádio Cercadinho foi criada para narrar acontecimentos históricos a partir do cotidiano que é contado pelos moradores locais.

Por falar em imaginar, outro projeto da Mostra é o Jardins Viventes. Nele, cinco mulheres trazem abordagens etnobotânicas sobre a bacia do Cercadinho. “Fizemos encontros virtuais e começamos a falar sobre vida cotidiana, sobre o cuidado, seja com os filhos, com os jardins públicos, privados, relações e a trocar bibliografias”, conta Núria Manresa, mãe, arquiteta, jardineira, que trabalha em projetos que envolvem educação, jardinagem e produção do espaço. Dos encontros surgiu uma série de quatro vídeos e uma publicação. Um dos vídeos conta a história da Musa do Cercadinho, uma expedição virtual que percorre a história da espécie de bananeira “Musa paradisíaca”, trazida da Ásia e que se adaptou muito bem à mata ciliar da bacia.

 

E quem iria pensar que um professor de química fosse parar dentro de um vídeo, ou melhor, fosse se transformar em personagem de curta-metragem? Foi assim que André Siqueira, Gabriela Luíza e Luciano Faria – o professor de química – resolveram criar a obra “O Escafandrista do Cercadinho”. Luciano é morador da bacia e trabalha com análise mensal da água no córrego Cercadinho e no Ponte Queimada. “Observamos que muitas vezes as pessoas não sabiam do que se tratava aquele trabalho que ele fazia. A partir disso resolvemos criar uma ficção da lenda do Escafandrista, que é esse personagem que aparece uma vez no mês nas margens do Cercadinho com uma roupa que o torna irreconhecível e ninguém sabe ao certo o que ele está fazendo ali.”, explica André Siqueira. A estratégia foi uma brincadeira para abordar a questão das águas de uma forma mais lúdica, buscando a aproximação deles com os moradores e com o território.

 

Da sétima arte, para a arte local. Três artistas que vivem ou têm relação com a bacia foram convidados para produzirem obras para a Mostra. Cleber, pintor e escultor, Fábio, violonista e pintor “aventureiro”, como se apresenta, e Agnaldo, pintor, retrataram o território explorando suas próprias memórias. “Desde as primeiras conversas, o córrego já era presente na arte deles. O Fábio costumava tocar violino às margens do Cercadinho. O Agnaldo contou das memórias que tem da infância e adolescência, quando ele frequentava a região com a família. O Cleber já tinha homenageado em uma escultura a garça que está sempre presente no córrego do Cercadinho em um trecho que fica bem perto da casa dele”, conta Ciça Rocha, arquiteta e urbanista que integrou a equipe do projeto Pinturas de Território.

Para colaborar na prosperidade dos moradores, um dos grupos decidiu criar um banco comunitário chamado de Banco do Cercadinho.

Ter um novo olhar para onde se mora, repensar a relação de cuidado com a natureza e criar alternativas para alimentar as relações comerciais locais é pensar na economia do afeto. Para ajudar Ormy, aquele criador de peixes que apareceu por aqui lá no início e que está procurando um emprego, mas também para colaborar com a prosperidade dos outros moradores, um dos grupos decidiu criar um banco comunitário chamado de Banco do Cercadinho. “Desde setembro tivemos conversas para apresentar ideias de moeda social, banco comunitário, regras de uso de uma moeda social e como ela seria vinculada ao córrego. Conversamos com comerciantes e aplicamos um questionário sobre consumo e produção dentro do território”, explica Lila Gaudêncio, que desde 2015 pesquisa dinheiro como narrativa, lugar de memória e espaço público a ser ocupado.

Com a pandemia, o trabalho de mobilização para criação do banco foi prejudicado. Mas o desejo é forte e as mentes inventivas dos moradores fazem continuar a elaboração das possibilidades para além das telas.

Acreditar em um futuro melhor para o Cercadinho, visitando suas memórias, valorizando sua história e preservando suas margens é possível. Talvez seja esse o legado criativo, afetivo e inquietante provocado pela 1º Mostra Córregos Vivos.


Veja mais fotos do Cercadinho

 


Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Michelle Parron
Foto: Léo Boi e divulgação projeto Córregos Vivos