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Revista Velhas nº 21: As Crônicas da Jaguara o Ouro, o Contrabandista e o Mocambo

25/06/2025 - 12:45

Em Matozinhos, à beira do Rio das Velhas, diversas histórias que construíram Minas Gerais se cruzaram no período do Brasil Colônia


O Ouro

A região cárstica de Minas Gerais guarda grandes histórias. Por lá, onde hoje é Lagoa Santa, foi encontrado o fóssil humano mais antigo da América do Sul – a famosa Luzia, que viveu por aquelas terras há mais de 12 mil anos. Ali pertinho, no município de Matozinhos, na Gruta do Ballet, foram achadas pinturas chamadas “Ritual de Fecundidade”, também datadas de milhares de anos. Com certeza, outras populações viveram na região até a chegada dos primeiros bandeirantes – que, sedentos por ouro, escravizaram, expulsaram ou mataram os indígenas em seu caminho. Especialmente às margens do Rio das Velhas, as populações originárias que ali viviam tiveram de enfrentar a ganância daqueles que descobriram o ouro de aluvião que era abundante em alguns trechos do rio.

A corrida pelo ouro levou os primeiros colonizadores do que então era a Capitania de São Vicente a subir o Rio das Velhas em sua busca pela riqueza. De um lado e de outro do rio, foram fundando vilas que depois se tornaram cidades ou trabalhando as terras que depois constituiriam grandes fazendas, até que a grande disponibilidade de ouro levou a um embate entre os colonizadores da Capitania de São Vicente e os “emboabas” [que eram pessoas de outras regiões da colônia e de Portugal]. Ao fim da Guerra dos Emboabas, a Coroa Portuguesa retomou as terras e fundou a Capitania de São Paulo e Minas de Ouro em 1709.

Para essa região de Matozinhos migrou, na primeira metade do século XVIII, Antônio de Abreu Guimarães, português filho de lavradores “em terras suas e alheias”, segundo documentos do Instituto Arquivos Nacionais Torre do Tombo, de Lisboa. Havia primeiro morado no Rio de Janeiro e veio para Minas Gerais transportando africanos escravizados. Veio também atrás de ouro e outras pedras preciosas. Foi se fixar no terreno que era chamado “Jaguara”.

Ali ele multiplicou a pequena fortuna que já havia conseguido no Rio de Janeiro. A Fazenda Jaguara lhe rendeu, no espaço de um ano, entre 1767 e 1768, mais de nove arrobas de ouro “declarado” – diz-se declarado porque a Coroa Portuguesa, que recolhia altos impostos sobre a extração minerária, descobriu mais tarde que ele possuía mais do que declarava.

Imagem aérea da região, com o imponente Rio das Velhas ao fundo.

 

O Contrabandista

“Vínculo do Jaguara é a união de nove Fazendas, outrora pertencentes ao português Coronel Antônio de Abreu Guimarães, que adquiriu fabulosa riqueza negociando, por contrabando, em ouro e diamantes em Minas Gerais. Eis os nomes destas Fazendas, cada uma das quais era então cultivada por numerosos escravos: Jaguara, de todas a principal, Mucambo, Bebida, Riacho d’Anta, Casa Branca, Pau-de-Cheiro, Ponte-Noua, Brejo e Melo. O território do Vínculo media seguramente treze léguas [quase 63 km], começando do lugar denominado Ribeira, pouco além da Quinta, e terminando no ribeirão da Onça, e das margens do Rio das Velhas à serra do Paiol. Só a fazenda do Melo deu sessenta-e-duas sesmarias”. Esse é o relato de Padre João de Santo Antônio, que viria a ser o fundador de Cordisburgo.

Quando morreu em Portugal, em 1801, Antônio de Abreu Guimarães tinha posses em Pernambuco, Rio de Janeiro, Minas Gerais e também no seu país natal. Havia ascendido de filhos de trabalhadores do campo a um dos homens mais ricos da colônia. Antes, porém, de retornar definitivamente para Lisboa em 1767, Antônio incumbiu seu sobrinho, Francisco de Abreu Guimarães, também português, que cuidasse de suas terras na colônia – o que não se deu sem conflitos. Antônio estava certo de que o sobrinho lhe roubava, enquanto Francisco jurava que não, mas pedia ao tio alguma remuneração por gerenciar suas posses.

Não é possível saber se Francisco realmente desviou bens de Antônio, mas o sobrinho aumentou consideravelmente as posses do tio por orientação do próprio Antônio, que lhe ordenou que comprasse terras sempre que possível. De qualquer forma, de volta a Portugal, segundo o relato do mesmo Padre João, “o português Coronel Antônio de Abreu (…) resolveu-se a fazer confissão geral e tomar as medidas que seu prudente confessor lhe indicasse. Neste intuito dirigiu-se a um frade de Varatojo, o qual aconselhou-lhe começasse por pedir perdão do crime à Rainha de Portugal, e então lhe declarasse qual era o crime de que exorava clemência. Assim o fez o Coronel Abreu, e depois que a Rainha lhe assegurou o perdão, pediu-lhe quisesse aceitar aquelas Fazendas, com todos os escravos e suas dependências. A Rainha declinou da oferta e mandou-lhe que fizesse dos bens aquilo que combinasse com o confessor”.

O confessor então teria lhe dito que doasse suas posses para “obras pias” como construção de hospitais, casas de acolhimento e igrejas. Assim nasceu o Vínculo da Jaguara, que reuniu todas as terras de Antônio Guimarães em uma única propriedade vinculada às tais “obras pias” da Coroa Portuguesa. Seguindo o conselho do confessor, Antônio mandou construir a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, cujas ruínas ainda permanecem na Fazenda da Jaguara. O arquiteto responsável foi ninguém menos que Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que também produziu as obras que ornamentavam o edifício. De acordo com o Padre João, “aliviada sua consciência, o coronel fez-se frade e santamente acabou seus dias”, enquanto seu sobrinho Francisco “morreu louco em Sabará”.

O Vínculo da Jaguara foi posteriormente dissolvido por Dom Pedro II no século XIX, e suas terras vendidas. Um dos compradores foi o inglês George Chalmers, diretor da Mina de Morro Velho, em Nova Lima, que adquiriu a fazenda das mãos de Henrique Dumont, pai de Santos Dumont. “Conta-se que Santos Dumont nasceu na Fazenda da Jaguara e foi registrado numa outra cidade do interior de Minas três ou seis meses depois”, conta José Procópio de Castro, conselheiro do CBH Rio das Velhas e Subcomitês Carste e Ribeirão da Mata. O certo, porém, é que três dos irmãos do Pai da Aviação nasceram naquela fazenda.

Chalmers, então, por não ser católico, não se interessou por preservar a igreja, e doou ou vendeu as obras de Aleijadinho. Algumas delas estão na Igreja do Pilar, em Nova Lima. Outras foram doadas ou vendidas não se sabe a quem. Mas o esqueleto da igreja continua como testemunha de toda essa história, hoje tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA-MG).

Fazenda da Jaguara pertenceu a Henrique Dumont, pai de Santos Dumont.

 

O Mocambo

Como dito anteriormente, Antônio também era traficante de pessoas escravizadas. Não se sabe ao certo quantos escravizados mantinha em sua posse, mas algumas fontes dizem 500, outras 1 mil, outras ainda 2 mil. É de se supor que fossem muitos, devido à enorme fortuna que o português adquiriu na colônia.

O que hoje chamamos de Mocambeiro, distrito de Matozinhos, é território de resistência. A palavra Mocambo significa “couto de escravos na floresta, quilombo”. “Tudo indica que Mocambeiro é originário dos povos escravizados da Fazenda da Jaguara e das outras fazendas em volta”, conta Maria da Conceição de Lima, conhecida como Leleca. Ainda segundo a pesquisadora Mestra em Educação, a população é predominantemente de origem africana e “preservam tradições folclóricas e culturais locais comuns entre descendentes de escravos em Minas Gerais, tais como as Congadas e a Folia de Reis”.

Segundo o documentário “ÀWÀ – De África a Mocambeiro”, em Mocambeiro, no tempo da colônia, habitaram escravizados e alforriados de cerca de seis nações africanas. Muitos deles teriam saído das fazendas de Antônio de Abreu Guimarães e formado ali uma comunidade.

Hoje, em Matozinhos, há um museu que resgata essa história de resistência dos africanos escravizados e seus descendentes. Inaugurado em 2021, o Museu Histórico Ojú Aiyê (MHOA) – que quer dizer “Olhos do Mundo” em iorubá – foi construído com diversos itens da era escravocrata brasileira, inclusive alguns que pertenciam ao Vínculo da Jaguara. Desejado por Benedito Martins, descendente de africanos sequestrados na Nigéria, o museu foi concretizado por seu filho Walice Carvalho, que realizou, segundo o site da Prefeitura de Matozinhos, extensa “pesquisa de campo, reunindo réplicas de documentos, fotos e mapas da rota transatlântica que trouxeram os escravos para essa região do Mocambo, no Distrito de Mocambeiro”. “A intenção é preservar essa cultura tão rica e a identidade geral da história negra e, ao mesmo tempo, realizar a vontade do meu pai”, pontuou Walice, que é Babalorixá da Comunidade Religiosa de Matriz Africana Ilé Asé Alakétú Sàngó Aira Igbonã, em Matozinhos.

Se houve uma redenção para Antônio de Abreu, o contrabandista que alcançou o céu por doar sua riqueza ilícita para as obras pias, há de haver também uma redenção para a História do Brasil que os livros de história ainda não contam – e as diversas Crônicas da Jaguara indicam que há ainda muita história a ser contada do alto dos telhados e nas páginas dos livros.

Walice Carvalho é Babalorixá e comanda museu que resgata a história de resistência dos africanos escravizados e seus descendentes na região.

 


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
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Texto: Leonardo Ramos