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Revista Velhas nº22: Entre memórias literárias e desafios hídricos

20/10/2025 - 22:17

UTE Rio Bicudo, no Baixo Velhas, é região de contrastes: rica em história e cultura, mas desafiada pela escassez hídrica e pela pressão sobre seus recursos naturais


Entre as veredas do sertão mineiro, onde o tempo parece andar com passos próprios, estão os municípios de Corinto e Morro da Garça — guardiões da paisagem marcada pela aridez e resistência do povo. As duas cidades, localizadas na porção centro-norte de Minas Gerais, compõem a Unidade Territorial Estratégica (UTE) Rio Bicudo, uma sub-bacia do Baixo Rio das Velhas com grande relevância ambiental, histórica e cultural.

Morro da Garça tem suas origens no século XVIII, com a construção da Capela de Nossa Senhora das Maravilhas, em 1720, em torno da qual o povoado começou a se formar. O município é uma joia quase escondida, com sua icônica elevação rochosa de onde se avista o Cerrado em toda sua vastidão.

Já Corinto, fundada em 1923, cresceu com os trilhos da antiga Estrada de Ferro Central do Brasil e carrega em seu território os marcos do ciclo do ouro e da agricultura tradicional. A região, conhecida como “Paragem do Curralinho”, era ponto de passagem para tropeiros que transportavam gado da Bahia para as Minas. Situada na terra entre os Rios São Francisco e das Velhas, Corinto se consolidou como um ponto estratégico devido à sua topografia e pastagens ideais para o descanso das tropas. O arraial que ali se formou, próximo aos córregos Curralinho, Capão da Cinza e Pindaíba, cresceu com a chegada de colonizadores baianos e paulistas, que trouxeram a pecuária e a agricultura de subsistência.


Vista urbana de Morro da Garça: cidade marcada por raízes sertanejas, cultura tradicional e os desafios do semiárido mineiro. Já Corinto, nascida nos trilhos da antiga ferrovia, guarda em seu território a memória dos tropeiros e a luta pela água


O cenário e o espírito desses lugares ecoam nas palavras de João Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros, cuja obra reflete o sertão mineiro, e que atravessou essas terras em sua jornada pelo sertão. O escritor eternizou paisagens e personagens em obras como “Grande Sertão: Veredas”. O próprio autor declarou ter vivido ali experiências que inspiraram a travessia literária de Riobaldo e Diadorim. Em um dos contos do livro “Corpo de Baile”, há a icônica frase: “Lá estava o Morro da Garça: solitário, escaleno e escuro, feito uma pirâmide”.



Circuito sob a aura de Rosa

O Circuito Turístico Guimarães Rosa nasceu de experiências realizadas por amantes da literatura que percorrem o sertão de Minas para conhecer as paisagens e os lugares onde se passam as histórias do autor. Atualmente, fazem parte do circuito os municípios de Araçaí, Buritizeiro, Corinto, Curvelo, Felixlândia, Inimutaba, Morro da Garça, Pirapora e Presidente Juscelino; integra também o roteiro a Basílica de São Geraldo, em Curvelo.

Com cerca de 290 km, o Caminho da Boiada percorrido por Rosa liga as cidades de Três Marias e Araçaí, passando por Corinto, Morro da Garça, Curvelo e Cordisburgo. Já o roteiro Travessia da Fé liga a Basílica de São Geraldo ao Santuário de Nossa Senhora da Piedade, em Felixlândia, dois ícones religiosos da região e do estado.

Outro roteiro obrigatório para os turistas que chegam a Morro da Garça é a tradicional subida ao morrão. Lá o recomendado é apreciar o nascer do sol do seu mirante. Todo o esforço da subida é recompensado com um belo espetáculo. A visão em 360º garante um belo panorama do sertão, podendo-se avistar desde o cerrado que ainda sobrevive, assim como as vastas pastagens e imensas áreas de monocultura de eucalipto.


Paróquia Nossa Senhora da Conceição, em Morro da Garça, e outras localidades do município guardam a áurea roseana


Do morrão é possível ver boa parte de um sertão sempre em movimento, em transformação, onde os diversos usos da terra entram em conflito e se convergem formando um mosaico de paisagens, símbolos e signos. De lá se vê, também, a sombra do morrão formando uma pirâmide, fazendo jus à referência dada por Guimarães Rosa.

O roteiro se inicia na Casa da Cultura do Sertão e pode ser feito de carro até o começo da subida do morrão, onde há uma porteira e se inicia a caminhada. São 7,3 km, dos quais 5 km são por estradas de terra em boas condições de tráfego e 2,3 km são de caminhada até o topo do morrão.



O rio que seca todos os anos

A beleza do sertão também esconde uma dura realidade: a bacia do Rio Bicudo enfrenta uma crise hídrica recorrente, agravada por fatores naturais e humanos. Muitos dos cursos d’água da região, incluindo o Rio Bicudo e seu afluente, o Córrego Canjica, são intermitentes, secando completamente durante a estiagem. O Córrego Canjica, conhecido por sua resistência, teve sua primeira seca registrada em 2015, simbolizando a gravidade da situação. O Rio Bicudo, mesmo em trechos de maior volume, foi reduzido a um filete de água, evidenciando o impacto da seca e da exploração humana.

Leandro Vaz Pereira é natural de Corinto. Nascido e criado às margens do Rio Bicudo, de onde seus familiares tiraram por gerações o sustento da família, ele explica que um dos problemas do território é que a demanda excede a oferta de água. “No período de estiagem, o Bicudo se transforma em rio intermitente, fica ‘cortado’, desaparecendo temporariamente em alguns trechos. Essa situação é agravada pelo uso intensivo da água para irrigação e abastecimento humano, muitas vezes sem controle adequado”, diz.


Leandro Vaz Pereira, conselheiro do CBH Rio das Velhas, destaca os conflitos pelo uso dos recursos hídricos na UTE


A escassez é intensificada por práticas como captações irregulares para irrigação, perfuração descontrolada de poços artesianos e desmatamento, que comprometem o lençol freático e a mata ciliar. “Processos erosivos, causados por atividades minerárias, pecuária e queimadas, também contribuem para o assoreamento dos rios, reduzindo a capacidade de retenção de água”, acrescenta Leandro, que é conselheiro do CBH Rio das Velhas há anos, hoje representando o CORESAB (Consórcio Regional Multifinalitário de Saneamento Básico Central de Minas).

Outro fator crítico apontado por ele é a gestão das outorgas de água. Em 2016, um estudo contratado pelo CBH Rio das Velhas analisou os usos de recursos hídricos sobre as vazões disponíveis em toda a região e apontou que a demanda concedida pelo estado excede a oferta de água em mais de 500%.


Trechos secos de cursos d’água na Bacia do Rio Bicudo revelam os impactos da degradação ambiental e do uso desordenado da água na região


Por conta disso, em 2018, o Comitê solicitou ao IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas) a declaração de conflito pelo uso da água na UTE Rio Bicudo. A declaração de área de conflito é utilizada em bacias nas quais a disponibilidade hídrica é menor que a demanda dos usuários. No entanto, o IGAM não deferiu o pedido do CBH Rio das Velhas.

Um futuro sustentável

Em meio a esse cenário, o Subcomitê Rio Bicudo, criado em março de 2011 como instância descentralizada do CBH Rio das Velhas, tem desempenhado um papel fundamental na mobilização da sociedade local e na busca por soluções sustentáveis. Desde 2024, o Subcomitê Rio Bicudo abrange também parte da bacia vizinha do Ribeirão Picão. O colegiado atua em ações de educação ambiental, fiscalização participativa e fortalecimento da governança hídrica.

Com investimentos que ultrapassam R$ 2,4 milhões, o CBH Rio das Velhas elaborou seis projetos na Bacia do Rio Bicudo com o objetivo de fortalecer a resiliência hídrica, promover a inclusão das comunidades locais na gestão das águas e recuperar áreas degradadas, assegurando o abastecimento e a qualidade ambiental para as futuras gerações.

Luiz Felippe Pedersolli é morador da região há anos e atual coordenador da sociedade civil no Subcomitê Rio Bicudo. Ele comenta que um dos projetos mais emblemáticos é a construção de barraginhas, pequenas bacias de contenção que reduzem a erosão, aumentam a infiltração de água no solo e fortalecem o lençol freático. “Em 2015, máquinas já operavam em áreas rurais de Morro da Garça e Corinto, beneficiando a agricultura familiar ao melhorar a disponibilidade hídrica e a qualidade do solo”, explica.


Luiz Felippe Pedersolli lidera o Subcomitê Rio Bicudo na missão de garantir mais e melhores águas para a região


Outro projeto relevante, iniciado em 2013, foi o Levantamento Ambiental e Plano de Ação para a Bacia do Rio Bicudo. “O projeto mapeou áreas degradadas e envolveu comunidades locais, produtores rurais e gestores públicos na elaboração de ações para recuperação ambiental”, lembra Luiz.

Ações para a melhoria do saneamento básico também foram realizadas, como a elaboração do Plano Municipal de Saneamento Básico (PMSB) de Corinto e Morro da Garça no ano de 2014. O CBH Rio das Velhas também realizou, em 2016, o projeto da rede de distribuição de Água do Jacarandá e Buriti Velho.

Para Luiz Felippe, as ações do Subcomitê Rio Bicudo e do CBH Rio das Velhas demonstram um compromisso com a gestão participativa e a revitalização ambiental. “Por meio de projetos que aliam conservação, educação e engajamento comunitário, a bacia do Rio Bicudo busca um futuro em que a água, tão celebrada por Guimarães Rosa em suas narrativas, volte a correr com abundância e qualidade, sustentando a vida e a identidade do sertão mineiro”, finalizou.


Encontro do Rio Bicudo com o Rio das Velhas , em Beltrão, distrito de Corinto. Mesmo com desafios, Rio Bicudo ainda preserva trechos de beleza e vida, sendo foco de projetos que almejam restaurar seu fluxo e garantir água para as próximas gerações


Assessoria de Comunicação do CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
*Texto: Luiza Baggio
*Fotos: Bernardo Mascarenhas; Lucas Nishimoto; Leo Boi; Michelle Parron; Miguel Aun