Enchentes, áreas desmatadas, poluição do ar, rios que mais parecem um canal de esgoto. Se você achou que não teríamos uma conta à pagar por todos esses anos em que negligenciamos a natureza ao construir e “modernizar” as cidades, basta lembrar de janeiro de 2020. Vimos cenas pelas redes sociais e nos telejornais da água tomando conta das avenidas de Belo Horizonte, arrancando o asfalto e empilhando automóveis com uma força explosiva daquelas que se vê em filmes hollywoodianos. É que o rio, sufocado, voltou a ocupar o seu lugar de direito.
Não é de hoje que esse assunto preocupa o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas). Na construção das cidades da sociedade moderna os rios urbanos foram excluídos, ignorados, cobertos para o alargamento das avenidas, para a construção de novas vias e em outras obras de infraestrutura dos municípios. Essa forma de desenvolvimento que desrespeita as formas naturais do meio ambiente não é só uma realidade de Belo Horizonte, mas uma tendência das administrações públicas que costumam colocar o deslocamento dos automóveis como prioridade no planejamento urbano.
Para entender um pouco mais o assunto, em “O poder das águas aprisionadas”, texto publicado na edição 11 da revista Velhas, do Comitê, o geógrafo e autor do livro “Rios Invisíveis da Metrópole Mineira”, Alessandro Borsagli, explica porque Belo Horizonte passou a cobrir os seus rios e como isso impacta nas enchentes e inundações da cidade.
O tema também foi tratado no III Encontro Internacional de Revitalização de Rios, realizado em 2017 em Belo Horizonte. Na palestra “Nadar e Pescar em Rios Urbanos no Brasil”, o urbanista, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e editor da revista Piseagrama, Roberto Andrés, traz experiências desastrosas e projetos que podem se tornar soluções para melhorar a relação da capital cidade com as águas. Andrés publicou recentemente o texto “A Dupla Exclusão”, na revista Piauí, que faz a relação da crise climática e o papel das cidades, em que trata da realidade de Belo Horizonte.
Assista a palestra Nadar e Pescar em Rios Urbanos no Brasil:
As cidades e as águas também se transformaram no tema da campanha desse ano do comitê, lançada na última segunda-feira (29). Em A cidade e as águas, o CBH Rio das Velhas propõe uma reflexão sobre a relação ambígua que as cidades desenvolveram com os seus rios.
Para entender melhor sobre a equivocada relação que criamos com as águas, como o desenvolvimento urbano é feito de forma a desrespeitar o meio ambiente, a negligência histórica que é cometida da construção das cidades, tanto com a natureza como com a população mais pobre, entrevistamos o urbanista Roberto Andrés. Confira abaixo:
Você disse, em uma das suas palestras, que precisamos aprender a conviver com a água. Como isso poderia ser feito?
Aprender a conviver com a água é entender que a natureza não está somente longe, no campo, nos oceanos, na floresta. Ela está também em cada quintal, em cada rua, em cada pedaço da casa. A água, esse bem precioso, esse recurso que fará falta no século que estamos adentrando, precisa ser preservada em todas as suas situações, não somente na natureza. Até porque não existe essa separação. As bacias estão todas interligadas. O esgoto, que é jogado nos córregos de Belo Horizonte, vai para o rio das Velhas, que vai para o rio São Francisco. Nós estamos poluindo toda a bacia.
Da mesma maneira é preciso cuidar da água para que as nascentes continuem existindo com força. Para que nós tenhamos água limpa, preservada, esse recurso precioso possa ser utilizado pelas próximas gerações, a gente tem que conseguir conviver com a água no nosso território, com a nascente que brota na nossa rua, no nosso bairro, no nosso quintal. Com aquele córrego que vai passar ali. Precisamos aprender a desenhar e a produzir cidades que saibam fazer essa convivência. Sem isso não é possível que a gente tenha água limpa, esse recurso fundamental para a nossa vida.
Então é um sonho possível recuperar os rios urbanos?
Vimos experiências recentes, com a quarentena gerada pela COVID-19, em que algumas indústrias da região oeste de Belo Horizonte pararam de funcionar e que a qualidade do rio Arrudas melhorou bastante, mesmo não havendo a interrupção do esgoto doméstico. Para se recuperar a água de um rio basta parar de poluí-lo. É algo perfeitamente possível. Basta captar todo o esgoto residencial, comercial e industrial e tratá-lo adequadamente. O que é uma meta estabelecida durante muitos anos em BH é que precisa ser, de fato, levada a sério.
O objetivo de desenvolvimento sustentável da ONU coloca até 2030 para universalização do saneamento. Não deveríamos passar disso em hipótese alguma. A falta de saneamento gera uma séria de problemas. Então é algo possível. Mais do que possível, é algo desejável e necessário.
O planejamento de Belo Horizonte foi desastroso, desde os primeiros anos da cidade, quando se tentou resolver o problema das enchentes na cidade. O que a administração pública fez e continua a fazer de errado?
O modo de ocupar a cidade foi um desastre, principalmente na forma como lidar com os cursos d’água. Belo Horizonte é um exemplo notório disso. O desmatamento das cabeceiras fez com que faltasse água na cidade já nos primeiros anos. Ignorar os cursos d’água fez com que eles tivessem que ser retificados e depois canalizados, cobertos. O não tratamento de esgoto fez com que esse esgoto fosse jogado diretamente nos cursos d’água, poluindo rios e córregos.
Esse modelo foi se repetindo e foi se exaurindo. A cidade foi ficando cada vez mais impermeabilizada. Os córregos canalizados, fazendo com que as águas corressem de maneira muito violenta no fundo dos vales. E sempre se pensando que seria possível dimensionar, criar um grande canal, que isso permitisse resolver o problema das enchentes nos fundos dos vales. Isso não aconteceu. O que vemos é o contrário. Quanto mais a cidade é canalizada, quanto mais o solo urbano é impermeabilizado, mais os problemas se agravam. E até hoje, infelizmente, o poder público, a prefeitura de Belo Horizonte continua fazendo muitas obras que estão num paradigma que não funciona mais, mas é o que segue sendo feito.
O desenvolvimento urbano do Brasil é um processo que ignora não apenas a natureza, como também a população mais pobre das cidades. Como você explica essa “dupla exclusão”?
O crescimento urbano brasileiro ao longo do século XX já é marcado por uma dupla exclusão. Uma exclusão da população pobre, em sua maioria negra, e dos elementos naturais. A exclusão da população é algo que vem de um traço da escravidão. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão e que materializou na cidade pela ausência de bairros, de moradia para a população mais pobre. Essa, desde o início do século XX da república velha, já teve que fazer seus próprios bairros com as próprias mãos, de maneira informal.
Essa tônica se deu em todo o século XX com a população pobre tendo sempre que se virar. Com uma participação muito seletiva do estado, para não dizer negligente, nesses bairros mais populares, criou-se uma enorme desigualdade de qualidade territorial e de qualidade de infraestrutura urbana entre as populações mais ricas e as mais pobres.
De outro lado, a exclusão da natureza se dá numa instrumentalização radical e também em um “ignorar” que também é muito marcado no plano de Belo Horizonte. Um apagamento dos rios, dos córregos, e da topografia, da vegetação como se fosse possível criar um ambiente de controle da engenharia, do progresso, em que esses elementos não tivessem mais a sua voz, vamos dizer assim. Isso gerou diversos impactos ao longo do tempo e transformou a cidade em um lugar de péssima qualidade ambiental. Até chegar em um certo momento em que isso gera uma fulga das pessoas. Elas começam a não querer mais morar nos centros urbanos, tamanha degradação que foi gerada ali por uma ideia de progresso. Mas que, na verdade, é algo que constitui uma cidade distópica, cinza, desagradável, de baixa qualidade ambiental.
É possível ter desenvolvimento sem que ele violente a natureza e as pessoas?
Nos últimos 30 anos vimos aumentar a desigualdade no mundo e os impactos ambientais. O aquecimento do planeta, a degradação das condições ambientais e a poluição tem sido tremendos. Mostra que essa ideia de que o crescimento do PIB vai trazer soluções para a nossa vida não parece tão verdadeira assim. Pelo contrário. Parece que está trazendo muitos problemas para o nosso futuro. Se seguirmos achando que desenvolvimento é desenvolvimento econômico a qualquer custo, o preço nós já estamos pagando. São as enchentes, tornados, furacões, desertificações de áreas, poluição e todos os impactos da mudança climática e a degradação dos ambientes que a atividade humana, como ela vem sendo feita, tem gerado. Modelos de desenvolvimento que sejam, de fato, de desenvolvimento humano e social, que busquem conciliar com as diversas formas de vida, será fundamental se quisermos que haja condições de vida nesse planeta para a nossa e para as próximas gerações.
Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Michelle Parron
Fotos: Bianca Aun, Luiz Maia e Ohana Padilha