Revista Velhas Nº 11: O poder das águas aprisionadas

22/05/2020 - 12:51

Especialista na hidrografia da capital mineira, o geógrafo Alessandro Borsagli comenta inundações na cidade: “canalizações potencializaram o poder de destruição dessas águas”


“No Sion, o Acaba Mundo já era. Ele virou Avenida Uruguai.”

Esse era o título de um anúncio de 1973 da SUDECAP (Superintendência de Desenvolvimento da Capital), autarquia municipal da Prefeitura de Belo Horizonte, que destacava – em tom orgulhoso e progressista – uma intervenção na rede hidrográfica da cidade que prometia esconder os cursos d’água e abrir passagem para os carros. “O Bairro Sion não podia continuar com aquele córrego mal cheiroso interrompendo a Avenida Uruguai. Em nome do progresso, a Prefeitura eliminou-o da paisagem, abrindo em seu lugar uma ampla avenida pavimentada”, complementava a nota.

As chuvas intensas do último verão, que deixaram 72 mortos em Minas Gerais — 14 só em Belo Horizonte —, mostraram o limite do modelo que foi adotado desde a criação da cidade. E, uma vez mais, colocaram no centro do debate algo defendido há anos pelo CBH Rio das Velhas e alguns especialistas: as canalizações e retificações de cursos d’água – tão bem representadas pela icônica propaganda da SUDECAP – tornaram as inundações mais frequentes e mais violentas em Belo Horizonte.

É o que acredita também o geógrafo e pesquisador atuante nas áreas relacionadas ao espaço urbano, Alessandro Borsagli.

“Um fenômeno que é natural, que são os transbordamentos e enchentes periódicas, passa a ocorrer de uma maneira muito mais frequente, porque você retira o curso d’água do seu leito natural, aterra o caminho natural das águas e sobre ele vem a impermeabilização do solo e construção de edificações. Ou seja, a cidade ocupa o que não deveria ser ocupado”, diz ele, que é autor do livro ‘Rios Invisíveis da Metrópole Mineira’.

Em entrevista à Revista Velhas, Borsagli apresenta o histórico das canalizações na cidade e explica as consequências sociais, ambientais e urbanísticas decorrentes das intervenções na rede hidrográfica que foram sistematicamente replicadas em Belo Horizonte.

Em que momento histórico a cidade de Belo Horizonte passou a cobrir os seus rios e por quê?

A prefeitura de Belo Horizonte passou a realizar intervenções na rede hidrográfica a partir da primeira metade da década de 1920, exatamente com a ideia de adequar os cursos d’água para o traçado da malha urbana ortogonal, elaborada pela comissão construtora da nova capital, que se urbanizava naquele momento. Então, para liberação de lotes, urbanização e abertura de quarteirões inteiros e vias, teve a necessidade – de acordo com o poder público – de retificar e canalizar os cursos d’água para vias previamente escolhidas. Para se ter uma ideia, a prefeitura arrecadou de 600% a 700% a mais [com a abertura de vias e liberação de lotes] do que investiu nas canalizações. Ou seja, era – e é – um negócio muito lucrativo. O primeiro curso d’água canalizado em sessão fechada, que foi coberto e desapareceu da paisagem urbana de Belo Horizonte, foi o Córrego da Serra, entre 1928 e 1930. A partir daí, essa técnica se expandiu para fora dos limites da Avenida do Contorno e foi também aplicada nos demais cursos d’água.

Por que a cobertura de rios e canalizações de cursos d’água não são a resposta contra enchentes e inundações na cidade?

Essas intervenções não resolvem os problemas das enchentes e, sim, potencializam o poder de destruição dessas águas. Ou seja, um fenômeno que é natural, que são os transbordamentos e enchentes periódicas, passa a ocorrer de uma maneira muito mais frequente, porque você retira o curso d’água do seu leito natural, aterra o caminho natural das águas e sobre ele vem a impermeabilização do solo e construção de edificações. Ou seja, a cidade ocupa o que não deveria ser ocupado. A água, mesmo canalizada, vai pelo seu caminho mais fácil e com isso, naturalmente, surgem os problemas dos transbordamentos nos fundos de vale. E isso é histórico: as primeiras intervenções ocorridas nos cursos d’água de Belo Horizonte, após as enchentes de 1929 e 1930, todas transbordaram, inclusive em locais que anteriormente não apresentavam problemas. Ou seja, isso mostrou já naquela época que esse tipo de intervenção não deveria ser continuada. E o que acontece é exatamente o contrário, porque o que se olha é o lucro e a possibilidade de se fazer política com as águas.

Além dos problemas de drenagem, o que mais a cidade pode perder retirando os cursos d’água de sua paisagem?

Um curso d’água em leito natural, ou mesmo um parque ciliar, permite uma série de atividades ao ar livre, de lazer, de balneabilidade, de eventos, de encontros. E o mais importante disso tudo: a manutenção do clima urbano, porque você consegue manter um clima mais ameno dentro da cidade com a preservação dos cursos d’água em leito natural. Belo Horizonte hoje apresenta um calor quase próximo ao semiárido exatamente pela excessiva impermeabilização e falta de áreas verdes consideráveis. A cidade só perde com a intervenção na rede hidrográfica, da maneira como vem ocorrendo.

Mesmo tendo se mostrado historicamente ineficiente, o modelo das canalizações continuou sendo replicado na cidade, ano após ano – até fevereiro de 2020, quando entrou em vigor o novo Plano Diretor que proibiu novas intervenções desse tipo. Por que?

Exatamente pela questão do lucro e da propaganda política. Há quanto anos nós já estávamos falando disso, dessa questão das canalizações que já deveriam ser descontinuadas?

O próprio DRENURBS [Programa de Recuperação Ambiental de Belo Horizonte], que eu considero uma gota de esperança num oceano cheio de erros, já falava disso, que as canalizações só potencializam a questão dos transbordamentos. A continuidade se dá por dois motivos: lucro e politicagem. São erros sucessivos de administrações municipais incompetentes e autarquias mais incompetentes ainda e submissas ao capital privado. Enquanto não se desvencilhar o meio natural, a rede hidrográfica e os cursos d’água da política e do lucro, os transbordamentos só vão piorar, com perdas materiais e humanas.

No final de 2018, quatro pessoas morreram após uma enchente na Av. Vilarinho, em Belo Horizonte. Como resposta, a prefeitura chegou a anunciar dois pacotes de obras – o mais recente, inspirado em soluções usadas pelas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, e apelidado de “piscinão”, propõe a construção de 12 reservatórios ao longo dos cursos d’água com capacidade de armazenamento entre 65 e 105 mil metros cúbicos de água. Como você avalia esse novo projeto?

São projetos que tentam resolver o problema a curto prazo. Com certeza esses piscinões vão amenizar a questão dos transbordamentos. Mas é aquela mesma ideia ligada à questão da água para se fazer política e para alguns poucos ganharem muito dinheiro e terem lucros exorbitantes. Porque nesses piscinões certamente chegarão sedimentos, carreados pela água – de movimentação de terra nas vertentes, urbanização, sujeira, detritos, etc. E com certeza terão empresas contratadas pelo município para realizar a manutenção desses piscinões, que vão ganhar milhões por ano e o problema será só parcialmente amenizado. Porque não se fala em criação de parques ciliares? Eu não estou propondo aqui a descanalização de curso d’água, eu estou propondo a reabilitação, não renaturalização. Ainda é possível a criação de áreas ciliares em alguns cursos d’água, principalmente na bacia do Izidoro. Porque não se fala na manutenção de áreas, permitindo a permeabilidade do solo nas vertentes? Não se fala nisso, isso é fora de cogitação.

Qual seria a solução para o fim desse problema na região de Venda Nova?

A solução passa pela criação de áreas permeáveis nas vertentes, talvez desconto em IPTU para a população dentro do seu lote criar áreas permeáveis, educação ambiental para a população que culturalmente dá as costas para os cursos d’água, que são vistos como locais de descarte.

As próprias bacias de retenção permitem essa solução parcial do problema dos transbordamentos, mas é bom lembrar que será mitigação. O problema dos transbordamentos nunca será resolvido, isso que a cidade tem que compreender. E o poder público tem que fazer a parte dele: parar de canalizar, criar áreas mais permeáveis, reabilitar cursos d’água, corredores verdes. Mas infelizmente nós vamos passar ainda por muitas tempestades, muitas perdas humanas e materiais, porque a solução ainda vai demorar muito a ser aplicada.

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Assessoria de Comunicação CBH Rio das Velhas:
TantoExpresso Comunicação e Mobilização Social
Texto: Luiz Ribeiro
Fotos: Acervo Alessandro Borsagli, Arquivo Público Mineiro e Museu Abílio Barreto